terça-feira, agosto 31, 2004

Festa de Família

A filha caçula do padrinho vai se formar em Direito. Haverá uma festa surpresa para comemorar o feito na cobertura do namorado da filha mais velha. A mulher do padrinho pede para não comentar nada com a tia, que não será convidada. A família do padrinho quer que a filha se case com o namorado rico e teme que o rústico marido da tia os envergonhe diante do príncipe encantado. A mulher do padrinho também não convidará os próprios irmãos, tios da formanda, pela mesma razão. A filha mais velha gosta de dar conselhos às primas mais novas sobre como enlaçar um pretendente com dinheiro - uma mistura entre Maquiavel e Capricho.

Opções:
1 - Não ir à festa.
2 - Ir à festa e, valendo-se do talento genético para ataques de nervos, fazer uma cena - vomitar no bufê, dar vivas ao MST, etc.

A primeira alternativa dá margem a algumas variáveis, por exemplo: a) Acrescentar um discurso moralista sobre a necessidade de amar nossos parentes, mesmo quando eles não sabem usar os talheres. b) Comentar casualmente com a tia sobre a festa e perguntar se ela quer carona. c) Responder que não vai à festa porque não quer ser visto na companhia da família.

Sugestões são bem-vindas.

segunda-feira, agosto 30, 2004

O País dos Tenentes

Partindo dos comentários da Lol e da Scarlett, também acho que “Olga” tem um monte de problemas, mas já fico satisfeito de ver a história brasileira nas telas, com as pessoas lotando os cinemas, aplaudindo e depois conversando sobre o que viram. Isso é muito, muito bom.

Há um outro filme que trata do Prestes, se chama “O País dos Tenentes”, de João Baptista de Andrade (passa no Canal Brasil da Net). Paulo Autran interpreta um general que participou do golpe de 1964 e, moribundo, relembra os tempos de juventude, quando tomou parte das rebeliões tenentistas e da Coluna Prestes. A trajetória é significativa: os tenentes esquerdistas dos anos 20 descambaram quase todos para a direita. O contraponto ao personagem de Autran é um de seus colegas tenentes, vivido pelo ator Buza Ferraz. Ele é o personagem que se mantém fiel aos ideais e acaba assassinado pelos integralistas.

É um filme bem interessante, embora também não aprofunde o retrato do Prestes. Noves fora os hábitos sexuais do cavaleiro da esperança (ele demorou para começar mas depois ficou bem animadinho: teve uns 10 filhos) como é que o sujeito se alia ao Vargas em 1945, passando por cima de tudo que ele fez com Olga e com seus colegas comunistas? Há até uma foto famosa dos dois num palanque e parece que Prestes segura o microfone para Vargas. Ainda vamos chegar à conclusão que heroína mesmo era dona Leocádia...

Acho que o cinema brasileiro tem uma certa dificuldade em fazer a ponte entre política e vida pessoal (ao contrário do que ocorre nos filmes argentinos ou italianos, por exemplo). No caso de “Olga” ficou claro que a roteirista quis marcar o conflito entre as duas, de modo que a política acaba aparecendo como algo contrário à vida - como disse Oscar Wilde, o socialismo é uma boa idéia, mas exige noites demais em reuniões. OK, é um tema válido, mas digo de cadeira que para qualquer militante que se preze, a participação nas questões mais amplas da sociedade é uma parte essencial da vida e da felicidade. São coisas que se complementam.

Em “Olga” isso às vezes soa um tanto forçado, como no rompimento entre ela e seu namorado Otto Braun, que no filme é o protótipo do homem de classe média, preocupado com casamento e filhos. Pois bem, sabem o que ele fez após se separar dela? Foi para a China, se juntou ao Mao e foi um dos poucos ocidentais a participar da Longa Marcha! Mestre Hobsbawm, que foi colega de ambos no Partido Comunista Alemão, cita Olga e Otto como um exemplo de casal que só poderia ter existido no século XX.

O Imperio Contra-Ataca

Apesar do titulo, este nao eh um post sobre cinema, infelizmente. As Olimpiadas terminaram e os norte-americanos nao foram tao bem como esperavam. Como "o show deve continuar" na midia daqui, mudamos de assunto.

Hoje comeca a Convencao do Partido Republicano em Nova York e durarah tres dias. O clima estah bastante tumultuado -- ontem uma multidao foi aas ruas protestar contra Bush e, como se sabe, a cidade de Nova York, tradicionalmente um reduto democrata, estah profundamente incomodada com a chegada dos Republicanos. O simbolismo estah no fato de que o texano presidente estah descaradamente usando a cidade (e os acontecimentos de 11 de setembro) como palco para sua trupe itinerante.

Esta Convencao comeca em um dos momentos mais polarizados da politica norte-americana em muito tempo. Apesar de haver um consenso tacito entre democratas e republicanos sobre aspectos centrais da politica externa, em termos de politica domestica ha um abismo entre os dois partidos. Questoes como a pesquisa de celulas-tronco, a uniao de homossexuais, aborto, sistema de saude, impostos e subsidios, separam profundamente os dois. No entanto, como jah falei anteriormente por aqui, isto nao significa pluralismo; para ganhar, os candidatos tem que ir para o centro ideologico.

Mas a campanha descambou para ataques pessoais, com a campanha republicana acusando Kerry de ter mentido sobre a natureza da sua partipacao no Vietnam. Eh ironico (e triste) ver que a geracao que se opos aa guerra, agora defende que Kerry foi um heroi por patrulhar o Mekong.

Por que entao esta convencao eh importante? Por dois motivos em especial, acho. Por alguns dias, os republicanos estarao no foco central da midia e a usurao da forma mais eficiente possivel. Dependendo da "atuacao" do presidente, Kerry tem muito a perder. Como dizem por aqui, existe o "efeito Convencao", isto eh, por algumas semanas os indices de aprovacao sobem, as pesquisas sofrem uma alteracao perceptivel. O segundo motivo eh que quando terminar a Covencao Republicana, a briga comeca de verdade. As tendencias se acomodam e podemos ter uma ideia melhor do que vai acontecer. E tudo pode acontecer ateh o dia dois de novembro.

domingo, agosto 29, 2004

Olga

Continuando com a seqüência de posts cinéfilos do blog, ontem assisti a "Olga". A crítica foi muito dura com o filme, desqualificando-o como uma novela em tela grande. Injustiça. A produção foi a mais cara do cinema brasileiro e dá para ver que o dinheiro foi bem gasto: cenários e figurinos ficaram impressionantes, é um espetáculo bem montado e que emociona em vários momentos.

Como infelizmente é o usual no cinema brasileiro, o ponto fraco é o roteiro. A história de Olga é fascinante, mas os diálogos estão muito solenes e pesados. A política acaba aparecendo como algo distante, pomposo, afastado da vida real. Tem-se a impressão de que os personagens discursam, em vez de conversar entre si.

Algumas das licensas poéticas do filme me pareceram deslocadas. Filinto Müller, por exemplo, era tão covarde que jamais se encontrou cara a cara com Prestes. Os produtores poderiam também ter incluído um letreiro com a carreira posterior de Müller: ele entrou para a política e morreu como líder no Senado do partido da Ditadura Militar. O filme também poderia ter mostrado um pouco mais a bárbarie das torturas da Era Vargas. Não foram apenas choques e espancamentos. A comunista alemã amiga de Olga foi estuprada por policiais na frente do marido, que enlouqueceu depois disso.

Sobre o elenco: Camila Morgado virou, definitivamente, uma estrela. Tem carisma, beleza, uma atuação decidida. Fernanda Montenegro está ótima como Dona Leocádia, a mãe de Prestes. Gostaria que houvesse mais cenas com ela, a campanha internacional que conduziu pela libertação do filho, nora e neta foi realmente espetacular. Agora, de quem foi a idéia de escalar o Caco Ciocler para interpretar o Cavaleiro da Esperança? Se Prestes fosse daquele jeito, a Coluna não tinha chegado nem a Nova Iguaçu.

"Olga" foi o filme mais assistido no país na sua semana de estréia. É meio bizarro ver um filme sobre heróis comunistas financiado pela Globo e pelo Credicard. Na sessão em que o vi, as pessoas aplaudiam no final, emocionadas. Não acredito que o Brasil tenha experimentado uma conversão ideológica repentina, mas acho que estamos carentes de idealismo e altruísmo, num momento político em que a esperança de transformação parece ter se reduzido à velha troca de favores entre as mesmas elites de sempre.

sábado, agosto 28, 2004

Mitos Fundadores

Dentro das "tradicoes inventadas" estah a questao dos "mitos fundadores". Qualquer grande transicao politica eh legitimada com um "mito fundador", isto eh, uma historia estilizada que (re)conta o momento primeiro, como tudo veio a ser o que que eh, especificando de onde viemos e para onde vamos. Alguns exemplos? Adao e Eva, Romulo e Remo, os "founding fathers", "Independencia ou morte!", etc...

Os chineses tem os mitos fundadores deles, claro. E um filme chines feito em 2002, mas que soh agora estreia nos EUA, eh a mais nova tentativa de recriar uma historia conhecida por todos os meninos de colegio nas provincias chinesas: a unificacao dos sete reinos no seculo tres AC, feita pelo imperador da provincia de Qin. O filme se chama "Hero" e, na minha modesta opiniao, talvez seja um dos filmes visualmente mais impressionantes da minha jovem vida.

Dirigido por Zhang Yimou (que dirigiu entre outros, os maravilhosos "Lanternas Vermelhas", "Viver" e "Caminho para Casa"), o filme conta a historia do "homem sem nome" (vivido por Jet Li), que por ter matado os tres principais assassinos do reino de Qin, ganha uma audiencia a sos com o imperador. A partir dahi, Jet Li conta como conseguiu mata-los e o filme se transforma em uma disputa de varias versoes sobre a mesma historia (a la "Rashomon" de Kurosawa, em uma obvia influencia estilistica). Cada cena do filme eh uma pintura em movimento e desde "Ran" ou "Barry Lyndon" nao via coisa parecida. O filme tem cores impressionantes (que sao tambem parte da narrativa) e uma trilha sonora maravilhosa (Tan Dun se junta a Itzhak Pearlman e ao grupo japones Kodo).

O filme foi o mais caro jah feito na China e os resultados estah todos lah: exercitos inteiros e multidoes sao mostrados ao vivo, sem efeitos de computacao. As lutas sao estilizadas como eh tradicao no cinema chines (lembrem-se do "O Tigre e o Dragao"), com os atores voando como numa danca. Apesar de ter um ritmo lento, o filme me deixou sem ar, completamente hipnotizado por suas imagens e por sua historia. Este blog tem uma predilecao por filmes argentinos e, certamente da minha parte, tambem chineses.

sexta-feira, agosto 27, 2004

O Americano Tranqüilo

Lendo sobre a batalha dos EUA contra os xiitas em Najaf, e checando as pesquisas eleitorais que mostram Bush à frente de Kerry, me veio à cabeça um excelente romance que devorei durante o vôo para Campina Grande: “O Americano Tranqüilo”, do Nobel Graham Greene.

A história se passa no Vietnã, nos anos 50. Os franceses ainda governam o país, mas já está claro que vão perder a guerra para os comunistas. Os americanos começam a se envolver na situação, mas um tanto relutantes em apoiar uma potência colonial européia. Resultado: buscam uma “terceira força” que possa assumir o controle do Vietnã.

O pano de fundo político se desenvolve de maneira magistral em conjunto com um triângulo amoroso formado por um velho e algo decadente jornalista britânico, sua namorada vietnamita e um jovem “americano tranqüilo” que trabalha na missão de ajuda econômica da embaixada dos EUA. O rapaz é um poço de ingenuidade e boas intenções – amparado pelos recursos de uma superpotência. Como nos mostra Greene, nessas condições querer salvar o mundo com meia dúzia de frases feitas sobre a democracia é uma estratégia muito, muito perigosa.

Em 2002 foi uma lançada uma excelente versão para o cinema, com Michael Caine como o repórter e Brendan Fraser como o americano. A trama tem tantos pontos em comum com o mundo pós-11 de setembro (terrorismo, guerras de resistência, manipulação da imprensa, etc) que pensei que fosse alteração dos roteiristas. Fala-se até em “Velha Europa”! Não é: estava tudo no texto original dos anos 50. Os Impérios não mudam tanto assim.

É claro que o personagem-título é uma metáfora para os EUA e para as conseqüências desastrosas de suas intervenções políticas no exterior. Mas vale também pelo ótimo perfil do jornalista cínico, que a princípio não quer se envolver com nada, mas descobre que “para permanecer humano, é preciso tomar partido”.

quinta-feira, agosto 26, 2004

Uma Ode aos "Heist Movies"

Falando em ilegalidades, existe um sub-genero no cinema norte-americano chamado "heist movies". Como traduzir isso? Um "heist movie" sempre envolve algum tipo de "con" (um golpe, uma armadilha) posta em pratica por "con men" (o famoso golpista, gatuno, malandro). As tramas costumam ser labirinticas, cheias de pistas, em que voce nunca sabe quem estah realmente dando o golpe em alguem. Nao preciso dizer que sou absolutamente fascinado por este tipo de filme.

Poderia citar uma lista imensa de "heist movies" (inclusive latino-americanos, como o magnifico "Nove Rainhas"), mas prefiro falar sobre um dos seus mais prestigiados autores e diretores, que certamente tem presenca certa em qualquer lista de favoritos: David Mamet. Mamet jah ganhou o Premio Pulitzer e eh tambem um dramaturgo interessantissimo. Seus filmes e suas pecas tem roteiros unicos, com um ritmo de dialogo que desafia imitadores. Acho que gosto tanto do Mamet porque seus filmes sempre tem um gostinho de filme noir antigo, com dialogos inteligentes e personagens idem. Mamet nunca tenta explicar o obvio, nunca trata o espectador como idiota.

Ontem assisti ao seu ultimo filme, "Spartan", estrelado por Val Kilmer. Nao sei como se chama em portugues ou se jah passou no Brasil. Melhor do que o seu filme anterior ("Heist"), "Spartan" eh um exercicio em sutilezas do roteiro -- seus personagens vao se delineando ao longo do filme e nada eh o que parece. Kilmer eh um agente secreto do governo americano que investiga o desaparecimento da filha do Presidente. A partir dahi, tudo acontece. Recomendo fortemente.

quarta-feira, agosto 25, 2004

Família, a base da sociedade

Cena 1
Prédio em Santa Teresa
Seis e pouco da manhã de sexta-feira

PRIMO (no pátio central, aos berros): Alguém cuspiu em mim! Estou ensopado! Deve ter vindo do quarto ou do quinto andar! A boca de Deus é que não foi!

MÃE (na janela, aos berros, tom mais alto): Daqui não foi! Só eu estou acordada!

PRIMO: Então foi do quinto andar! Desde que aquele desclassificado do [segue nome do novo marido da TIA] veio morar aqui, esse prédio é só baixaria!

Cena 2
Num automóvel

TIA – Preciso conversar com seu irmão para ter uma assessoria jurídica. Quero tirar um novo número de carteira de identidade, para conseguir uma aposentadoria como dependente do meu novo marido.

SOBRINHO – Isso não é ilegal?

TIA – Sua madrinha usou dois números de identidade durante anos e ninguém descobriu. Aliás, acho que vou aproveitar e tirar também um segundo CPF.

SOBRINHO – Isso não é ilegal?

terça-feira, agosto 24, 2004

Najaf

Venho acompanhado de longe a situacao do cerco a Najaf e ao templo de Iman Ali. Nao porque nao me interesse (estou muito interessado no que vai acontecer), mas porque esse cerco prolongado me dah uma sensacao estranha no estomago, fico sem reacao ao que estah acontendo. Como o episodio em Najaf ainda estah em andamento ao mesmo tempo em que escrevo, fica dificil esbocar qualquer perspectiva mais teorica sobre qual o seu significado ou sobre seus futuros efeitos. Como tinha dito anteriormente, pensei em escrever antes, nao consegui, mas aqui vao alguns pensamentos soltos sobre o que estah acontecendo.

A primeira coisa a saber eh se Al-Sadr vai sair vivo disso tudo. Se ele sobreviver ao massacre que se anuncia na cidade, vai ficar muito dificil ignora-lo como forca politica no Iraque. Os americanos, sem querer, qualificaram-no como oposicao e lider de uma maioria xiita que ve a ocupacao norte-americana como ilegitima e abusiva e que tem certeza de que o governo iraquiano atual eh um mero fantoche. Para quem jah leu declaracoes de Al-Sadr, ele nao eh o tipico fundamentalista de carteirinha, tipo Osama. Alias, ele tem um papo bem nacionalista, criticando fortemente os xiitas iranianos.

Com este cerco, tambem fica patente o desastre americano no Iraque. Esses bolsoes de resistencia multiplicam-se. Cada vez mais, a guerra tranforma-se em uma guerra civil, a la Vietnam. Eh o tipo de guerra que como dizia Kissinger, voce nao tem como ganhar, voce soh tem como perder. O tempo gasto no Iraque com as tropas americanas cria mais tensao na sociedade daqui e nao resolve o propalado "combate ao terrorismo".

Najaf tambem eh a expressao perfeita dos problemas que uma democracia no Iraque vai encontrar. Em um soh lugar, metaforicamente, concentram-se os problemas adiante: diferentes grupos islamicos (xiitas e sunitas), milicias armadas, a presenca futura constante de tropas americanas no pais, lideres que se credenciam na resistencia, ponto focal de atracao de "soldados estrangeiros" para a causa (nos moldes da Guerra Civil Espanhola, guardadas as proporcoes).

Aguardemos os acontecimentos.

segunda-feira, agosto 23, 2004

Dos Andes ao Sertão

Fim de semana de trabalho. Estive em Campina Grande, na Paraíba, participando de uma reunião do Fórum Nacional de Participação Popular, entidade na qual represento o Ibase na secretaria executiva. Foi minha sexta viagem em seis meses, estou bastante cansado e tinha pedido para que o instituto enviasse outra pessoa no meu lugar. Mas não houve jeito, era uma discussão importante, acompanho o fórum há varios meses, etc e tal.

A reunião foi proveitosa, mas difícil. O Fórum está redefinindo seus objetivos, muito em função da decepção com os mecanismos de participação no governo Lula, como os orçamentos participativos e os conselhos gestores de políticas públicas.

À noite, deu para passear um pouco. Está rolando um festival de inverno na cidade e assisti trechos de um concerto, a missa da Coroação de Mozart. Fiquei pensando na loucura que está minha vida profissional - dos Andes ao Sertão em três semanas, com a viagem à África agendada para o próximo dia 5. Tenho visitado lugares muito pobres, discutido seus problemas e isso tudo tem mexido comigo. Outro dia eu caminhava pela orla de Ipanema, olhando as pessoas e as vitrines como se elas fossem parte de algum mundo de fantasia, um outro planeta que de repente pousou no calçadão.

Não é à toa que o filme que mais me marcou neste ano foi "Diários de Motocicleta". Inclusive escrevi um artigo sobre "Inquietações após uma sessão de cinema com Che Guevara", que foi acabou de ser publicado numa edição sobre América Latina de um site especializado em RI. Minha conclusão é o que Che não é mais o herói guerrilheiro da Revolução, mas um mito que se renovou como símbolo da inquietude diante de injustiças e desigualdades que infelizmente continuam atuais neste nosso continente. Dos Andes aos Sertão.

domingo, agosto 22, 2004

Uma Menina na Revolucao Iraniana

Na ultima vez em que estive no Brasil, o Daniel me deu de presente um livro chamado "Persepolis". O livro eh uma rendicao em quadrinhos da historia da autora, Marjane Satrapi, e conta a sua experiencia de menina durantes os ultimos anos do governo do Xa Reza Pahlevi e o processo doloroso da Revolucao Islamica em 1979.

Desenhado propositalmente com tracos infantis, quase como arte naif mas com toques de arte persa ao longo da historia, o livro surpreende pela delicadeza e falta de maniqueismo ao tratar dos dilemas da sociedade iraniana. Filha de pais intelectuais de classe media, Satrapi presencia desde cedo a critica aa ditadura brutal de Pahlevi e ve tambem os valores liberais serem solapados pelos fundamentalistas. Ha tambem uma discussao interessantissima de como diferentes classes sociais foram afetadas pelos eventos de 1979.

A influencia de Art Spiegelman eh obvia e bem-vinda no trabalho de Satrapi. Assim como Spiegelman, ela estah lancando um segundo volume das suas memorias, em que relata a sua dificil adaptacao aa vida no exilio. Para quem quiser ler em ingles, vale a dica. Resta torcer para que publiquem em portugues.

sexta-feira, agosto 20, 2004

Enfim, as Artes

Segunda-feira comeca oficialmente o ano letivo de 2004-2005. Como disse no outro post, para o bem ou para o mal, a Universidade inicia todos os seus procedimentos burocraticos do ano. Para os alunos e professores o inicio das aulas significa sangue, suor e lagrimas.

Entretanto, apesar do exagero, existe algo que todos esperam ansiosamente todos os anos: a programacao cultural da Universidade. Todos os anos eh de nivel excelente. Nos dois anos que estive aqui, tive o prazer de assistir ao vivo e na boca do palco nomes como Herbie Hancock (um dos melhores shows de jazz da minha vida -- merece um post a parte), Paco de Lucia, Cesaria Evora, Branford Marsalis (com quem tive uma conversa sensacional sobre jazz -- outro post a parte), muita musica classica e algumas bandas de musica cubana, entre outros.

Pois entao, acaba de ser divulgada a programacao deste ano. Estah de primeira. Tem chorinho brasileiro com o Grupo Sax Brasil (o grupo da Daniela Spielmann), tem o violinista Joshua Bell, o chato Bobby McFerrin, a incrivel banda de Jack DeJohnette (quem conhece jazz sabe), o Eroica Trio (as gostosonas da musica classica) e muita musica indiana e africana. Nao estah tao mal. Para quem estah numa cidadezinha no proverbial "fim do mundo", ateh que a diversao nao estah ruim.

quinta-feira, agosto 19, 2004

Post Abortado

Ia escrever hoje sobre o cerco a Najaf, a situacao no Iraque e fazer alguns comentarios.

Infelizmente, recebi a (inacreditavelmente estupida) noticia de que nao poderei fazer os minhas provas como estava programado. Agora, soh em outubro, com sorte. Mais meses de sofrimento inglorio gracas ao esquecimento de uma secretaria do departamento. Ela esqueceu (!!) de mandar os formularios para a reitoria ha dois meses atras para serem assinados pelo reitor autorizando as provas (!!!). Os tres alunos que fariam a prova (incluindo quem vos escreve) ficaram a ver navios. Mais tempo perdido, um semestre atrapalhado antes de comecar.

Vivendo e aprendendo sobre a burocracia universitaria norte-americana. A duas semanas dos exames receber essa noticia foi meio parecido a um soco no estomago. Mas me recuperarei. Ah, fico devendo o post sobre o Iraque, que muito me interessa.

quarta-feira, agosto 18, 2004

Pensar a Guerra

Ontem comecei no doutorado um curso chamado “Pensar a Guerra”, ministrado pelo professor Renato Lessa. O programa é deslumbrante: um exame da guerra a partir das perspectivas da filosofia, história, literatura e cinema. O que significa discutir Hobbes, Montaigne, Clausewitz e Kubrick, entre outros.

Lessa disse que a ciência política “pára às portas de Auschwitz”, isso é, tem dificuldades para analisar o sofrimento extremo, como aquele provocado pelas guerras e massacres, que tendem a ser vistos como expressões do irracional e da bárbarie. O problema é que “guerrear é humano”, parte inseparável da política e da sociedade. Daí a ênfase do curso em material não-acadêmico, como romances, poemas, diários e memórias.

Promete ser uma experiência magnífica e o Lessa é um professor capaz de citar com a mesma desenvoltura “Guerra e Paz”, de Tolstói e “História Social do Arame Farpado” (“O livro é ótimo, só não coloquei na bibliografia senão vocês iam achar que estou maluco”). Ciência política como ela deveria sempre ser: ousada, criativa, sem medo de cruzar as portas de Auschwitz e buscar compreender mesmo o lado mais sombrio do ser humano. Para a próxima aula, Homero (A Ilíada) e Tucídides (História da Guerra do Peloponeso).

terça-feira, agosto 17, 2004

Socorro!

Meu irmão anunciou que vai prestar concurso para espião. Depois da polícia civil e do tribunal de justiça, a Abin. É uma tremenda vocação para fazer parte do aparelho repressivo do Estado. Já o vejo espionando o Ibase, tenho certeza de que para as viúvas do SNI, “sociedade civil é coisa de comunista.”

Um Agradecimento, Obviamente!

Sei que ao fazer isso o blog vai ficar parecendo aqueles testemunhos meio cafonas do Orkut, mas como responder ao post anterior? Como nao preciso rasgar seda para o Mauricio -- e quem o conhece sabe do que estou falando -- prefiro falar sobre a experiencia de escrever para "Os Conspiradores".

Acho que se o blog tem alguma coisa de interessante eh porque eh um grande prazer escrever com o Mauricio. Como eu disse anteriormente, a ideia era manter contato, trocar ideias, nao deixar que uma conversa intelectual e pessoal ficasse em suspenso. Como os leitores que conhecem o Mauricio tambem sabem, eh MUITO dificil encontrar interlocutores de tao alto nivel, simpatia e honestidade quanto o Santoro. Assim como eh pra voces, pra mim eh um prazer imenso ouvir suas ideias e interagir. Apesar de nos vermos tao pouco, eh um dos meus grandes amigos. Se a nossa ideia de conversa via internet prosseguir nos seus intentos, teremos ainda esse blog por um bom tempo. Boas conversas e temas interessantes certamente nao faltarao.

Por estar afastado do Brasil acho que me sinto um pouco como o Gagarin, olhando tudo do alto, reconhecendo os problemas, mas afirmando em bom tom: "Eh Azul!!". Vivemos em uma epoca meio tragicomica, de extremos (sem querer copiar o Sr. Hobsbawn). Ao mesmo tempo em que fico empolgado ao ver algumas coisas boas acontecendo no mundo hoje, a consciencia de que ainda falta um bocado de caminho para seguir adiante faz com que eu tente colocar as coisas em foco, encontrar possibilidades. O barato eh o Mauricio ve as possibilidades e nao tem duvidas de que chegaremos lah, mesmo que com muitas dificuldades. Por isso, meu caro Mauricio, obrigado pela confianca e sigamos em frente! Mas sempre com bom humor, eh claro.

Quanto aos poucos mas leais leitores, o bom da conversa aqui eh que ao mesmo tempo em que eh pessoal, ela eh sempre aberta e as respostas nunca sao faceis (ainda bem!). Obrigado pela amizade indireta que soh o mundo digital pode nos oferecer!

segunda-feira, agosto 16, 2004

História de uma amizade

Li o comentário da Luana ao post do Bruno sobre o Iraque e me vi na necessidade de esclarecer um engano que me honra: não escrevi o texto. Aos que chegaram por aqui pelos meus links, compartilho este blog com um amigo fraterno, autor da maioria das análises sobre EUA. É mais do que hora de apresentar a vocês meu irmão de armas Bruno Borges.

Há três ou quatro anos meu amigo João Daniel me convidou para conhecer alguns de seus colegas no mestrado em Relações Internacionais na PUC. Vimos um filme e depois emendamos numa ótima roda de conversa, onde iniciei três amizades que até hoje cultivo com carinho: Bruno, Oscar e Flávia. Quase trabalhei com esta última e quase dividi um apartamento com o segundo. Com o primeiro, partilho este blog, muitas idéias e alguns textos, como a célebre resenha “quatro níveis de realidade” em Matrix e um artigo sobre América Latina que pode ter sido publicado no México – nosso editor por lá sumiu do mapa, a última notícia é que virou assessor político do PAN.

O fato é que o Bruno terminou a PUC e seguiu para os Estados Unidos, onde cursa o doutorado em Ciência Política na Duke University e trabalha como nosso agente no Império, nos mantendo informados sobre as últimas novidades da política e da academia e enfrentando furacões, professores neoconservadores e o rito de passagem do exame de qualificação. Estejam apresentados. Na próxima temporada carioca marcamos alguma festa para que o Bruno conheça pessoalmente o inacreditável circuito do jornalismo desta cidade.

Hoje o Ibase me propos viajar ao Peru na quarta-feira, para fazer uma palestra sobre participação e democracia. Em circunstâncias normais, teria aceito, mas com minha chefe ausente durante o próximo mês numa série de eventos internacionais, estou responsável por toda a organização no seminário na África do Sul. E ainda vou para a Paraíba no fim de semana, participar de um encontro de movimentos sociais. Em suma, não será desta vez que conhecerei Lima...

domingo, agosto 15, 2004

O Haiti? Procura Pela Selecao Brasileira...

Aproxima-se a data do jogo que a Selecao Brasileira farah contra o Haiti em Port-au-Prince. Nao faltava muito mesmo para usarmos nosso futebol a favor de nossa diplomacia -- os proximos temas serao o Carnaval, as mulheres, o Bumba-meu-Boi, a caipirinha e a feijoada (nao necessariamente nessa ordem). Com o jogo, o governo brasileiro aposta na simpatia sincera que o pais transmite por quase todo o mundo e, especialmente, no Haiti.

O Brasil possui uma enorme tradicao na sua participacao em Missoes de Paz da ONU, isso eh inegavel. O Brasil tambem possui uma incrivel reserva de prestigio no sistema internacional e que sempre utilizou com prudencia. Com vitorias importantes da politica externa atual -- como as disputas na OMC, por exemplo, ou mesmo a coalizao dos paises "medios" com a India, Africa do Sul, etc. -- o Brasil quer "falar mais alto" no mundo.

O grande problema de fazer politica externa assertiva eh que, como jah dizia Tucidides na epoca em que a Grecia promovia Jogos Olimpicos de verdade, um pais precisa antes ter uma politica interna assertiva. Sem isso, as palavras perdem-se no vento. Orgulhoso ficarei no dia em que os famintos haitianos do meu pais sejam saciados, as milicias haitianas do meu pais sejam desarmadas e a desigualdade de renda haitiana do meu pais seja debelada. Ahi sim poderei ouvir as palavras do Presidente Lula sem um frio na espinha: "Hoje no Haiti, amanha em Bagda".

sábado, agosto 14, 2004

Forca de Ocupacao

Depois que li o recente artigo de Mario Sergio Conti para o NoMinimo, me senti na obrigacao de posta-lo aqui. Palavras fortes e criticas pesadas.

Algumas delas: "governo colaboracionista ainda mais escancarado que o do marechal Pétain"; "Vichy on the Tigris"; "em Bagdad a maior embaixada americana do mundo"; "resistência iraquiana tem sido eficaz, para não dizer heróica"; "tocar pandeiro no concerto das nações", entre outras. Nao deixem de le-lo.

sexta-feira, agosto 13, 2004

Diálogo entre os Povos

Semana dedicada à cooperação internacional e à amizade entre os povos. Na segunda, dei uma palestra sobre os problemas sociais do Brasil para um grupo de italianos. Todos membros da mesma paróquia, na região do Vêneto, estão fazendo uma espécie de intercâmbio social com uma associação católica do Rio de Janeiro.

Sempre fico impressionado com a simpatia e o calor humano dessa buona gente. Fazia anos que eu não falava italiano, a língua de Dante me saiu toda espanholada, mas a boa vontade era tanta que a comunicação fluiu fácil. Foi um papo sério (racismo, desigualdade, movimentos sociais, governo Lula) mas também divertido, com direito até a piadas sobre o Berlusconi. E foram tão simpáticos que depois escreveram uma carta ao diretor do Ibase, me elogiando.

A maior parte das minhas tarefas por estes dias está sendo a preparação de uma conferência internacional na África do Sul, que vai reunir representantes de ONGs, sindicatos e movimentos sociais da América Latina e da África. As línguas do evento são inglês, espanhol e português e como os sul-africanos não dominam as duas últimas, tenho cuidado de grande parte da correspondência. São muitos detalhes com passagens, hotéis, programação etc.

O seminário é um dos primeiros passos do "Diálogo entre os Povos", um projeto mais amplo de cooperação Brasil-África, que está previsto para durar três anos e é conseqüência da aproximação diplomática com o continente empreendida pelo governo Lula. Minha ida para o projeto foi muito em função da minha especialização acadêmica e de fato está sendo fascinante participar desse processo, vivenciando na prática as relações internacionais.

Hoje de manhã estava numa reunião com minha chefe e revisávamos as dez mil coisas que tocamos, quando ela comentou “Caramba, essse nosso trabalho é muito bom!”. E é mesmo. Minha sala está repleta de cartazes políticos da Itália, Timor Leste, África do Sul, Brasil... Às vezes olho para eles e para as pessoas caminhando lá em baixo, na avenida Rio Branco e sinto toda a força da nossa humanidade comum, para além das fronteiras e das diferenças culturais. E não consigo evitar uma certa esperança pelo futuro deste planetinha.

Outro Vicio Maldito

Com um furacao se aproximando rapidamente para completar com louvor a sexta-feira 13 de agosto, a ideia eh se esconder e esquecer que o mundo existe. Ainda estou decidindo se permaneco no sofa da Universidade ou se vou para casa e aguento o furacao Charley deitado na minha propria cama. Fica o aviso: se eu nao postar em alguns dias, fui levado para o Mundo de Oz.

Se for para casa, pelo menos poderei aproveitar uma das melhores coisas inventadas neste pais: o servico do Netflix. Pegar filme em locadora eh uma coisa sedentaria mesmo, mas o Netflix consegue ser ainda mais. Voce elabora uma lista de filmes pela internet e eles vao te mandando os DVDs. Quando voce tem tres DVDs com voce, voce manda de volta e eles te mandam mais tres. Por uma taxa mensal, posso ver quase todo o catalogo existente de filmes em DVD. Fenomenal.

Gracas a isso, diversos filmes que nao tive a oportunidade de ver quando passaram podem ser devidamente vistos e aproveitados. Por exemplo, tive a sorte de assistir na ultima semana tres grandes filmes: "Adaptacao", "Antes do Amanhecer" e "Magnolia". Muito diferentes entre si, mas um prazer para cinefilos. Um dos proximos da lista? "O Leopardo" de Visconti, recem-lancado em DVD por aqui.

quinta-feira, agosto 12, 2004

Balzac e a costureirinha chinesa

Ainda os filmes do fim de semana: há quatro anos, fiz uma reportagem sobre gastronomia no Fashion Mall (ah, esse meu passado inconfessável!) e uma das jornalistas presentes comentou comigo sobre um romance que tinha acabado de ler e do qual gostara muito, “Balzac e a costureirinha chinesa”. O enredo: uma jovem do interior da China descobre a literatura em plena Revolução Cultural e isso muda sua vida.

Folheando os cadernos culturais na semana passada, vi que a adaptação cinematográfica do livro tinha estreado, mas sem nenhum destaque por parte da imprensa. Assisti ao filme no domingo à noite e fiquei maravilhado. Ele começa com dois rapazes da cidade chegando a um vilarejo nas montanhas para sua “reeducação” durante os dias difíceis do conflito entre Mao e a velha liderança do Partido Comunista, no início dos anos 70. No campo, eles se apaixonam pela costureirinha do título. Quando encontram um baú cheio de livros estrangeiros proibidos, principalmente literatura francesa e russa (Balzac, Stendhal, Gogol, Dostoievski) resolvem ler as obras em voz alta para a jovem analfabeta.

O filme é de uma leveza impressionante, um hino de amor à vida e à literatura, mesmo nas condições mais adversas. Há seqüências antológicas, como os rapazes narrando filmes para os camponeses, tocando sonatas de Mozart ao violino ou chorando ao ler uma passagem especialmente bonita de Balzac sobre a liberdade.

É também uma história muito boa sobre como livros, e a cultura de modo geral, mudam a vida das pessoas ao mostrar que o mundo é grande e cheio de diversidade e de possibilidades. Nem sempre isso é fácil, e o filme lida bem com isso – não contarei o final, mas adianto aos fãs de teatro clássico que lembra “A Casa de Bonecas”, de Ibsen, que não por acaso foi um estrondoso sucesso na China revolucionária.

O epílogo, ambientado nos dias atuais, é um excelente resumo das grandes transformações que ocorreram naquele país. Parece um pouco o “Brilho Eterno” pela importância dada às lembranças, em especial a juventude – mesmo que passada num fim de mundo, em processo de reeducação e trabalhos braçais.

terça-feira, agosto 10, 2004

Pequeno Dialogo

Dialogo ouvido entre alunos do curso de Ciencia Politica:

"E o Iraque, hein?"
"Eh...A situacao estah ficando problematica. Mas estamos escrevendo a constituicao pra eles, vai dar tudo certo."
"Pois eh...Eu soube que alguns professores estao ajudando a definir como o sistema eleitoral iraquiano vai funcionar..."
"Isso mesmo. O Prof. *** e a Profa. *** estavam escrevendo algumas 'recomendacoes' para o governo do Iraque. Assim que estiver pronta, a constituicao iraquiana vai funcionar as mil maravilhas, tenho certeza. Eh soh uma questao de encontrar as instituicoes certas, misturar com ajuda do nosso governo e, damn, we will have ourselves a great democracy in the Middle East!"
"Com certeza."

Como dizem por aqui, "very scary indeed".

segunda-feira, agosto 09, 2004

Esquecer é morrer um pouco

Enquanto estive no Equador, consegui a proeza de perder 6 festas. É claro que neste fim de semana que eu estava de bobeira no Rio, não tive nenhuma. Aproveitei para lavar o carro e pensei em ir caminhar na praia. Choveu. Sobrou o cinema: vi cinco filmes em quatro dias.

Um dos melhores foi "Brilho eterno de uma mente sem lembranças", um roteiro magistral de Charles Kaufman (o mesmo de "Quero ser John Malcovitch" e "Adaptação"), com Jim Carey provando que é um ótimo ator, quando não está ocupado fazendo caretas.

O enredo: o que você faria se pudesse apagar de sua mente as lembranças ruins? Ou simplesmente, para ficar com Camões, "a grande dor das cousas que passaram"?

No caso do personagem de Carey, é deletar o amor que teve por Clementine (Kate Winslet). O resultado é uma viagem linda e poética pelas memórias de um homem e a conclusão de que mesmo as lembranças mais dolorosas são parte inseparável da nossa identidade. Se recordar é viver, esquecer é morrer um pouco. Belíssimo filme.

A Revolução dos Bichos

Lorde foi levado à veterinária. Ela descobriu que ele tem apenas 6 meses. É grande para um filhote, acho que vai crescer bastante. À medida que está comendo e ficando mais forte, também se torna mais agitado. Desenvolveu o hábito de, por exemplo, devorar os jornais do meu pai. Ele só deixa de fora a Veja, o que confirma que essa revista é tão ruim que não serve nem como comida para cachorro.

Em poucas semanas o número de cães no meu prédio saltou de zero para quatro. Além do Lorde, minha priminha do 1o andar ganhou um labrador e minha tia do 5o está hospedando outros dois animais. Não é exatamente o edifício mais silencioso de Santa Teresa, sobretudo de manhã.

domingo, agosto 08, 2004

Cafe da Manha com Michael Hardt

No semestre passado, eu tinha uma aula que comecava as 9 da manha todas as tercas e quintas. Portanto, acordava cedo, ia para a Universidade e sentava em um dos cafes para ler o jornal enquanto tomava meu espresso matutino antes da dita cuja.

O Prof. Michael Hardt (do Departamento de Literatura de Duke) tinha a mesma ideia que eu. Enquanto eu sentava na mesa do canto, ele sentava-se duas mesas a frente. Depois de umas duas semanas, passamos a nos cumprimentar. A cordialidade parou ali, acho. Nunca fui alem dos "hellos" e "good mornings".

Michael Hardt eh o co-autor de um livro cult chamado "Imperio", que escreveu com uma das lendas da esquerda italiana, o filosofo Antonio Negri. O livro eh uma tentativa de readaptar o marxismo para o mundo globalizado, incluindo a leitura de autores pos-modernos. Foucault, Derrida, Jameson e Zizek sao presencas constantes nos escritos dos dois. Lancado antes do 11 de setembro, o livro ficou velho mais rapido do que aqueles tomos do Toynbee que a gente encontra em qualquer sebo vagabundo.

Agora, estao lancando seu mais novo livro: "Multitude". Aparentemente o livro apresenta caminhos para a superacao da fase globalista do capitalismo. A tal multidao do titulo se encarregarah de colocar a pa de cal na opressao. Veremos.

sábado, agosto 07, 2004

A Volta de Art Spielgelman

Quem eh antenado para quadrinhos alternativos certamente sabe de quem estou falando. Spielgelman foi o criador de uma das mais importantes, influentes e incriveis obras jah publicadas no formato, chamada "Maus". Editada em dois volumes, a obra trata da impressionante historia do pai de Spielgelman, Vladek, um sobrevivente de Auschwitz. O tom original dos livros rendeu ao autor o Premio Pulitzer -- o primeiro concedido a uma obra em quadrinhos. Para quem se interessar, a Editora Brasiliense tem uma edicao em portugues.

Esta semana, Spielgelman volta a Nova Iorque, sua cidade natal, para lancar e promover seu mais novo trabalho, "In The Shadow of No Towers". Desta vez, ele reconta a saga dos novaiorquinos durante os ataques de 11 de setembro de 2001 e o progressivo uso politico e apelativo do evento pelo governo de George Bush.

Esse eh um daqueles trabalhos que dah pra recomendar mesmo sem ter lido. Vou postar mais a respeito assim que puder le-lo.

sexta-feira, agosto 06, 2004

Interessante

Nota publicada hoje n'O Globo, na coluna do Ancelmo Goes. Parece ser muito interessante.

Estado da nação

O Ipea se prepara para uma nova missão, que deve injetar ânimo no órgão de pesquisa.

Um grupo de 50 técnicos produz o que vem sendo chamado de livro do ano.

Inspirado no “Estado da nação dos americanos”, a publicação será uma espécie de prestação de contas sobre todas as áreas do país, sem qualquer exclusão.

Aliás...

O primeiro volume, com a radiografia do Brasil de 2004, será lançado em abril de 2005.

A expectativa é de que o projeto, coordenado por Fernando Rezende, gere cem estudos específicos. O setor relacionado à sociedade civil será responsabilidade do cientista político Wanderley Guilherme dos Santos.

quinta-feira, agosto 05, 2004

Um cachorro e um bom livro

Ontem quando eu saía de casa para o trabalho, um cachorro começou a brincar comigo. Estava com a pata ferida, sangrando e parecia perdido, embora se visse que era bem-cuidado. Desci para o ponto de ônibus e ele me seguiu. Meu pai acabou chamando-o e resolveu cuidar dele. Resultado: temos agora um animal de estimação, batizado de Lorde porque é muito educado e nunca late.

É impressionante o quanto suas expressões são humanas. A cara que ele faz pedindo carinho, ou tentando nos convencer a abrir a porta (não antes de sábado, quando ele deve ser vacinado). Até o jeito que posa para fotos. Fazia anos que eu não tinha um cachorro, vai ser bom.

A leitura da semana é “Behemot ou o longo parlamento”, de Thomas Hobbes, no qual esse extraordinário pensador político trata da guerra civil inglesa do século XVII. É um diálogo entre um jovem e um homem mais velho, que viveu aqueles acontecimentos. Sendo Hobbes o teórico do absolutismo, a narrativa defende o rei contra os ataques do parlamento.

O livro tem percepções brilhantes sobre as disputas políticas e é uma crítica feroz ao clero – qualquer clero. Mestre Hobbes vê a vida em sociedade como uma tragédia que oscila entre dois monstros bíblicos: o poder do Estado (Leviatã) e a anarquia da guerra civil (Behemot).

Voltanto à conexão saudita com o presidente dos EUA, vale ler a resenha de “House of Bush, House of Saud”, de Craig Unger. Parece excelente, mostrando como a Arábia Saudita se tornou o grande aliado americano nos anos 70, e as implicações disto para a própria política doméstica do Império.

Humor Politico

Nossa tradicao de cartunismo politico eh historica. Desde o seculo XIX, a politica brasileira eh retratada por diversos genios do humor, o que inclusive faz com que citar autores especificos fique complicado. Do J. Carlos ao Chico Caruso, temos e tivemos "o fino da bossa".

Como referencia para aqueles que curtem humor politico internacional, recomendo dois sites em especial. O primeiro eh o "deposito" de cartuns da Slate, a revista da Microsoft. Excelente. O segundo eh o arquivo de cartuns de Mike Luckovich, que para mim, eh hoje um dos melhores cartunistas politicos norte-americanos em atividade. Divirtam-se.

quarta-feira, agosto 04, 2004

O Fascinio do Cafe

A leitura continua de dezenas de textos de Ciencia Politca e Relacoes Internacionais deixa qualquer um cansado -- mesmo aqueles que, declaradamente, se confessam interessados e viciados.

Alias, "vicio" foi o que me veio a cabeca lendo um desses textos. Em um dos capitulos de um livro chamado "Analytic Narratives", o cientista politico Robert Bates faz uma interessante "historia analitica" da Organizacao Internacional do Cafe (OIC), instituicao internacional formada em 1962 como uma especie de cartel dos produtores de cafe e liderada pelos dois maiores exportadores: Brasil e Colombia.

Apesar do artigo ser muito interessante (tanto em termos substantivos quanto metodologicos), o tema do cafe em si ficou na minha cabeca. Acho que esse eh um tema sub-explorado e incrivelmente rico. Por sua propria definicao, ele eh claramente interdisciplinar. Pode-se fazer uma historia do cafe, uma antropologia do cafe, uma sociologia do cafe, uma economia politica do cafe e, certamente, ciencia politica e relacoes internacionais do cafe. Eis um tema que eu gostaria de ter tempo e dinheiro para estudar a fundo. Acho que daria varios livros fascinantes (tanto para os autores como para os leitores).

AVISO: Sou viciado na rubiacea; ergo, nao sou uma fonte confiavel. Como dizia a Nathalie do "Invasoes Barbaras": "Il faut jamais faire confiance aux junkies. Ils sont trop habitues a mentir".

terça-feira, agosto 03, 2004

A temperatura em que a liberdade queima

Domingo à tarde fui ver Fahrenheit 11 de Setembro. Como panfleto anti-Bush, funciona, mas achei o filme bastante inferior aos anteriores de Michael Moore, em especial ao Tiros em Columbine, que tinha linguagem e montagem espertíssimas.

Também não gostei das escolhas políticas do diretor. Será que os republicanos são culpados de tudo de ruim que aconteceu nos EUA após os atentados? Qual o papel dos democratas nessa história? Entendo que Moore queira poupar o partido de Kerry por conta da eleição, mas isso acaba enfraquecendo a argumentação. E o que dizer do modo como se comportou a imprensa, as universidades, as associações da sociedade civil?

O ponto forte do F-11/09 é o retrato dos jovens americanos (negros e pobres, ou quase negros de tão pobres) que fazem as guerras do Império. Não são aristocratas, mercenários ou máquinas de matar. Apenas um bando de rapazes e moças sem perspectivas ou estudo, que precisavam de grana. Parecem um time de futebol de subúrbio e não entendem porque estão no Iraque. Aparentam ser boas pessoas, mas empurradas para gestos de crueldade e desespero pela armadilha em que caíram, pela absoluta falta de compreensão da realidade e das pessoas com que precisam lidar.

Será que era diferente na época de Júlio César, Napoleão e Hitler?

segunda-feira, agosto 02, 2004

Huntington, o Genio do Mal

Samuel Huntington conseguiu uma facanha na Ciencia Politica norte-americana. A partir do seu primeiro livro, tornou-se um autor central para a disciplina. "Central" aqui significa que ele eh leitura obrigatoria em qualquer curso serio de Politica Comparada ou de Relacoes Internacionais. A medida em que a disciplina ficava mais tecnica nas decadas subsequentes, ele progressivamente se transformava em um polemista, em que a logica do "falem mal, mas falem de mim" prevalece. Mas por que isso? Quem eh Huntington?

Huntington eh o perfeito exemplo do aluno caxias de pos-graduacao nos EUA. Depois que conseguiu seu PhD em Ciencia Politica por Harvard, ficou por ali mesmo como professor e, entre seus discipulos estah a nata da disciplina neste pais. Para o bem ou para o mal, autores como Lijphart, Horowitz, Keohane, Skocpol, entre muitos outros, respondem intelectualmente por confirma-lo ou contradize-lo. Evita-lo, impossivel.

Seu primeiro livro (de 1957), baseado na sua tese de doutorado, chama-se "O Soldado e o Estado" (com traducao em portugues pela BibliEx) e trata de relacoes entre civis e militares. Sua tese: uma forca militar profissional soh pode existir em uma sociedade conservadora, com ethos realista. A partir dahi, Huntington escreveu em 1968 um outro livro central da disciplina chamado "Political Order in Changing Societies", que talvez seja sua obra prima. De fato, eh seu livro mais interessante. Nele argumenta que sociedades que se modernizam ou crescem rapidamente geram um deficit de governabilidade que pode levar aa violencia politica. Claramente conservador, mas muito bem escrito e argumentado. Depois da publicacao desse livro, Huntington foi convidado por Golbery para ir ao Brasil dar dicas para a tal "abertura lenta e gradual". Golbery sempre foi fan, por razoes obvias.

Depois de duas decadas de marasmo, publicou no inicio dos anos 90 um livro chamado "A Terceira Onda", onde descreve e analisa as transicoes para a democracia quase simultaneas de varios paises nas decadas de 70 e 80. Muito chato, mal escrito, poucas ideias interessantes. Ateh mesmo o titulo foi copiado do livro "Poliarquia" de Robert Dahl, escrito em 1970.

Cerca de tres anos depois, publicou na revista Foreign Affairs um artigo que ficou famoso, chamado "O Choque de Civilizacoes?". Nele, Huntignton dah uma resposta conservadora aa tese do "fim da historia", propondo que, com o fim da Guerra Fria, o mundo ficarah dividido em lutas civilizacionais. O argumento gerou um livro em 1995, que eh mal escrito e com premissas dificieis de sustentar, desde a sua definicao de "civilizacoes" ateh os casos empiricos que ele usa para "provar sua tese".

Seu ultimo trabalho, sobre a influencia "nefasta" dos hispanicos para a nacao norte-americana eh uma reciclagem do argumento do "Choque de Civilizacoes", agora aplicado aos EUA. Com argumentos muitos fracos, Huntington virou uma figura engracada -- na academia norte-americana a grande maioria o menciona para critica-lo. Jah estah ficando velho, mas nao desiste de polemizar. Curiosidade morbida: Huntington sempre foi partidario dos democratas.

domingo, agosto 01, 2004

A Politica Como Futuro

Esta semana a discussao no blog foi interessantissima. Enquanto eu relia varios posts e os comentarios feitos, nao pude deixar de notar a diferenca marcante entre os tons das minhas mensagens e as do Mauricio. Apesar de nao proposital, isso foi muito impressionante. Tentando fazer filosofia politica disso (maldita mania de Cientista Politico!), preciso fazer alguns comentarios especificos.

(1) Eu tenho a impressao de que o otimismo realista do Mauricio ao falar da politica latino-americana eh o perfeito contraponto ao pessimismo de meios e fins que eu vejo na politica norte-americana e do Primeiro Mundo em geral. Isso eh uma resposta em si mesma para a questao dos modelos a serem seguidos por nossos paises. Cada vez mais eu me convenco de que qualquer mudanca na visao e pratica da politica global tem que vir obrigatoriamente do sul. No meu humilde ponto de vista, a politica no hemisferio norte vem secando e definhando a ponto da se tornar irrelevante, oferecendo muito pouca coisa para seguirmos em frente. Enquanto isso acontece por aqui, no hemisferio sul ha uma energia e renovacao da politica participativa que merece ser comemorada. Nao aquele oba-oba ingenuo, mas formas alternativas reais de mobilizacao e participacao que estao surgindo atraves de uma articulacao cada vez mais pensada e democratica entre varios grupos na sociedade. Temos varios problemas mesmo, ha muito o que fazer; mas acho que a saida estah em nossas maos, talvez como nunca esteve.

(2) A politica como ciencia talvez seja tambem a politica como vocacao, brincando um pouquinho com Mr. W. Pensar a politica e suas implicacoes eh uma fantastica experiencia. Nao poderia concordar mais com o Mauricio. Se nao me engano, o sociologo Peter Berger escreveu no seu livro "Perspectivas Sociologicas" que a Sociologia era "o melhor e mais nobre passatempo mental" que ele jah havia conhecido. Posso dizer o mesmo (e ateh mais) da Ciencia Politica, que me deu a honra de conhecer e compartilhar ideias de pessoas sensacionais em todos os sentidos -- pessoas humanas, preocupadas com a mudanca, com utopias sim, mas com um afiadissimo senso pragmatico, de "vamos a obra". Isso eh cada vez mais indispensavel para o desenvolvimento de uma democracia profunda na America Latina.

(3) Por fim, quero dizer que Gorki estah certissimo, Mauricio. A vida e o futuro nao pertecem mesmo aos canalhas. Eles ainda sao dos que acreditam na mudanca e trabalham para consegui-la. E vamos em frente com otimismo no futuro e feh na vida!

Equador: a semente e o vulcão

Bom estar de volta. Nada como um domingo de sol no Rio de Janeiro, regado a feijão preto e com Ana Carolina cantando no CD Player (sempre que estou fora, sinto uma tremenda saudade física da música brasileira). Ontem ainda estava bastante tonto, por conta da diferença de altitude, mas agora estou novamente bem e pronto para fazer um balanço do Forum Social das Américas e da viagem ao Equador.

É fascinante a riqueza dos movimentos sociais e políticos da América Latina, em particular o indígena. Nosso continente há muito deixou para trás o esteriótipo da política dominada por generais e fazendeiros. A sociedade se tornou bem mais complexa e diversificada, com líderes e ativistas qualificados. Conheci pessoas inteligentes, articuladas e interessantes de quase todos os países da região.

Contudo, a política oficial não acompanhou o ritmo dessas transformações. Nossa elite política continental é, em comparação, velha, sórdida, antiquada. Caciques oligárquicos do interior ou tecnocratas formados nos EUA. Claro que há exceções, porém no geral os partidos me parecem fora de sintonia com o que há de melhor em nossas sociedades.

Penso num personagem de Górki que diz que existem muitos canalhas neste mundo, mas que nem a vida nem o futuro pertencem a eles. Quero acreditar que o mesmo será verdade para nossa América, e que vi algo como a semente de um novo continente: democrático, multicultural, moderno, progressista.

Evidente, ninguém ignora os problemas que nos afligem. Desigualdade, pobreza, violência, corrupção, instituições políticas ineficazes. Um vulcão social latente, que aqui e ali expele fumaça mas nunca explode. Miguel Astúrias, o Nobel de literatura guatematelco, também usou o vulcão como uma metáfora para a "grandeza impotente" da América Latina.

Entre sementes e vulcões, dificuldades e esperanças, vamos indo. Quando comecei a me interessar por política, ela era um modo de mudar a sociedade. Depois descobri que é, com mais freqüência, outras coisas: uma janela para o mundo maior, para além dos limites mesquinhos do cotidiano; uma maneira de conhecer pessoas e fazer amigos; um passatempo mais divertido do que novelas (com direito a heróis, vilões, comédia, drama e suspense). Os ativistas mais legais que conheço são aqueles que incorporaram essa dimensão humana da política. A alegria do caminho é tão importante quanto os objetivos finais. Caminhemos.

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