quinta-feira, novembro 30, 2006

Democracia em Cena


A cena teatral em Buenos Aires é muito rica e com uma cultura cosmopolita, aberta ao mundo. Na quarta fui ao Centro Cultural San Martin assistir à peça "Democracia", de Michael Frayn. Este excelente espetáculo é uma dramatizaçäo do escändalo de espionagem que envolveu o primeiro-ministro socialista da Alemanha Ocidental, Willy Brandt.

Brandt foi eleito premië em 1969, apoiado pela juventude de esquerda que repudiava o passado militarista alemäo. Seu governo se baseava numa frágil coalizäo dos socialistas com os liberais e é notável que nesse quadro de fragilidade ele tenha conseguido uma realizaçäo estupenda: a chamada Ostpolitik, a aproximaçäo diplomática com a Alemanha Oriental, a URSS e a Polönia, que lhe rendeu o Nobel da Paz.

Contudo, o governo Brandt ruiu quando se descobriu que um de seus assessores mais próxmios, Gunther Guillaume, era na realidade um espiäo a serviço da Alemanha Oriental. A peça conta a história desse relacionamento, mostrando como Gunther ganha a confiança de Brandt e analisando de maneira soberba as apostas e riscos políticos do premië.

Gunther inicia seu percurso como um modesto funcionário, o homem que tira fotocópias e arruma as cadeiras. Aos poucos vai ascendendo e se tornando essencial ao funcionamento do governo, conquistando o afeto e a simpatia de Brandt. Uma das contradiçöes de Gunther é que ele de fato admira o homem a quem espiona. Curiosamente, se torna um de seus aliados mais confiáveis no jogo de rivalidades que se instaura dentro do Partido Socialista.

"Democracia" é talvez um título inadequado para uma peça que poderia se chamar "Poder" ou "Confiança", pois estes säo os temas principais da obra de Michael Frayn. Mas é sem dúvida um texto primoroso, teatro político de primeiríssima categoria, enriquecido pelas ótimas atuaçöes dos dois protagonistas. A açäo é quase toda ambientada nos anos 70, mas há um breve epílogo após a queda do muro de Berlim que ajuda a dar o sentido histórico da época turbulenta vivida por Brandt e por Gunther, sua eterna sombra.

quarta-feira, novembro 29, 2006

Facundo


Imaginem como seria o Brasil se Euclides da Cunha, após escrever "Os Sertöes", se tornasse presidente da República e implementasse o melhor sistema de educaçäo pública do continente. Essa é uma analogia para entender o papel de Domingo Faustino Sarmiento na política argentina, em especial a partir de sua obra-prima, "Facundo".

Sarmiento fez parte da oposiçäo ao caudilho Juan Manuel de Rosas, que foi o líder político do país durante mais de duas décadas, no contexto turbulento da guerra civil entre unitários e federais. Sarmiento se exilou no Chile enquanto Rosas aprofundava o autoritarismo e desenvolvia uma política externa täo conflituosa que ao fim foi derrubado por uma coalizäo onde metade dos soldados eram do Império do Brasil.

Foi no exílio que Sarmiento escreveu "Facundo", que num primeiro olhar é a biografia do caudilho Juan Facundo Quiroga (o sujeito da imagem), um tirano que se apoderou da província de La Rioja e foi aliado de Rosas. Na realidade, o livro é muito mais do que isso: uma análise brilhante, e äs vezes cruel, das condiçöes sociais que levaram à instabilidade política e à violëncia na Argentina da primeira metade do século XIX.

Facundo é visto por Sarmiento como a personificaçäo dessas tendëncias selvagens, num contraste - por vezes muito forçado - entre civilizaçäo e barbárie, cidade e campo. Ao longo do livro, a figura de Facundo se confunde com a de Rosas, em termos políticos a obra é um panfleto poderoso contra este último.

É também um programa político de reforma: educaçäo, livre comércio, imigraçäo européia e reforma agrária. Sarmiento se tornou presidente cerca de 20 anos depois da publicaçäo do livro. Colocou quase toda sua agenda em prática, menos a distribuiçäo das terras, que nunca conseguiu a aprovaçäo da elite rural.

A ironia da história é que quando Sarmiento era presidente, foi publicado na Argentina o "Martin Fierro", de Jose Hernandéz. É uma ode ao gaucho, ao peäo do campo, o mesmo tipo social atacado por Sarmiento. Àquela época, um modo de vida já em extinçäo diante da modernizaçäo agrícola e da imigraçäo massiva.

"Facundo" e "Martin Fierro" continuam lado a lado como grandes clássicos da literatura argentina, embora expressem visöes distintas e talvez incompatíveis.

segunda-feira, novembro 27, 2006

Mil Faces de Evita


No domingo visitei o Museu Evita. Ele foi inaugurado ano passado e ainda näo consta em vários guias de turismo - só fiquei sabendo de sua existëncia porque ele está listado no mapa turístico que peguei no quiosque da prefeitura.

O museu näo é muito grande mas conta a história de Maria Eva Duarte de Perón em detalhes, com fotos, vídeos e objetos pessoais. O mais impressionante säo as imagens de seus funerais - que duraram 14 dias - e o registro da manifestaçäo que pediu a libertaçäo de Perón em outubro de 1945, quando ele foi preso por seus rivais no governo.

O peronismo de modo geral, e Evita em particular, continuam a ser altamente polëmicos na Argentina e nesse sentido o museu é muito interessante tanto pelo que silencia quanto pelo que mostra. Näo há mençöes às acusaçöes de corrupçäo, nem à campanha que o grupo guerrilheiro Montoneros fez pela devoluçäo de seu cadáver.

Também senti falta de uma seçäo que mostrasse as representaçöes de Evita, uma vez que ela virou um dos grandes mitos argentinos. O livro de visitas do museu tinha assinaturas dos EUA, Irlanda, Canadá, Finländia... Certamente muitas dessas pessoas vieram atraídas pelo musical em que Madonna interpreta Evita.

Uma turista americana escreveu que gostaria que lhe explicassem porque Evita despertou tanto ódio, algo que näo fica claro no museu, onde se destacam suas atividades filantrópicas e sociais. Na foto que ilustra este post, Evita chora abraçada a Perón, ao anunciar à multidáo que desiste de concorrer à vice-presidëncia.

Outra desonestidade do museu é colocar o nome de Victoria Ocampo como uma lutadora, ao lado de Evita, dos direitos das mulheres. Ocampo foi uma intelectual brilhante que fundou a revista Sur, provavelmente a melhor publicaçäo cultural da América Latina na primeira metade do século XX. Ela de fato batalhou pela emancipaçäo feminina, mas era de uma família aristocrática e foi opositora ferrenha do peronismo, chegando a ser presa por conta disso.

O museu pertence ao governo federal e foi inaugurado na gestäo Kirchner, que se vincula às tendëncias de esquerda do peronismo, que tiveram seu auge no início dos anos 70. Neste país a história parece sempre presente na política, mas talvez isso seja uma espécie de maldiçäo.

sábado, novembro 25, 2006

Hermanos

- Quando foi que vocë chegou a Buenos Aires, Mauricio?
- Há trës semanas.
- Só isso? Näo é mais tempo?
- Só isso, cheguei dia 1. É uma cidade fácil de se adaptar...
- Alguém mais vai querer bife de chorizo?
- Vou de costeleta de porco, obrigado.
- E a crise das papeleras, hein?
- Rapaz, que coisa ridícula... Vocë ouviu a professora falando do risco de conflito armado?
- Vocë acha que chegaria a essa escala de loucura?
- Este país é maluco. Lembre-se de que quase fomos 'a guerra com o Chile, em 1978.
- Bom, entäo deveríamos criar um Batalhäo Patriótico na universidade, como nos tempos da independëncia, e participar da reconquista do Uruguai.
- Bem, temos aqui soldados da Argentina, Brasil, Colömbia, El Salvador...
- Caramba, é só abrir um espaço e lá vem os brasileiros com mais um projeto de dominaçäo hegemönica no continente!
- Alguém mais quer vinho?
- Eu só queria entender porque vocës estäo no Haiti... O Brasil quer a vaga no Conselho de Segurança, o Chile busca liderança na América Latina...
- Aqui a política externa é sempre por causas domésticas, eleitoreiras.
- E depois criticar é o esporte nacional. Junte dois argentinos numa mesa e vocë terá trës posiçöes completamente diferentes.
- E os bloqueios de estradas e ruas? Ontem os alunos de segundo grau fecharam uma avenida porque eram A FAVOR da política do governo!
- Só para näo perder o hábito?
- Pois é, vocës parecem os franceses do século XIX, fazem uma barricada a cada 10 minutos.
- Pessoal, temos que voltar ao seminário. A conta!

quinta-feira, novembro 23, 2006

Argentina Latente


No La Nación desta quinta há um artigo que fala sobre a necessidade de ter trës vidas para poder aproveitar todas as oportunidades culturais de Buenos Aires. Ë assim que me sinto. Ontem foi Dia da Música e houve apresentaçöes em vários locais da cidade. Assisti a um ótimo quinteto de cordas na praça San Martin. O programa foi de Mozart e Schubert a Gardel.

Depois segui ao Centro Cultural San Martin (que apesar do nome, fica na Avenida Corrientes, a uns 20 minutos de caminhada da praça) e vi a pré-estréia do documentário "Argentina Latente", de Fernando Solanas. É o terceiro episódio de uma série de quatro sobre o estado atual do país. Os dois primeiros foram "Memória do Saque" (sobre o caminho para a crise de 2001) e "A Dignidade dos Ninguéns" (sobre os novos movimentos sociais).

Solanas exibiu ontem cerca de 30 minutos do novo filme, que ainda está sendo finalizado. O foco agora säo os potenciais humanos e científicos da Argentina, algo muito forte num país que apesar de tudo ainda tem um bom sistema educacional. Os trechos mostrados falavam do esforço para reerguer a indústria naval e de um grupo de trabalhadores numa "fábrica recuperada", isto é, assumida pelos funcionários após falëncia financeira.

Em ambos os casos havia uma vinculaçäo muito forte da luta atual com o passado recente, de resistëncia aos desmandos do Menemismo e, mais ainda, ao terror de Estado durante a ditadura militar. Os entrevistados choraram em tela ao relembrar o período autoritário e depois, ao se apresentaram ao público, foram às lágrimas novamente. Muitos fizeram o mesmo na platéia. O momento mais emocionante foi quando um rapaz que tem minha idade contou que seus pais foram assassinados pelos militares e descreveu as torturas que eles sofreram.

Aqui nunca é possível esquecer que houve uma ditadura no país. É um constraste forte com relaçäo ao Brasil. Claro, aqui foram 30 mil mortos, uma política econömica desastrosa, a guerra das Malvinas e um sério conflito de fronteiras com o Chile. Traumas nacionais.

O público de Solanas é uma minoria militante e aguerrida, mas de modo algum isto é representativo do estado atual dos argentinas. O próprio cineasta comentou que seus filmes ficam poucas semanas em cartaz e criticou a apatia do país diante da persistëncia da corrupçäo e do autoritarismo.

Para mim, fica a marca das contradiçöes. O mesmo país onde se escuta Mozart nas praças também tortura e mata toda uma geraçäo de líderes potenciais. E a repressäo social continua. Ontem a prefeitura de Buenos Aires começou a impor uma lei para restringir a entrada de catadores de papel na cidade. O pretexto é a probiçäo de veículos de traçäo animal, mas me parece que o fator-chave é a segregaçäo na periferia da populaçäo mais pobre.

Mas concordo com Solanas que o potencial latente da Argentina é enorme, é torcer para que os hermanos consigam desenvolvë-lo.

terça-feira, novembro 21, 2006

Algo habrán hecho



"Eu pensava que a coisa mais apaixonante do mundo era uma tourada, até que vi dois argentinos discutirem política."

Octavio Paz, poeta mexicano


A TV argentina näo é exatamente a gloria cultural do país, mas aqui e ali se encontram programas muito bons. Na semana passada estreou a segunda temporada de "Algo habrán hecho por la história argentina", apresentado pelo jornalista Mario Pergolini e pelo historiador Felipe Pigna.

A série é uma dramatizaçäo de episódios importantes da história do país. A primeira temporada cobriu a primeira metade do século XIX e esta irá até 1900. Pigna está em primeiro lugar nas listas dos mais vendidos com o terceiro volume de sua série "Los Mitos de la História Argentina", na qual é baseado o programa de TV. Aliás, vale a pena conferir seu site pessoal.

Poderia ser apenas uma espécie de telecurso segundo grau, mas o que torna Algo Habrán Hecho interessante é a narrativa agil e esperta, com senso de humor e questionamentos críticos com relaçäo a alguns dos cänones da história argentina. Pergolini e Pigna visitam os lugares onde ocorreram as grandes batalhas e conspiraçöes, interagem com os personagens e fazem comentários irönicos. Por exemplo, no episódio de segunda foi sobre a Guerra do Paraguai:

"Disseram que Solano López era uma ameaça à segurança regional, que era preciso detë-lo, etc"
"E encontraram armas de destruiçäo em massa?"

O programa é polëmico porque o sucesso de Pigna incomoda boa parte dos historiadores acadëmicos, que o acusam de simplificar a história e transformá-la numa espécie de romance. Às vezes isso ocorre. A visäo das causas da guerra do Paraguai é baseada numa interpretaçäo do país como um exemplo de desenvolvimento que incomodava a Inglaterra, algo que foi comum nos anos 60 e 70 mas foi totalmente descartado pelos estudos contemporäneos.

Ainda assim, o programa é uma excelente ferramenta didática, do tipo que daria um bom debate em sala de aula. Há também um toque de humor no título, que significa literalmente "Eles devem ter feito alguma coisa...", expressäo que era usada para se referir às vítimas da ditadura militar. Näo por acaso, o último livro de Pigna tem uma bela dedicatória que fala daqueles que quiseram mudar o país e sempre foram atirados ao mar, assassinados na calada na noite ou "desaparecidos", desde os tempos da guerra de independëncia.

segunda-feira, novembro 20, 2006

Um Trem para a América Latina



Várias das pessoas a quem tenho entrevistado falam da identidade européia da Argentina, que historicamente buscou aproximar-se mais da Inglaterra, Espanha e Itália do que do resto da América Latina. "Somos Europa", ouvi várias vezes. Contudo, a geraçäo mais nova, como meus alunos na universidade, comentam que a crise de 2001 fez ver os argentinos que seus laços com as outras naçöes latino-americanas säo muito fortes. Isso também ficou claro quando no sábado tomei um trem para Tigre, município vizinho a Buenos Aires.

Eu e uma amiga pegamos o trem na Estaçäo Retiro, no centro da capital, e por quase uma hora ele percorreu os subúrbios e a regiäo metropolitana de Buenos Aires. A paisagem já impressiona: perto da estaçäo há uma grande favela, cuja miséria nada fica a dever ao Brasil. Os passageiros me fizeram pensar no surgimento do peronismo e na descoberta por parte da elite portenha da "Outra Argentina", aquela dos "cabecitas negras" ou do "aluviäo zoológico" que sempre foi a base social de apoio de Perón e de seus herdeiros políticos. O movimento no trem é muito parecido com o que existe no Brasil. Pessoas passam vendendo de tudo, canetas, agendas, mapas, CDs piratas, santinhos etc.

Tigre é uma pequena cidade adorável, um lugar de veraneio junto ao delta do rio. Passamos uma tarde muito agradável passeando a pé e de barco pelos arredores, onde a elite tem casas de campo e até um clube de remo, que obviamente se chama Rowing Club. Um Trem para a América Latina, um Barco para a Europa.

Näo é nada fácil para a elite e a classe média se adaptarem a esta nova Argentina, e acho que isso em grande medida explica o tom melancólico que tem muito da produçäo artística contemporänea do país, em particular o cinema. Sempre fica o sentimento de algo importante que se perdeu, do que mestre Camöes chamaria "a grande dor das cousas que passaram".

A personificaçäo desse estado de espírito foi um senhor que vi tocando acordeon, em frente ao shopping center perto do meu apartamento. A melodia era tristíssima e ele foi tratado com indiferença pelos passantes e espectadores. Nenhum aplauso sequer. Ficou em silëncio, como se olhando para dentro de si mesmo, ou para o passado. Era um homem idoso, que parecia ter tido melhores dias. Fiquei imaginando sua história, o que teria acontecido em sua vida. Poucas vezes vi uma imagem täo forte de abandono, de alguém que se tornou dispensável e foi posto à margem da sociedade.

Que ele tenha um memorial nesta pequena crönica.

sábado, novembro 18, 2006

Isabel Perón


Por estes dias li uma biografia de Isabel Perón, terceira esposa do general e presidenta da Argentina nos difícilimos dias de 1974 a 1976. Sabia pouco sobre ela: era dançarina de cabaré quando conheceu Perón, seu governo foi um desastre e culminou no golpe militar que instaurou a pior ditadura da América Latina. O livro confirma essas impressöes, mas a realidade é mais interesante, diversificada e contraditória.

Isabel era o nome artístico - e depois político – de Maria Estela Martinez. A pesar do ofício, ela era uma moça de classe média tradicional, católica e prendada, que sabia tocar piano e falar francës. Mas também tinha um espírito rebelde e inquieto que a levou a romper com a familia e tentar uma mal-sucedida carreira artística. Conheceu Perón num cabaré, quando ele estava exilado no Panamá, já viúvo de Evita.

O idoso ex-presidente se encantou com a mulher bonita, 36 anos mais jovem, e totalmente dedicada a ele. Ela o acompanhou no exílio na Venezuela e finalmente da Espanha, onde formaram uma corte um tanto bizarra, mistura de sindicalistas peronistas, franquistas e sob a influëncia de José Lopez Rega, um policial dado a práticas místicas que virou secretário e faz tudo do casal, obtendo grande controle sobre Isabel.

Perón a usou como mensageira política na América Latina e quando recebeu permissäo para voltar ao país, fez com que ela fosse nomeada sua vice-presidente. O velho caudillo, sempre desconfiado, nao queria rivais ainda mais num momento de saúde frágil. Perón morreu meses depois de asumir a presidencia e Isabel recebeu um fardo muito mais pesado do que estava preparada. Crise econömica, violencia política correndo solta entre militares, guerrilhas, sindicalistas e o peronismo dividido e assustado com o “bruxo” Lopez Rega. Só podia acabar mal.

A autora da biografia, a historiadora Maria Saenz Quesada, analisa muito bem o papel público de Isabel. Sem o carisma de Evita, näo procurou competir com ela, mas tentou se apropriar de sua imagem e usar o comportamento de uma distinta senhora de classe média argentina. A ditadura a manteve presa por cinco anos e depois disso ela teve pouca participaçäo na vida política do país. Ainda vive, na Espanha, onde joga cartas com as velhas damas do franquismo. Um tanto fantasmagórico.

Saenz Quesada diz que o período da ditadura continua vivo na memoria, mas que Isabel foi esquecida. Certíssimo, até no show de tango que vi ontem se falava dos militares. A terceira esposa de Perón, contudo, virou um trauma nacional pesado até para este país täo acostumado a catástrofes.

***

Agora à tarde devo fazer uma pequena viagem de trem e navio para a cidade de Tigre e pelo delta do rio que a banha. Amanhä a idéia é passear em Buenos Aires por La Boca, Puerto Madero e Palermo, como despedida de uma amiga brasileira que parte em alguns dias.

quarta-feira, novembro 15, 2006

A Cidade da Cultura


O Rio de Janeiro tem uma boa vida cultural, mas a de Buenos Aires é simplesmente excepcional. É incrível a quantidade de exposiçôes, festivais e possibilidades artísticas disponíveis em teatros, livrarias e cinemas. Durante a semana, meu ritmo de trabalho é bastante puxado, mas aos sábados e domingos me junto com amigas brasileiras que também estudam por aqui e saímos pela cidade aproveitando a oferta cultural.

O passeio que mais gostei de fazer foi pela Avenida Corrientes. Essa rua concentra uma enorme quantidade de livrarias, sebos e teatros e tem um clima todo particular. Enquanto se procura por um livro ou se compra uma entrada teatral com desconto, eh possivel esbarrar em grupos de atores vestidos com os figurinos dos palcos, anunciando seus espetaculos.

Na Corrientes está localizado o Centro Cultural San Martin, um dos melhores da cidade. Hoje à noite irei ao teatro lá, no sábado vi uma exposiçao de fotografias espetacular, Violencias, de Eduardo Longoni, sobre as repressöes políticas na Argentina, da ditadura militar às manifestaçoes de 2001. Um lembrete do que é a história conflituosa deste país.

Outra boa experiëncia foi comprar a revista "Gatopardo", editada na Colombia mas que conta com a colaboraçao de jornalistas de toda a América espanhola. O tema desta ediçao é o racismo, com reportagens sobre o crescimento do neonazismo no Chile, os conflitos na Bolívia e também o aumento da violëncia e da desigualdade na Venezuela. Os textos sao bem escritos e longos, alguns tëm mais de 10 páginas. A seçäo cultural também é ótima, em particular sobre literatura.

Näo há nada sobre o Brasil na revista. Aliás, é curioso como nas lojas de discos há um setor com "música latino-americana" e outro com "música brasileira", ao passo que nas livrarias os autores brasileiros ficam na seçäo "literatura latino-americana". Qual é afinal o lugar da cultura do nosso país neste continente?

segunda-feira, novembro 13, 2006

A Visäo do Outro



Nesta manhä dei uma aula na universidade sobre como a política externa da Argentina é encarada no Brasil. O foco foi o governo Menem, meu tema de pesquisa, pois naquele momento houve um giro que buscou "relaçöes carnais" com os EUA, uma ruptura com a história de distäncia e desconfianças entre Buenos Aires e Washington. Mas também tratei do período atual, dada a curiosidade que há por aqui sobre Lula.

Ressaltei os objetivos diversos da Argentina e do Brasil com relaçäo ao Mercosul. O governo Menem via no bloco o primeiro passo para um processo de liberalizaçäo comercial mais amplo, de adesäo ao Nafta ou à Alca, enquanto para o Brasil a integraçäo regional é uma maneira de consolidar posiçöes de liderança na América do Sul, além de ter um caráter bem mais protecionista em termos de tarifas.

Outro aspecto que discuti com os alunos foi a visäo que os argentinos tëm de sua própria história como um declínio com relaçäo à era da prosperidade agrário-exportadora do início do século XX. No Brasil, a história nacional está muito mais vinculada com o fortalecimento do Estado e do processo de industrializaçäo. Comentei com eles que me impressiona a "presença da história" no cotidiano argentino, com inúmeras referëncias ao peronismo, à ditadura militar etc. Também questionei a visäo de certos autores argentinos que afirmam que o Brasil sempre foi aliado dos EUA, pois esta é uma caracterizaçäo que só se aplica de fato até a década de 1950.

Tudo isso gerou um debate muito rico em sala de aula, que me deu várias idéias para a pesquisa, mas o que mais gostei foi a discussäo sobre a liderança do Brasil na América do Sul. Disse aos estudantes que há tensöes entre o projeto de integraçäo regional e as ambiçöes internacionais brasileiras, além de preconceitos e racismo na maneira pela qual nosso país se relaciona com os vizinhos. Afirmei que a liderança traz custos e que os brasileiros sequer sabemos compartilhar poder dentro do nosso país desigual e violento, quanto mais dividir influëncia em um bloco regional.

A identidade - seja a individual, seja a nacional - sempre se constrói a partir do contraste com o Outro. Sou brasileiro porque näo sou argentino ou chileno. E a visäo do Outro também nos enriquece e nos ajuda a nos compreender. O clima de discussäo aberta e fraterna na aula também levou a questionamentos por parte dos argentinos, que me disseram que a crise de 2001 levou o país a se redescobrir parte da América Latina, deixando de lado interpretaçöes anteriores que acreditavam que ele era mais próximo da Europa ou do Primeiro Mundo.

Agora, de volta às leituras. E amanhä devo começar as entrevistas para a tese com políticos e diplomatas.

sexta-feira, novembro 10, 2006

Cenas Portenhas

Anúncio colado nos muros:

¿Estás preparado para la verdad?

Congresso UFO, Buenos Aires, 2006.


***

Anúncio no suplemento cultural da prefeitura, distribuído gratuitamente:

"Se vocë tem dúvidas sobre sua identidade e acredita que pode ser filho de desaparecidos políticos, entre em contato com as Avós da Praça de Maio" (segue um endereço na Internet).

***

As meninas usam cachecol.

Os velhos andam com um lenço no bolso do paletó.

Senhores väo de terno ao cinema.

Elegäncia de outros climas. E de outros tempos.

***

Crianças com traços indígenas vendem flores na porta do shopping center, ou pedem trocados na calçada.

Homens com traços indígenas vendem guarda-chuvas, colare, bugigangas.

Pessoas de pele mais escura väo para as ruas à noite e recolhem papeläo, sucata, o lixo nosso de cada dia.

Apesar dos cafés e das livrarias, näo estou na Europa meditarränea. Definitivamente, isto aqui é América Latina.

***

O La Nación entregou nesta semana seu prëmio literário de melhor romance para uma obra chamada "Bolívia Construciones", sobre a relaçäo de dois operários bolivianos com a família porteña de classe média para quem trabalham. O autor, um jornalista que publicou o livro sob o pseudönimo Bruno Morales, fez um discurso emocionado na cerimönia e doou o prëmio de dezenas de milhares de reais para um associaçäo de defesa dos imigrantes bolivianos.

Outro autor, Cesar Aira, acabou de lançar um romance sobre um jovem pit-boy que acaba se tornando amigo dos cartoneros.

Os dois estäo na minha lista de compras, mas só mës que vem. Neste, há trabalho acadëmico a ser feito.

***

O clima na universidade é ótimo. Alunos de vários países, diplomatas, funcionários da ONU. Ainda bem, porque chego a passar 12 horas diárias por lá. A pesquisa está indo maravilhosamente bem, melhor do que eu imaginava.

***

O önibus que tomo para a universidade atravessa Palermo Chico, deve ser a maior concentraçäo de renda da América Latina, aliada a um bom gosto estético totalmente ausente, digamos, na Barra da Tijuca.

O trajeto inclui o Jóquei Club, a Sociedade Rural Argentina (ponto de encontro da oligarquia mais reacionária) e os quartéis do exército de onde saíram algumas das rebelióes carapintadas dos anos 80. Às vezes sobe um senhor em traje de montaria completo, com direito até a chicote.

***

Hoje fui num importante centro de estudos internacionais. Comprei dois livros, biografias sobre diplomatas argentinos que foram importantes nas relaçöes com o Brasil. Estanilao Zeballos foi o arquiinimigo do Baräo do Rio Branco, Ramon Cárcano ajudou a serenar os änimos e depois foi um competente embaixador na Era Vargas. Os computadores do centro traziam como fundo de tela imagens católicas. Me senti na TFP. Há uma parcela muito conservadora da sociedade do ponto de vista dos costumes e das religiöes.

***

Os argentinos usam o corte de cabelo curto na testa e longo na nuca. Mullets. Numa freqüencia que no Brasil só é adotada por categorias sociais muito particulares, como cantores sertanejos. Preciso me lembrar disso e tomar cuidado quando for cortar o cabelo.

***

Calle Florida, banca de jornal. Reproducao da primeira pagina do dia da morte de Evita. Mais adiante, outra banca com imagens de Che Guevara numa nota cubana e de um Maradona quase adolescente. O poder dos mitos. Que demoram a morrer. Talvez apego demais ao passado.

***

Almocei com a única argentina vegetariana da história do país. Comemos huamaca, um prato do norte, fronteira com Bolívia. É uma espécie de bolho de milho e queijo, vem embrulhado numa folha. Gostei.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Yo Presidente



Ontem assisti ao documentário "Yo Presidente" no qual däo entrevistas os chefes de Estado que governaram a Argentina desde que o país voltou a ser uma democracia, período turbulento que incluiu dois atentados terroristas contra associaçöes judaicas, hiperinflaçäo, saques, corrupçäo generalizada, a gigantesca crise de 2001 e meia dúzia de governos interrompidos. Só Menem conseguiu cumprir seus dois mandatos até o fim.

O tom do filme é irönico e bem-humorado, em alguns momentos lembra Michael Moore, mas sem tanta contundëncia.

Diante de um quadro täo turbulento, o que impressiona é a banalidade dos presidentes, embora eu excetue Alfonsin (1983-1989) que tomou decisöes difíceis e importantes, como impulsionar o processo de integraçäo com o Brasil. Ainda assim, seu depoimento no filme é pouco mais do que dizer que seu governo foi ótimo, como qualquer chefe de almoxarifado que defende sua gestäo na hora do café.

Ainda assim, há um contraste marcante entre o austero apartamento de classe média em que Alfonsín recebe a equipe e a mansäo campestre cinematográfica de Menem, vigiada por um bando de capangas armados. Ele parece um cantor de churrascaria aposentado, com uma tintura de cabelo que faria inveja à de Sarney.

De la Rúa, que herdou a batata quente de Menem, aparece como um velhinho simpático mas um tanto confuso - se embaraça ao ser questionado sobre fotos de seu escritório em que aparece Viagra na mesa ("É um ótimo remédio, mas näo o tomo"). Parece um tio bonachäo que assumiu responsabilidades muito além de suas capacidades, cömico se näo fosse trágico - sua decisáo de reprimir as grandes manifestaçöes de dezembro de 2001 resultou em dezenas de mortes.

Da seqüencia de presidentes que o sucederam naqueles dias de crise, merece destaque Eduardo Duhalde, o único que permaneceu por mais de uma semana. Ele havia sido vice-presidente de Menem e compartilha com o chefe o gosto pela tintura de cabelo. O mais interessante da entrevista é o modo como sua esposa interfere nas perguntas e lhe passa broncas. Ela tem fama de brava e perdeu uma eleiçäo para o senado para a mulher de Kirchner, cuja reputaçäo é semelhante.

Kirchner näo é entrevistado no filme, mas ainda näo conheci ninguém por aqui que seja admirador do presidente. Apesar dos seus 70% de popularidade, é criticado nos círculos acadëmicos que freqüento como autoritário e muito dado à retórica, embora faça pouco na prática.

Vi "Yo Presidente" numa sessäo matinal, de ingresso mais barato, onde passei pela insólita situaçäo de ser a única pessoa presente. Pobre Argentina: uma política täo complicada e o único que aparece para ver o filme é um pesquisador estrangeiro.

E os EUA? Os democratas conquistaram a Cämara dos Deputados e talvez levem também o Senado. Por aqui, a interpretaçäo é que o partido é mais protecionista e que deve dificultar as negociaçöes comerciais, eventualmente até rejeitando os tratados de livre comércio que foram assinados entre Estados Unidos, Colömbia e Peru.

terça-feira, novembro 07, 2006

Vida Acadëmica

Estes primeiros dias em Buenos Aires estäo marcados por um ritmo de trabalho bastante intenso na universidade. Passo a maior parte do tempo por aqui, assistindo a aulas, pesquisando na biblioteca ou conversando com as pessoas. Do ponto de vista da teoria, os modelos utilizados pelos cientistas políticos argentinos säo muito parecidos com os brasileiros. O diferencial é aqui se estudam com freqüência casos específicos de países latino-americanos, em especial Argentina, Brasil, Chile e México.

O melhor de tudo, sem dúvida, é o convívio com colegas de vários países, näo somente da América Latina mas também da Europa e dos Estados Unidos. Quando nos reunimos para discutir relaçöes internacionais, cada um traz sua perspectiva própria. Por exemplo, os argentinos criticam os desejos brasileiros de liderança regional chamando a atençäo para os graves problemas sociais de nosso país, como má distribuiçäo de renda e péssimos índices educacionais. Eles me perguntam que tipo de modelo de sociedade queremos representar para o continente. Digo a eles que estäo certos e que os brasileiros náo sabem os compartilhar poder nem dentro de nosso país, quanto mais num arranjo regional como o Mercosul.

Na próxima segunda, darei uma aula sobre como a política externa argentina é vista no Brasil. O pedido veio da minha orientadora e o público seräo os alunos da graduaçäo em relaçöes internacionais. Promete render um debate interessante, ou pelo menos há uma enorme curiosidade com relaçäo ao Brasil - e até onde sei, sou o único aluno brasileiro por aqui.

Minha própria pesquisa caminha a passos rápidos - preciso realizar a maior parte das entrevistas ainda em novembro, pois depois disso Buenos Aires começa a se esvaziar com as férias de veräo. No entanto, antes de iniciar as conversas ainda tenho que completar leituras de livros aos quais näo tinha acesso no Brasil. Está tudo indo bem, acredito que conseguirei dar conta do recado até o fim desta semana.

Sábado e domingo aproveitarei para passear, inclusive porque haverá amigos do Brasil na cidade. Também fui novamente ao cinema, mas comentarei o filme em outro post.

sábado, novembro 04, 2006

Vers le Sud


O complexo de cinemas ao lado do meu apartamento portenho exibe 22 filmes. Me dei ao trabalho de contar. Com o fim de semana, tive tempo de curtir um pouco as atracoes culturais de Buenos Aires, que existem às centenas.

O que mais gostei ate agora foi uma producao francesa, ambientada no Haiti, cujo titulo original eh “Vers le Sud”, sendo que por aqui virou “Bem-Vindas ao Paraíso”. Eh uma historia sobre mulheres americanas de meia idade que vao ao Caribe em busca de turismo sexual. A maior parte do enredo se passa num resort de praia, onde Ellen, a personagem interpretada por Charlotte Rampling eh uma especie de rainha local, defendendo seu direito de comprar prazer e sexo. O contraponto eh representado por Brenda (Karen Young), que quer retomar o romance com Legba, um rapaz por quem ela se apaixonou quando esteve na ilha pela primeira vez. Mas Legba agora eh o favorito da outra.

O roteiro eh baseado em contos do escritor haitiano Danny Laferrière, que usa o turismo sexual para falar sobre poder, racismo, corrupcao e num inteligente jogo de inversoes constantes – se os protagonistas fossem homens em busca de mulheres caribenhas, provavelmente a historia seria simplesmente sordida. Tambem ha um inesperado lado politico na trama, pois o paraíso tropical das senhoras americanas eh construido na frágil base da ditadura de Papa Doc, que logo se intrometera no idilio amoroso. Grande filme, fica a dica para quando chegar no Brasil.

Os passeios pela Recoleta foram ao Centro Cultural do bairro, onde vi uma boa exposicao de fotos sobre a vida de Che Guevara. O curioso foi uma especie de test-drive da urna eletronica, aparentemente o governo argentino pensa em introduzi-la e quer apresenta-la à populacao. Depois fui ao Museu Nacional de Belas Artes, tambem aquí na Recoleta, que tem excelente acervo, em especial no que toca à arte argentina.

Amanha devo passar o dia com amigos argentinos e brasileiros, uns morando por aqui, outros apenas de passagem.

sexta-feira, novembro 03, 2006

Bom Dia, Buenos Aires!

Devo ter trapaceado com o tempo. Tudo indica que cheguei a Buenos Aires há menos de 48 horas, mas isto é certamente impossível, dada a enorme quantidade de sentimentos, pensamentos e coisas que aconteceram desde que desci no aeroporto, no início da noite de quarta-feira.

Depois de desfazer as malas, fui dar uma volta pelos arredores. Aluguei um apartamento na Recoleta, bairro um tanto metido a besta para meu gosto, mas com excelentes restaurantes, bares, cinemas e bem localizado. Posso ir ao centro caminhando e muita coisa resolvo perto de casa.

Ontem foi um dia movimentadíssimo, resolvi a burocracia de chegada no apartamento, na universidade e enviei documentos para a CAPES. O melhor foi me instalar na Torcuato di Tella. Me matriculei em 3 cursos - politica internacional, economia politica comparada e seguranca internacional, todos com especializacao em América do Sul. A estrutura das matérias é a mesma, um módulo teórico e os debates dos casos específicos de Argentina, Brasil, Chile e México. No curso de seguranca, também entram Colombia e países centro-americanos. Os professores sao excelentes e ontem já assisti à primeira aula.

A maioria das pessoas que conheci nestes dois dias foi incrivelmente simpática e prestativa, muito além das exigencias da cordialidade profissional. Elas ficam muito felizes ao ver minha paixao pela Argentina e pela América Latina, que se manifesta inclusive no meu esforco de falar espanhol (e nao portunhol). Para mim, está sendo um privilégico: conversar com pessoas de vários países do continente e ter acesso a livros, filmes e notícias que nunca conseguiria no Brasil.

Tive pouco tempo para passear, apenas rápidos giros pela Recoleta e por Palermo. No fim de semana estarei mais calmo em termos de horário, visitarei amigas que moram por aqui e espero também ir ao cinema, porque há muita coisa interessante em cartaz.
Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons License. Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com