segunda-feira, novembro 20, 2006

Um Trem para a América Latina



Várias das pessoas a quem tenho entrevistado falam da identidade européia da Argentina, que historicamente buscou aproximar-se mais da Inglaterra, Espanha e Itália do que do resto da América Latina. "Somos Europa", ouvi várias vezes. Contudo, a geraçäo mais nova, como meus alunos na universidade, comentam que a crise de 2001 fez ver os argentinos que seus laços com as outras naçöes latino-americanas säo muito fortes. Isso também ficou claro quando no sábado tomei um trem para Tigre, município vizinho a Buenos Aires.

Eu e uma amiga pegamos o trem na Estaçäo Retiro, no centro da capital, e por quase uma hora ele percorreu os subúrbios e a regiäo metropolitana de Buenos Aires. A paisagem já impressiona: perto da estaçäo há uma grande favela, cuja miséria nada fica a dever ao Brasil. Os passageiros me fizeram pensar no surgimento do peronismo e na descoberta por parte da elite portenha da "Outra Argentina", aquela dos "cabecitas negras" ou do "aluviäo zoológico" que sempre foi a base social de apoio de Perón e de seus herdeiros políticos. O movimento no trem é muito parecido com o que existe no Brasil. Pessoas passam vendendo de tudo, canetas, agendas, mapas, CDs piratas, santinhos etc.

Tigre é uma pequena cidade adorável, um lugar de veraneio junto ao delta do rio. Passamos uma tarde muito agradável passeando a pé e de barco pelos arredores, onde a elite tem casas de campo e até um clube de remo, que obviamente se chama Rowing Club. Um Trem para a América Latina, um Barco para a Europa.

Näo é nada fácil para a elite e a classe média se adaptarem a esta nova Argentina, e acho que isso em grande medida explica o tom melancólico que tem muito da produçäo artística contemporänea do país, em particular o cinema. Sempre fica o sentimento de algo importante que se perdeu, do que mestre Camöes chamaria "a grande dor das cousas que passaram".

A personificaçäo desse estado de espírito foi um senhor que vi tocando acordeon, em frente ao shopping center perto do meu apartamento. A melodia era tristíssima e ele foi tratado com indiferença pelos passantes e espectadores. Nenhum aplauso sequer. Ficou em silëncio, como se olhando para dentro de si mesmo, ou para o passado. Era um homem idoso, que parecia ter tido melhores dias. Fiquei imaginando sua história, o que teria acontecido em sua vida. Poucas vezes vi uma imagem täo forte de abandono, de alguém que se tornou dispensável e foi posto à margem da sociedade.

Que ele tenha um memorial nesta pequena crönica.
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