quarta-feira, janeiro 31, 2007

Palermos


Meu contrato de alguel do apartamento na Recoleta terminou na semana passada e me mudei para um imóvel pertencente aos mesmos donos, mas localizado no bairro de Palermo. A idéia é aproveitar este último mës em Buenos Aires para conhecer um pouco este outro pedaço da cidade.

Palermo é basicamente um bairro de classe média, média alta, situado na zona norte porteña. Talvez seja o maior bairro da cidade e cada uma de suas sub-áreas tem características próprias e um nome especial. Saber onde começa e termina cada uma é um assunto controverso até para quem mora em Palermo. Brinquei com meus senhorios que iria tentar desenhar um mapa do local e eles responderam que a tarefa é impossível: "Os limites mudam muito por causa das imobiliárias, `Palermo` é um nome que vende, tem apelo comercial, por isso o bairro cresce e engole outras zonas". Nada muito diferente do que vemos no Rio de Janeiro.

Meu setor favorito é Palermo Viejo (foto), ao redor da praça do mesmo nome. Era uma regiäo um tanto abandonada, perigosa até, que agora virou uma grande atraçäo turística, com muitos restaurantes, feiras de artesanato e várias lojas de design e decoraçäo. O movimento é täo intenso nos fins de semana que o governo quer reformar a zona, há uma polëmica em curso sobre o que fazer com as barracas dos artesäos. A reforma virá em bom momento, o local é bonito mas precisa de mudanças.

Outro lugar que gosto bastante é Vila Freud, chamada assim por concentrar grande número de consultórios de psicólogos e psicanalistas - há até um simpático café batizado de Sig em homenagem ao doutor Freud. Além disso, na área existe um belo paseo em estilo espanhol, isto é, uma rua para pedestres ladeada de árvores.

Em Palermo também estäo localizadas as áreas verdes mais lindas da cidade, como o Jardim Botänico, o Jardim Japonës e o Parque Trës de Fevereiro. Ao redor delas fica Palermo Chico, zona que impressiona pela riqueza e sofisticaçäo. Por ali também estäo atraçöes como Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires.

Em suma, esta é a geografia sentimental por onde me moverei neste que será meu último mës nesta cidade que já é täo querida para mim.

segunda-feira, janeiro 29, 2007

Dançando com Cuba



Encontrei num sebo da Avenida de Maio um livro muito bom: "Dancing with Cuba: a memoir of the Revolution", de Alma Guillermoprieto. Ela é uma jornalista mexicana que escreve sobre a América Latina para revistas e jornais do continente e dos EUA, o que näo sabia é que seus primeiros empregos foram como dançarina. E que trabalhos! Neste livro ela conta como passou um semestre em Havana, em 1970, como professora de dança moderna na Escola Nacional de Artes. A narrativa de Alma é um relato agridoce da Revoluçäo e dos choques entre artistas e o governo de Fidel.

Alma era pouco mais do que uma adolescente quando chegou a Cuba e encarou o desafio de treinar os alunos nas técnicas que a vanguarda da dança realizava em Nova York. Boa parte do encanto do livro vem da descriçäo da jovem professora aprendendo à medida que ensina e se tornando amiga de estudantes talentosos, mas com formaçäo deficiente e sofrendo com a má infra-estrutura.

O governo da Revoluçäo quis criar escolas artísticas modernas para afirmar o prestígio de Cuba, mas os guerriheiros veteranos da Sierra Maestra näo sabiam como lidar com dançarinos e coreógrafos temperamentais e pouco dispostos a aceitar o rígido cänone marxista. O diretor da escola, um soldado que näo queria o posto, se referia a seus discípulos como "comemierdas" e "patos" (gíria pejorativa para homossexuais).

O pano de fundo político do livro é um momento difícil para Cuba: o fracasso do ambicioso programa de colher uma safra de dez milhöes de toneladas de cana de açúcar. Alma captura bem o sentimento generalizado de frustraçäo e se mostra dividida diante do entusiasmo com as conquistas sociais da Revoluçäo e as demonstraçöes de autoritarismo e de escassez material que experimenta na ilha.

Outro ótimo livro sobre Cuba que comprei por aqui foi "Tumbas sin Sosiego - Revolución, disidencia y exílio del intelectual cubano", do historiador Rafael Rojas. Trata-se de um cubano que se exilou no México e se opöe tanto ao governo de Fidel quanto às políticas dos EUA para a ilha. Seu livro é um estudo sobre as relaçöes entre os principais escritores cubanos e a Revoluçäo, de 1959 aos dias de hoje.

Grosso modo, Rojas identifica um padräo inicial de adesäo à Revoluçäo, que termina para alguns em 1961, quando Cuba se torna comunista, e para outros entre 1968-1971, quando termina o período mais criativo do socialismo na ilha e o regime se fecha no modelo soviético. O "ponto sem retorno" para Rojas é o caso Heberto Padilla, um poeta preso e torturado por suas críticas ao governo de Fidel. Foi nesse momento que intelectuais do porte de Sartre, Carlos Fuentes, Mario Vargas Llosa e Octavio Paz romperam com o regime cubano. Reparem que Alma viveu exatamente esse período de transiçäo.

Rojas também examina a grande onda do exílio dos balseros nos anos 80/90 e das novas literaturas que apareceram em Cuba, dando voz aos exilados de Miami, aos homossexuais e demais dissidentes do regime. Há ao longo de todo o livro de Rojas um apelo para o retorno ao diálogo e à tentativa de construir uma cultura da reconciliaçäo que sirva de base para a transiçäo de Cuba após a morte de Fidel. Por coincidëncia, no domingo saiu um ótimo artigo no La Nación falando sobre a mesma mudança de atitudes entre os cubanos de Miami, na medida em que uma geraçäo mais jovem assume o comando das fundaçöes cubano-americanas.

A única crítica séria que faço aos dois livros é que eles examinam somente a questäo de artistas e intelectuais. Mas como ficam os 99% dos cubanos que näo säo nem uma coisa nem outra? Como é seu dia a dia sob o governo de Fidel? Quais seus sonhos, expecativas, medos? Como avaliam o legado da Revoluçäo? O que esperam do futuro?

sábado, janeiro 27, 2007

As Bandeiras de Nossos Pais


Nosotros, los sobrevivientes,
¿A quiénes debemos la sobrevida?
¿Quién se murió por mí en la ergástula,
Quién recibió la bala mía,
La para mí, en su corazón?
¿ Sobre qué muerto estoy yo vivo,
Sus huesos quedando en los míos?

Roberto Fernández Retamar, poeta cubano, "El Otro"

Grande filme na praça: Flags of Our Fathers, dirigido pelo mestre Clint Eastwood. Na Argentina, chamou-se La Conquista del Honor, ignoro o título que terá no Brasil. É uma narrativa estupenda sobre o sentimento conhecido como "culpa de sobrevivente" e uma análise de como a opiniäo pública é manipulada em tempos de guerra.

"Uma foto pode ganhar ou perder uma guerra", diz um dos personagens. "Bandeiras" é a história de uma das imagens mais famosas da Segunda Guerra Mundial: o retrato de um grupo de fuzileiros navais erguendo uma bandeira dos EUA na ilha de Iwo Jima, palco de uma das batalhas mais sangrentas no conflito contra o Japäo. Cerca de 50 mil soldados morreram ali.

O filme conta como os soldados sobreviventes da foto foram utilizados pelo governo dos EUA numa missäo de relaçöes públicas para fazer a populaçäo comprar bönus de guerra que ajudassem a financiar a participaçäo americana no conflito. Mas os soldados sofrem sentindo-se culpados de estar vivos quando tantos dos seus companheiros morreram em Iwo Jima, e sentindo-se indignos de representar o papel de heróis em ocasiöes um tanto ridículas. A ënfase é maior para o soldado Ira Heyes, um índio que sofreu com racismo e alcoolismo na sua volta aos EUA, sem conseguir adaptar-se.

O roteiro é baseado no livro escrito pelo filho de um dos sobreviventes, que pesquisou a história depois da morte do pai - que nunca conversou com o filho sobre o episódio da bandeira. O livro virou best seller nos EUA e é crueldade da traduçäo omitir a relaçäo pai-filho do título.

A produçäo de Flags é dividida entre Steven Spielberg e Clint Eastwood. O primeiro havia comprado os direitos para adaptar o livro, mas foi convencido por amigos a deixar Eastwood dirigi-la. O velho cowboy dá um show e mostra que é um dos melhores cineastas em atividade atualmente, se é que alguém tinha dúvidas. Faz um filme de heroísmo contido, em que honra e glória säo sentimentos que se calam. Sem sentimentalismo. Spielberg teria feito uma lambança, cheia de hinos melodramáticos e música em alto volume.

Eastwood foi além e dirigiu também "Cartas de Iwo Jima", sobre o ponto de vista japonës no conflito. Estréia na Argentina daqui a trës semanas, estou louco para ver.

quinta-feira, janeiro 25, 2007

O México Fala Por Nós


Vi "Babel" por estes dias e embora näo seja meu candidato ao Oscar (aposto nos "Infiltrados") achei o filme muito bom. Mais do que isso, ele se junta a outras duas produçöes também dirigidas por cineastas mexicanos ("Filhos da Esperança" e "O Labirinto do Fauno") que pintam um panorama sobre problemas como racismo e autoritarismo, que säo comuns a toda América Latina.

Isso me fez pensar na aula que tive com o embaixador chileno na Argentina, Luís Maira. Ele é um político da oposiçäo a Pinochet que viveu muitos anos exilado no México e um dos pontos mais interessantes de sua exposiçäo foi nos chamar a atençäo para a importäncia política desse país: "A América Latina näo existiria se näo fosse o México", nos disse Maira.

Seu ponto é que a força da cultura mexicana e os freqüentes questionamentos que aquele país faz sobre sua identidade funcionaram como um contraponto à influëncia avassaladora dos EUA. Se a fronteira dos Estados Unidos fosse com uma pequena naçäo como Honduras ou El Salvador, talvez todo o nosso continente virasse uma espécie de Venezuela, onde o nível de colonialismo cultural é algo verdadeiramente chocante, ou pelo menos me deu essa impressäo.

Em "Babel" e "Filhos da Esperança" os cineastas Alejandro Gonzáles Iñárritu e Alfonso Cuarón mostram visöes dos imigrantes clandestinos nos EUA e na Europa e das trocas culturais e do racismo associado a essas jornadas, bem como de respostas desesperadas aos problemas atuais, como o terrorismo (ou a impressäo de terrorismo, em Babel). Essa é uma história da qual os brasileiros também fazemos parte, para os gringos somos igualmente cucarachas, embora tenhamos enormes relutäncias em nos identificar com os demais latino-americanos.

Na Argentina, tendo acesso ao cinema e à literatura de vários países do continente, me impressiona ver o quanto eles abordam os mesmos temas da arte brasileira. Mas a produçäo cultural do nosso país está se empobrecendo em relaçäo a dos vizinhos, devido ao isolamento. Por isso, o México hoje fala por nós. Quem sabe um dia poderemos nos juntar ao diálogo.

terça-feira, janeiro 23, 2007

Um Peronismo Contra-Ataca

As ruas de Buenos Aires apareceram cobertas por cartazes com a mensagem "Näo fodam com Perón". Sutileza nunca foi a característica mais marcante da política argentina e o que está em jogo é uma disputa entre diversas facçöes do peronismo. Setores sindicais mais tradicionais rejeitam o processo contra a ex-presidente Isabel Perón, porque acreditam que a sujeira irá respingar a memória do general.

Há boas razöes para pensar assim, porque Perón já andava flertando com a extrema-direita bem antes de assumir o governo em 1973. Aliás, nos anos 60 Che Guevara tinha alertado os revolucionários que sonhavam com uma aliança com o peronismo que na hora da verdade a elite argentina aceitaria Perón como mal menor diante do marxismo. Profetizou o que aconteceu dez anos depois.

Os jovens esquerdistas de grupos como Juventude Peronista, Tendëncia Revolucionária e Montoneros entraram em conflitos violentos com Perón e os sindicatos. Estes, mais pragmáticos, negociavam até com os militares. A gota d´água foi quando a esquerda armada assassinou o secretário-geral da poderosa central sindical CGT. O rompimento com Perón foi dramático, em pleno comício. Está em curso uma polëmica um tanto surreal para determinar se o general expulsou os jovens da praça ou se eles saíram antes, por vontade própria.

O fato é que agora muitos daqueles jovens estäo no poder, o próprio Kirchner foi da Juventude Peronista. E estäo cobrando as contas que tëm para ajustar com o passado sangrento de seu próprio movimento. O atual secretário da CGT já veio a público condenar o "entorno presidencial" pelo caso Isabel, embora tomando cuidado de eximir Kirchner. A batalha já tem mais de 30 anos, e continua.

Uma amiga argentina me explicou outro detalhe fundamental: neste país a maioria dos juízes säo nomeados por políticos e até sua estabilidade no cargo é sujeita a fortes pressöes. De modo que nenhum magistrado inicia um processo do porte contra Isabel se näo tiver respaldo sólido de alguma autoridade.

Me parece que a maior parte da esquerda apóia a investigaçäo, mas também há grupos preocupados em que a änsia de punir os culpados por violaçöes aos direitos humanos se estenda aos guerrilheiros dos Montoneros e do ERP, que também cometeram muitos dos crimes praticados por seus inimigos da direita.

domingo, janeiro 21, 2007

Terrorismo Político: de volta à Argentina?


Jornalista näo tira férias: trabalha como correspondente internacional. Tenho aproveitado a temporada na Argentina para enviar textos para o Ibase, a ONG onde trabalho como pesquisador. Os primeiros trataram de temas que já abordei neste blog, mas reproduzo abaixo um artigo sobre um assunto do qual ainda näo tinha falado por aqui.

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Terrorismo político: de volta à Argentina?

Maurício Santoro*

O seqüestro de dois operários que testemunharam contra torturadores da ditadura de 1976-1983 trouxe de volta à Argentina o medo do terrorismo político, ao mesmo tempo em que o país luta para ajustar as contas com a impunidade que marcou seu passado.

A violência por razões políticas esteve muito presente nas décadas de 1960 e 1970. Grupos guerrilheiros como Montoneros e ERP mataram cerca de 700 pessoas no período. O medo de tais ações foi o pretexto da tomada do poder pelos militares em 1976. Mas o terror implementado pelo Estado foi muito pior e assassinou aproximadamente 30 mil pessoas, com um sistema de mais de 600 campos clandestinos de tortura que só tem paralelo em regimes totalitários como a Alemanha nazista.

A democracia, restabelecida em 1983, condenou à prisão líderes do regime militar, como o general Jorge Videla e o almirante Emílio Massera. Contudo, entre 1987 e 1990, houve quatro rebeliões armadas de oficiais do Exército, os chamados "carapintadas", que apavoraram o recém-estabelecido regime democrático.

Apesar do repúdio popular, o presidente Alfonsín promulgou as leis "Obediência devida" e "Ponto final", que dificultaram em muito a abertura de processos contra violações de direitos humanos durante a ditadura. O presidente Menem prosseguiu com a política de apaziguamento e indultou os líderes do regime militar.

Apesar das decisões presidenciais, as pressões da sociedade impediram a continuação da impunidade. Ativistas de direitos humanos seguiram com ações judiciais contra a ditadura, em particular pelo crime do roubo de bebês de homens e mulheres presos pela repressão. Como as crianças não foram devolvidas as suas famílias, a Justiça entendeu que o crime continuava a ocorrer, portanto não havia sido prescrito pelas leis de anistia. Também foram importantes os processos movidos por Espanha, Itália, França, Suíça e Suécia, que questionavam o que ocorreu com pessoas de seus países desaparecidas no turbilhão político argentino.

O governo Kirchner deu novo vigor aos processos em defesa dos direitos humanos, iniciando uma onda que se estendeu ao Chile e ao Uruguai. Foi nesse contexto que os operários Julio Lopez e Luis Gerez testemunharam contra os ex-policiais Miguel Etchecolatz e Luis Patti, acusados de torturas, estupros e assassinatos durante a ditadura. Lopez foi seqüestrado em outubro de 2006 e continua desaparecido. Gerez desapareceu em dezembro de 2006, mas foi libertado poucos dias depois [na foto, protestos exigindo sua libertaçäo]. Ele denuncia que foi agredido no cativeiro, queimado com cigarros e submetido a simulacros de fuzilamento.

Os dois seqüestros comoveram a Argentina e disseminaram o medo de que os antigos fantasmas do terrorismo político estejam de volta. Ninguém foi preso pelo desaparecimento de Lopez e de Gerez e outras testemunhas contrárias a acusados de torturas estão apavoradas e solicitando proteção policial especial.

Além disso, os ânimos também estão exaltados pelo processo que o governo da Espanha move contra a Alianza Anticomunista Argentina, conhecida como Triple A. Tratava-se de um grupo terrorista de extrema-direita que atuou na década de 1970, com forte respaldo nas Forças Armadas, na polícia e nos setores mais conservadores do peronismo. Seu principal articulador foi José Lopez Rega, homem de confiança da ex-presidenta Isabel Péron. A própria Isabel, que vive em Madri, poderá ser convocada a depor e o círculo que foi próximo a ela teme as revelações que eventualmente faria.

Os regimes militares da Argentina, do Brasil, do Chile e do Uruguai atuaram em conjunto na perseguição a seus opositores políticos, por meio da Operação Condor. Por conta disso, as repercussões dos casos argentinos certamente ultrapassaram as fronteiras do país e abrem a possibilidade de julgamentos semelhantes em todo o Cone Sul.

*Jornalista, pesquisador do Ibase.

Publicado em 19/1/2007.

sexta-feira, janeiro 19, 2007

A Virgem dos Sicários


Na Argentina conheci pessoas com grande envolvimento com a Colömbia, de cidadäos daquele país que vivem em Buenos Aires até funcionários da ONU que participaram das negociacöes de paz com a guerrilha. Além disso, por aqui há mais acesso a livros e filmes colombianos do que no Brasil. Na semana passada vi na TV a cabo "A Virgem dos Sicários", um excelente drama sobre o conflito.

O filme é dirigido por Barbet Schroeder, um cineasta nascido no Irä mas treinado profissionalmente como assistente dos diretores da nouvelle vague francesa. Ele optou por rodar "A Virgem dos Sicários" principalmente com atores näo-profissionais e com cämera digital. As duas escolhas fazem o filme parecer incrivelmente realista, como um telejornal.

O filme é a adptacao do romance de Fernando Vallejo e comeca com um escritor retornando a sua Medellin natal, depois de décadas morando na Europa. Ele acha que já viveu tudo o que podia e deseja apenas morrer em paz. Mas se apaixona por um adolescente envolvido com o tráfico de drogas e o relacionamento o leva a conhecer um pouco do estranho mundo de violëncia em que se transformou seu país.

quarta-feira, janeiro 17, 2007

Ao Outro Lado do Rio


Desde a semana passada estou com dois grupos de amigos brasileiros por aqui e temos aproveitado bastante estes dias, passeando por Buenos Aires e arredores. Uma das excursöes que mais nos agradou foi atravessar o rio da Prata e conhecer a cidade de Colönia do Sacramento, no Uruguai.

Sacramento foi fundada pelos portugueses em 1680 e virou o centro das disputas entre Portugal e Espanha, e depois entre Brasil e Argentina, pelo controle do Rio da Prata. A cidade mudou de mäos diversas vezes e a luta só encerrou quando o Uruguai se tornou um país independente em 1828, "algodäo entre cristais" na definiçäo do diplomata inglës que mediou o processo.

Além de praça forte militar, Sacramento foi um tremendo ponto de comércio. Embora proibido entre as colönias espanholas e portuguesas, rolava solto. Era o paraíso dos contrabandistas, que circulavam escravos, prata, carne, erva-mate.

Os uruguaios chamam a cidade de Colönia e fiquei impressionado com a beleza do lugar. O centro histórico é muito rico, foi declarado pela Unesco património da humanidade, e mistura influéncias portuguesas e espanholas. Me lembrou um tanto Olinda, pelo contraste entre a arquitetura tradicional e o mar. No caso, o rio da Prata.

Ter atravessado o rio de navio foi outra experiéncia marcante. Já havia dado muitas aulas sobre os conflitos no Prata e foi incrível estar lá e imaginar o que sentiram os soldados que passaram pelo local. O rio é bastante largo, mas näo tanto quanto pensei - há pontos da travessia em que é possível avistar tanto a costa do Uruguai quanto da Argentina.

A viagem de navio dura cerca de trés horas e por si só já vale o passeio. Em especial pelo convés, que fica repleto de pessoas conversando, tomando sol, tirando fotos. Na nossa travessia rolou até um pequeno jogo de futebol entre argentinos, chilenos e brasileiros. Até ser interrompido pela tripulaçäo. Mas foi muito divertido, com direito à inevitável discussáo sobre os méritos de Pelé e Maradona, havia até um rapaz com uma tatuagem de Dom Diego. Ele é quase uma religiäo por aqui.

Os chilenos do jogo eram um grupo de atores e malabaristas de circo que estäo em excursäo pela América do Sul, meio a passeio, meio a trabalho. Estavam indo para o circuito uruguaio de Colönia, Montevidéu e Punta del Este e nos mostraram alguns dos truques que faráo por lá, além de ficarem paquerando sem sucesso duas belas sul-africanas. Uma vida de liberdade e aventura, mas também de falta de grana e dificuldades constantes. O encontro foi täo curioso que penso em escrever um conto sobre o episódio, quem sabe inspirado pelas histórias semelhantes de Thomas Mann, aquelas narrativas ambientadas em navios ou hotéis nas quais o escritor alemäo é mestre.

segunda-feira, janeiro 15, 2007

Videla: a banalidade do mal


O líder da mais atroz ditadura latino-americana, que deixou um saldo de 30 mil mortos, foi um personagem medíocre, um burocrata sem carisma ou traços marcantes de personalidade, mas que encarnou as tradiçöes mais autoritárias da sociedade argentina. Esta é a principal conclusäo de "El Dictador", biografia do general Jorge Videla escrita pelos jornalistas Maria Seoane e Vicente Muleiro.

O trabalho de pesquisa da dupla é excelente e reconstrói a trajetória de Videla através de uma série de entrevistas e documentos. Nada em sua vida apontava o que poderia ser. Sua biografia é a de um oficial do Exército, de classe média, dedicado ao trabalho e à família, muito religioso, sem grandes interesses culturais ou sociais. Os amigos o descrevem como um tipo calmo, seguidor das normas e regulamentos, um tanto introvertido.

O que fez de Videla o comandante de um regime assassino, com mais de 600 centros clandestinos de tortura, responsável pelo roubo de bebës e por lançar opositores de aviäo ao mar?

A resposta dos autores está na vinculaçäo do Exército argentino com os elementos mais autoritários da sociedade do país, como a oligarquia agrária e o catolicismo integrista, que rejeitavam a mobilizaçäo popular e a ascensäo social de largas camadas da populaçäo. No enfrentamento dessas forças, o Exército se tornou a partir de 1930 o árbitro político do país, depondo 6 presidentes que näo se submeteram a seus objetivos.

O livro é um estudo detalhado do aparato repressivo da ditadura, das negociatas nas quais se envolveram generais e almirantes e dos processos por violaçöes de direitos humanos movidos após o retorno da democracia.

É curioso que os autores näo citem Hannah Arendt, porque Videla representa muito bem a tese da filósofa alemä sobre a banalidade do mal. Tal como os burocratas nazistas analisados por Arendt, Videla foi um sujeito comum, dolorosamente comum, que praticou crimes horrendos.

Ele segue em prisäo domiciliar em seu apartamento no bairro de Belgrano, a apenas algumas quadras da universidade onde estudo.

sexta-feira, janeiro 12, 2007

A Prisäo de Isabel Perón


Hoje é um dia histórico para a Argentina. Um juiz ordenou a prisäo da ex-presidenta Isabel Perón, por sua responsabilidade na repressäo ilegal aos grupos da esquerda nos anos 70. Isabel vive na Espanha e enquanto escrevo as notícias mais atualizadas säo de que a Interpol está prestes a prendë-la e iniciar o processo de extradiçäo.

Já tratei neste blog sobre a vida de Isabel, após ter lido uma biografia dela. Desta vez, vou comentar um pouco mais a respeito dos motivos de sua prisäo.

Perón foi deposto por um golpe militar em 1955 e passou quase vinte anos exilado, a maior parte do tempo na Espanha de Franco. Ele conheceu Isabel no Panamá, onde ela dançava num cabaré, casou-se com ela e a transformou em emissária política, sua representante em negociaçöes com dirigentes sindicais e peronistas na Argentina. Em 1973, quando Perón foi eleito presidente pela terceira vez, ela foi sua vice. Ele näo queria rivais a seu poder.

O peronismo estava muito dividido nos anos 70. Uma boa parte dos jovens do movimento havia se radicalizado à esquerda, sob influëncia da Revoluçäo Cubana e do catolicismo da Teologia da Libertaçäo. Esses jovens, em sua maioria universitários e secundaristas de classe média, sonhavam com a aliança com os operários, solidamente peronistas. Passaram a ver em Perón a possibilidade de um líder que os conduziria ao socialismo, ilusäo que ele alimentou com tiradas retóricas anti-imperialistas.

Parte dos jovens foram para a luta armada, em grupos como Montoneros. Quando Perón se tornou presidente, começou imediatmente a persegui-los, lançando sobre eles bandos da extrema-direita peronista. O próprio dia da volta de Perón à Argentina culminou num terrível massacre entre as duas facçöes de seu movimento, nos arredores do aeroporto de Ezeiza.

Perón morreu menos de um ano após assumir a presidëncia e o governo caiu nas mäos de sua despreparada esposa. Os radicais de direita assumiram o poder de fato, principalmente seu homem de confiança, José Lopez Rega, dito El Brujo, que liderava a Alianza Anticomunista Argentina ou Triple A, organizaçäo terrorista com ampla participaçäo de policiais e militares, dedicada ao extermínio da esquerda.

Também durante o governo de Isabel as Forças Armadas receberam poderes especiais para combater a guerrilha na província de Tucuman, regiäo miserável e montanhosa onde o ERP sonhou montar um foco revolucionário à la Guevara.

Isabel ainda encontrou tempo para lançar uma desastrosa política econômica conhecida como Rodrigazo. Quando ela foi deposta em 1976, muitos saudaram o golpe aliviados. Mal sabiam que o pesadelo da Triple A e da violëncia em Tucuman e Ezeiza estava só começando. Na foto, Isabel está ao lado dos comandantes militares que promoveriam a carnificina de 1976-1983, como o almirante Massera e o general Videla.

A ex-presidenta ficou presa por 5 anos em Bariloche durante a ditadura. Ao ser libertada, foi para Espanha. Com a redemocratizaçäo, os peronistas conseguiram evitar que se investigassem os crimes contra os direitos humanos cometidos em seu governo. Líderes como Menem e Antonio Cafiero também foram bem-sucedidos em afastar o partido da ex-presidenta.

A ordem de prisäo contra Isabel partiu por casos ocorridos na província de Mendoza, mas a ex-presidenta também poderá depor num processo envolvendo a Triple A. Os próximos dias prometem ser agitados.

quarta-feira, janeiro 10, 2007

O Herói de Mil Faces


"Estava lendo uma biografia de Bolívar e é impressionante como sua história mostra todas as dificuldades enfrentadas pela integracao da América do Sul", me dizia um amigo argentino da universidade. A partir do papo, comprei uma biografia do Libertador, de autoria do historiador americano David Bushnell. O livro é realmente excelente e na linha da observaçäo de meu colega, parece as manchetes dos jornais de hoje.

Bolívar é um herói de mil faces e sua imagem foi apropriada ou rejeitada por praticamente todos os grupos políticos do continente. Dependendo do autor ele pode ser visto como um caudilho autoritário, um precursor das lutas sociais do século XX, um defensor da Igreja e das tradiçöes diante do liberalismo secular. Em parte isso se deve às mudanças algo bruscas na carreira do Libertador sobre temas como a aboliçäo da escravidäo e a ordem constitucional na América do Sul. Cada um pode olhar para um período de sua vida e escolher o que lhe convém. O que me interessa em Bolívar é sobretudo seu papel em busca da integraçäo regional.

A maior parte da vida política de Bolívar foi a luta pela libertaçäo dos territórios que formavam o Vice-Reinado de Nova Granada e hoje correspondem à Venezuela, Colömbia, Panamá e Equador. Ele logrou separá-los da Espanha e ainda fez o mesmo com o Peru e a Bolívia, mas falhou em conservá-los como um só país ou mesmo como uma federaçäo de naçöes andinas.

Nesse sentido, impressiona um documento como a Carta da Jamaica, de 1815, onde Bolívar examina com incrível lucidez os problemas que a integraçäo enfrentaria e propöe a criaçäo de uma Liga Sul-Americana, que realizaria congressos no Panamá. Também é incrível sua profecia de que o Oceano Pacífico seria a principal via de comércio internacional do futuro.

As idéias estäo todas lá. E ao mesmo tempo existem as dificuldades, as rivalidades e as disputas que fragmentam a Gra-Colömbia em vários pequenos Estados. É particularmente interesante a capacidade de que tinham, unidos, em negociar empréstimos no exterior em condiçöes vantajosas, algo que se perdeu inteiramente com as divisöes.

Nos últimos anos Bolívar virou um mito muito forte entre a esquerda da Colömbia (os guerrilheiros do M-19 chegaram a roubar sua espada de um museu, num sensacional golpe de marketing) e entre, claro, Chávez na Venezuela. Curioso como essa interpretaçäo ignora muitos gestos de Bolívar, em particular sua relutäncia em alterar a distribuiçäo das terras e as relaçöes raciais. Mas de certo modo seu comportamento ilustra problema que Chávez vive hoje, como a dificuldade em lidar com o parlamento e suas polëmicas medidas econömicas.

domingo, janeiro 07, 2007

O Labirinto do Fauno


Fui ver este ótimo filme achando que era um conto de fadas com um pano de fundo político, mas na realidade é o oposto. Trata-se de uma história sobre o fascismo narrada com o recurso de truques de fantasia e terror.

Ofélia é uma menina introvertida e sensível, amante da leitura de histórias mágicas. Ela chega a um povoado rural na Espanha, acompanhando sua mäe, que atravessa uma difícil gravidez. O padrasto de Ofélia é um oficial de Franco que luta contra uma guerrilha esquerdista.

Enquanto os combates, a violëncia e a tortura se tornam cada vez mais ferozes, Ofélia se refugia em seu mundo de fantasia e encontra (ou imagina encontrar, depende da interpretaçäo de cada espectador) um fauno que revela que sua verdadeira identidade é a de uma princesa do reino subterräneo. Para retornar a esse universo, a menina terá que passar por trës provas.

Os efeitos visuais säo espetaculares e a ambientaçäo histórica funciona muito bem, com os oficiais fascistas fazendo o papel de bicho papäo e se mostrando mais assustadores do que os monstros que Ofélia enfrenta. Ao fim, o Labirinto do Fauno é uma realizaçäo impressionante do diretor espanhol Guillermo del Toro, e uma fábula sobre o derramamento de sangue inocente e o direito a governar.

quinta-feira, janeiro 04, 2007

Rumo a uma teoria latino-americana de RIs?

Stanley Hoffmann escreveu que as relações internacionais são “uma ciência social americana”, devido à predominância das universidades dos EUA nos estudos sobre o tema. A frase é muito repetida, mas se olharmos com calma, veremos que há diversas contribuições valiosas às RIs vindas do Reino Unido, França, Canadá e dos países escandinavos, além do papel decisivo que os imigrantes da Europa Central e Oriental tiveram nas universidades americanas e até como altos funcionários públicos.

E qual o lugar da América Latina nessa história? Existem teorias latino-americanas sobre RIs, ou abordagens próprias ao continente para o estudo da política internacional? Nunca vi discussões a respeito no Brasil, mas acompanhei debates nessa linha na Argentina. Um de meus professores, Roberto Russell, inclusive organizou uma pesquisa em vários países buscando responder exatamente a essa pergunta.

A pesquisa identificou quatro correntes principais de análise das RIs na América Latina:

1) Enfoques jurídicos e idealistas;
2) Abordagens geopolíticas; em especial entre os militares
3) Estudos de natureza econômica, como os da CEPAL e da teoria da dependência;
4) Autores que adaptaram os pressupostos do realismo à realidade latino-americana.

Além dos quatro grupos, os autores também mencionaram estudos mais recentes, que aplicam à América Latina as novidades teóricas que começaram nos EUA após os anos 70, como estudos culturalistas e construtivistas.

De todas as interpretações, a que mais me interessa é aquela que toma como ponto principal a questão do desenvolvimento. Autores dos EUA e da Europa falam sobretudo dos problemas da guerra e da paz, mas em nosso continente a agenda do crescimento econômico e da inclusão social é prioritária e pelo menos no caso brasileiro é o eixo principal da formulação da política externa.

Esse pensamento não chegou a se constituir numa teoria de RIs, mas os esforços da CEPAL e dos teóricos da dependência passaram perto. Embora seu foco fosse a sociologia do (sub)desenvolvimento, suas interpretações discutem a participação da América Latina nas relações internacionais, em particular a inserção subordinada na economia global e as terríveis conseqüências dessa formação histórica. Encontrei uma rica sistematização dessa abordagem no livro América Latina en el Mundo: el pensamiento latinoamericano y la teoría de relaciones internacionales, do sociólogo argentino Raul Bernal Meza.

Outro ponto é a forte presença de um pensamento político latino-americano que expressa questões semelhantes, ao mesmo tempo, em vários países. A busca da integração regional é um tema constante, bem como o desenvolvimento econômico e social. Aí podemos pensar em exemplos como o movimento da reforma universitária, a valorização cultural de índios e negros, a teologia da libertação. Encontrei uma valiosa fonte de informações no livro El Pensamiento Latinoamericano en el Siglo XX: entre la modernidad y la identidad, do filósofo chileno Eduardo Deves.

Em suma, começo o ano empolgado com as leituras amplas sobre a América Latinha. Tenho para mim que, sem descuidar do que se produz atualmente nas universidades dos EUA e da Europa, essa herança continental me será bem mais rica e produtiva.

terça-feira, janeiro 02, 2007

As Más Notícias de Fenton

Nesta minha breve temporada carioca, me encontrei com uma amiga que acabou de voltar dos EUA e me emprestou uma penca de livros. O mais interessante foi “Bad News – the decline of reporting, the business of news, and the danger to us all”, do jornalista americano Tom Fenton, um correspondente veterano que trabalha em Londres para a CBS. O argumento básico é que a imprensa dos Estados Unidos falha em seu papel de informar o público a respeito da política internacional, o que aumenta os problemas que o país enfrenta em suas relações exteriores.

Boa parte do livro de Fenton é dedicada às dificuldades entre correspondentes internacionais e seus superiores nas empresas de comunicação, como desinteresse pelas notícias do exterior, que acabam ocupando espaço secundário diante de escândalos envolvendo celebridades ou amenidades que atraem atenção do público. Fenton relata espantosos cortes de custos por parte da CBS – em 2005, quando o livro foi publicado, a grande cadeia mantinha apenas 10 correspondentes, sendo 4 em Londres e dois temporários no Iraque e no Afeganistão. O autor também critica o sistema educacional americano pelas suas notórias deficiências em história e geografia, que formam pessoas com pouca disposição e capacidade para entender política internacional.

Há vários capítulos que atacam o conluio entre as grandes empresas de comunicação e o governo americano, e criticam a queda nos padrões de qualidade ao se tratar a notícia como espetáculo. Cenário que se repete em muitos países, diga-se de passagem. O que se destaca são suas entrevistas com os grandes âncoras do jornalismo americano, como Walter Cronkite, Peter Jennings e Dan Rather, que fazem um balanço não muito otimista do estado atual da profissão. É duro para qualquer repórter ler Cronkite dizendo que não assiste mais ao noticiário de TV, porque a maior parte dele é bobagem sensacionalista.

Fenton se refere com muita freqüência aos correspondentes exemplares do passado, como Edward Murrow (vejam o filme “Boa Noite e Boa Sorte”!), Ernest Pyle, Seymour Hersh e o próprio Cronkite como padrão de qualidade por seu trabalho na Segunda Guerra Mundial e no Vietnã. Sem dúvida, mas acho que eles seriam excepcionais em qualquer época e o cenário contemporâneo da “guerra ao terror” é de exaltação nacionalista, medo, racismo. Terreno perigoso para qualquer profissional que trabalhe com análise política, seja na imprensa, seja na universidade.

Tanto Fenton quanto Cronkite, Jennings e Rather identificam nos blogs o potencial para renovação do jornalismo, pelas possibilidades de informação imediata, direto do local, cobertura mais especializada, liberdade com relação às hierarquias organizacionais etc. Se os mestres afirmam, este blogueiro concorda.
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