quinta-feira, junho 30, 2005

Camaleão ao Contrário


Vem pro governo, você também Posted by Hello

"O poder é como um camaleão ao contrário, todos tomam a sua cor". A frase é de Millôr Fernandes e foi a citação de uma brilhante amiga (obrigado, Dani!) com quem conversava sobre os acontecimentos dos últimos dias. A semana foi ruim para o governo: fracassou o acordo com o PMDB, foi instalada a CPI dos Bingos, a quarta em funcionamento no país, e as evidências contra Marcos Valério se acumulam em velocidade impressionante. Agora aparece mais uma denúncia de caixa 2, numa estatal, Furnas - a ela se somam as acusações semelhantes nos Correios e no IRB.

A corda se aperta. Que alternativas restam ao governo, que está cada vez mais isolado? No próprio PT surgem críticas duras, como as do deputado Fernando Gabeira e a do senador Cristovam Buarque. Este último publicou um excelente artigo na Folha de S. Paulo, no qual marca suas diferenças com o governo e avalia os erros na trajetória de seu partido. Discurso de candidato presidencial.

Claro que acredito que este deveria ser o momento para que as organizações da sociedade civil se mobilizassem e voltassem às ruas, cobrando ética e protestando. Onde estão a ABI, a OAB, a SPBC? Acuadas e assustadas, em silêncio. O MST e a CUT fizeram seu jogo com o governo, trocando apoio por verbas e cargos de confiança. É péssimo essa identificação da sociedade organizada com um partido político, o que coloca essas entidades como reféns das decisões do presidente e seus ministros - alguém ainda lembra das denúncias contra Henrique Meirelles e Romero Jucá?

Quando acordarem do pesadelo, essas organizações correm o risco de descobrir que sua passividade abriu o caminho para a ascensão de algum demagogo com discurso anti-corrupção, à la Fernando Collor e Jânio Quadros.

Amanhã entro em férias. Serão apenas 10 dias, mas o suficiente, espero, para descansar a cabeça e resolver a burocracia do apartamento.

quarta-feira, junho 29, 2005

Corporocracia


Perkins com a boca no trombone Posted by Hello


Uma amiga que voltou há poucos dias de uma viagem pelos EUA me emprestou "Confessions of an Economic Hit Man", de John Perkins, que está na lista de mais vendidos no NY Times. Ele trabalhou durante algumas décadas como consultor e analista para grandes empresas americanas e seu livro de memórias é uma denúncia das manipulações e fraudes que essas corporações cometem em seus negócios em países em desenvolvimento, numa teia de interesses que envolve o governo dos Estados Unidos, políticos locais, FMI, Banco Mundial, a turma toda. "Corporocracia", diz o autor.

O currículo de Perkins impressiona. Trabalhou na Indonésia, Irã, Equador, Colômbia, Panamá e Arábia Saudita, em geral produzindo estudos sobre o potencial de crescimento econômico nas áreas de energia e infra-estrutura. Ele descreve como essas projeções eram manipuladas através de modelos econométricos para indicarem um desenvolvimento muito maior do que aquele que ocorreria de fato, de modo a justificar empréstimos vultosos das instituições de Bretton Woods e contratos valiosos para as empreiteiras americanas. Corrupção é parte inerente do processo. Dinheiro, viagens, mulheres.

Perkins parece ser um sujeito angustiado e solitário, que encarou de frente o fato de que se vendeu ao esquema porque este lhe permitia uma vida de magnata, muito além de suas expectativas da pequena classe média do interior dos EUA. Ao mesmo tempo, demonstra um interesse incomum por outras culturas e capacidade para fazer amigos nelas, embora suas descrições não escapem de uma certa romantização.

Ele afirma que foi motivado a escrever suas confissões pelo nascimento da filha e os atentados de 11 de setembro, eventos que o forçaram a acertar as contas com o passado. Hoje ele se dedica a fontes alternativas de energia, toca uma ONG ambiental e escreve. E tem um site pessoal.

O livro é interessante, poderia ser excelente se fosse mais profundo. A segunda metade, que descreve a vida de Perkins fora da "corporocracia" é bem mais fraca do que os bastidores de seu período no jogo sujo.

domingo, junho 26, 2005

O Próximo Passo

Por conta do artigo no Globo, muitos amigos e alunos me procuraram no fim de semana para compartilhar a decepção com o governo Lula e desabafar o sentimento de falta de perspectivas para o país. A sensação de que a política nacional é essencialmente corrupta e que nossos sonhos foram todos vendidos, tão barato que nem acreditamos.

Comentei em posts anteriores que as organizações da sociedade civil estão divididas quanto ao que fazer. O governo foi hábil em cooptar lideranças com cargos, prestígio simbólico, almoços com ministros ou simplesmente com o discurso de que criticar Lula é fazer o jogo da direita. De minha parte, penso que essa proximidade com o poder oficial é desastrosa para ONGs e movimentos sociais, além de colocar boas pessoas num verdadeiro pântano moral, de difíceis escolhas.

Acredito que a situação irá se agravar, agora que o governo recorre à reforma ministerial para consolidar a aliança com o PMDB, o maior saco de gatos da República. Com amigos desse naipe, tudo o que a oposição precisa fazer é esperar e observar. Cinco segundos de investigação resolvem o resto.

Não sei até quando conseguirei manter minha autonomia para escrever e pesquisar dentro do Ibase, depois do esporro que levei na sexta. Se o instituto optar pela adesão ao governo, será hora de pensar em alternativas, talvez na academia, talvez no jornalismo. Sempre vivi do que escrevo e não pretendo abandonar minha liberdade, sem ela perco o próprio sentido do meu trabalho.

Em meio à crise política, tenho redescoberto o imenso prazer que sinto com a literatura. As conversas com amigos e colegas de Ibase giram sobre as crônicas de Rubem Braga e Nelson Rodrigues, os poemas de Vinicius, os contos de Borges e os romances de Thomas Mann. Consegui empolgar minha estagiária, amanhã emprestarei a ela "A Montanha Mágica" e um livro de contos de Cortázar, que traz uma obra-prima, "O Perseguidor", o perfil de um músico de jazz genial e atormentado, inspirado em Charlie Parker.

Na sexta uma amiga querida me convidou para escrever para o grupo de teatro que ela está montando, que tem o nome delicioso de "O Próximo Passo". No sábado, numa festa, convenci outro amigo a se juntar à trupe e por conta disso nos meses vindouros devo brincar um pouco de dramaturgo e escritor. Por que não? Inquietude e vontade de experimentar, sempre. Senão a gente vira Delúbio. Que aliás - acreditem - trabalhou no Ibase.

sexta-feira, junho 24, 2005

Confissões de um Golpista

"Você viu que o Ibase assinou um manifesto que chama a imprensa de golpista? O que eu faço se, durante a apresentação de um seminário ou pesquisa, um jornalista me questionar se eu confirmo essa declaração?", perguntei nesta sexta para um colega de instituto. Ele pensou um pouco antes de me responder: "Não se preocupe, jornalismo crítico é coisa do passado. Os repórteres não lêem nada hoje em dia, logo vão esquecer dessa carta."

Nesta sexta o Globo publicou um artigo meu "De volta às ruas, contra o mensalão", descendo o sarrafo no governo. Houve divisões na direção do Ibase quanto ao texto e conversei sobre o tema por mais de uma hora com os diretores. A diretoria vai se reunir novamente na segunda, para discutir o caso. Na realidade, já havia escrito anteriormente tudo o que está no artigo, mas o peso de algo que sai num jornal de grande circulação é sempre maior e isso às vezes assusta as pessoas. Vários colegas me disseram que o texto era "corajoso" e meus desafetos devem ter confirmado novamente que sou insensato.

Felizmente, consegui resolver os problemas de agenda. Devo viajar para o Reino Unido no dia 2, e assinar a escritura na véspera. Níveis emocionais de volta ao habitual dos Santoro. O que, pensando bem, ainda é longe dos padrões recomendados pela Organização Mundial da Saúde.

Comecei a estudar os temas que serão tratados na reunião do G-8 e estou bastante entusiasmado. A discussão sobre a dívida dos países africanos será um dos pontos principais, há também a divergência entre os membros da UE sobre o orçamento comunitário. Imagino que o mais interessante será acompanhar de perto a atuação dos movimentos sociais europeus. E claro, o show do Live 8.

O presidente Lula também deve estar presente, apresentando seu plano internacional de combate à fome e à pobreza. Na semana passada, assisti a um seminário sobre o tema, minha estagiária e eu escrevemos um artigo a respeito. Deve entrar no site do Ibase na sexta à noite. O plano não é ruim, mas é incoerente pregá-lo no exterior e manter uma política econômica doméstica de péssimos resultados. Acredito que haverá um certo interesse da imprensa internacional em ouvir essa crítica, estou preparando material para apresentar na Escócia.

quinta-feira, junho 23, 2005

O Efeito Orloff

Conversando com uma colega e amiga argentina ontem à tarde, a primeira pergunta que ouvi foi: "mas o que está acontecendo com o seu país?" Como ela chegou ao Rio anteontem, está se familiarizando com o clima político forçadamente. Basta ler as manchetes dos jornais ou ligar a TV.

Já havia discutido com o Mauricio sobre isso em outra ocasião, mas se prestássemos mais atenção de maneira geral à política argentina, comparando-a mais freqüentemente com a nossa, veríamos uma série de coincidências difíceis de serem ignoradas. Minha amiga argentina não se cansava de repetir as semelhanças da crise política brasileira atual e da crise enfrentada por Fernando de la Rúa -- tanto Lula como de la Rúa foram eleitos a partir de uma desilusão com a política econômica, uma esperança de moralização política e com o apoio de uma base social ampla. A desilusão popular vem quando a política econômica não se altera (de fato o modelo se aprofunda), a corrupção vira moeda corrente de troca (lembrem que o estopim da crise argentina foi a compra de votos no Congresso Argentino) e uma desilusão profunda da opinião pública a respeito de uma solução política para a crise.

Claro que é bom lembrar que, quando a crise estourou na Argentina, restavam ainda três anos de mandato a de la Rúa, o que transformava quase toda sua presidência em uma exercício de sobrevivência de crise. Mais ainda: o partido peronista é uma força no país que não tem paralelo no nosso. Com tudo isso, a sociedade argentina esgarçou-se e conhecemos o resultado: de la Rúa caiu e a economia argentina se afundou no buraco em que estava. Não creio que atingiremos este ponto, mas é importante lembrarmos da Argentina.

Ao fim da conversa, minha colega comentou: "o grande problema é que vivemos em crise constante, a única coisa que varia são os graus desta crise." É triste. Mas é verdade.

terça-feira, junho 21, 2005

Curto-Circuito

Há algumas semanas meu chefe conversou comigo sobre a possibilidade de que eu fizesse uma capacitação de três semanas na Noruega. O IBASE faria minha inscrição e depois procuraria uma agência financiadora para cobrir meus gastos na Europa. OK. Apareceu uma que toparia pagar as despesas, mas aí se descobriu que o instituto não fez a inscrição - por um problema de comunicação interna, as secretárias acharam que eu estaria encarregado disso. E o prazo se encerrou há duas semanas.

Fiquei com o humor de um homem bomba preso num engarrafamento em Ramallah, mas como não adianta chorar sobre o leite derramado, quero mais é aproveitar e tirar julho de férias. Vou cuidar da burocracia relativa ao apartamento que estou comprando (assino a escritura no dia 1), curtir o último mês do meu irmão no Rio e, acima de tudo, relaxar de um período bastante agitado na minha vida. Antes que entre em curto-circuito.

Hoje à noite tenho a última aula do doutorado. Com ela, encerro os créditos. Daí tenho 2,5 anos para me dedicar à pesquisa e à redação da tese. É, passa rápido mesmo. Não ter que ir regularmente ao IUPERJ fará maravilhas pela minha qualidade de vida, fora o fato de que as leituras ficarão mais leves e soltas. Deus abençoe a liberdade.

Amanhã embarco para Brasília no primeiro vôo. Vou a uma reunião de rotina do Fórum Nacional de Participação Popular, mas acredito que ouvirei novidades sobre a crise, porque o encontro é numa ONG que trabalha muito com o Congresso. Retorno ao Rio no início da noite.

domingo, junho 19, 2005

Nelson Rodrigues, Jornalista


Um mestre em açãoPosted by Hello

Continuo em meu projeto de mergulhar no que a cultura brasileira tem de melhor, para lavar a cabeça do mar de lama da política nacional. Depois de reler a biografia de Vinicius de Moraes, agora foi a vez de "O Anjo Pornográfico - a vida de Nelson Rodrigues", de Ruy Castro, que tinha lido pela primeira vez quando era calouro de jornalismo.

Deixo para meus amigos atores a tarefa de comentar o Nelson dramaturgo. Me limito a observar que ele levou a Semana de Arte Moderna de 1922 ao teatro, renovando a linguagem dos palcos. O que mais me agradou nessa releitura da biografia foi o lado jornalista do mestre.

O pai de Nelson, Mario Rodrigues, foi um homem de imprensa importante na República Velha, chegou a ser dono de dois jornais - "A Manhã" e "Crítica". As reportagens da época não eram brincadeira, manipulação e fraude eram a regra. Uma mulher ofendida numa matéria invadiu a redação em busca de Mario e, não o encontrando, assassinou a tiros um de seus filhos, Roberto - desenhista e pintor de enorme talento, que morreu cedo demais.

Outro Rodrigues a se destacar na imprensa foi o irmão mais velho de Nelson, Mario Filho, que praticamente inventou o jornalismo esportivo no Brasil, liderou a campanha pela construção do Maracanã e ainda fundou o Jornal dos Sports. Mesmo não sendo minha praia, é fascinante acompanhar as sacações dele para cobrir as copas do mundo na Europa e o uso inovador que fez da fotografia.

O próprio Nelson, evidentemente, foi um dos jornalistas mais geniais que o Brasil já teve. Nem tanto como repórter, sua contribuição foi mais como cronista e comentarista de TV. Os textos de "A vida como ela é..." e "Confissões" são primorosos, bem como a capacidade dele em capturar tipos populares, gírias, personagens típicos do Rio de Janeiro e colocá-los em suas histórias. Chorei de rir com ele escrevendo "Engraçadinha" em folhetim no jornal "Última Hora", usando seus amigos e colegas de redação como protagonistas, com freqüencia nas situações mais constrangedoras.

Também vale destacar o consultório sentimental que Nelson herdou de Vinicius de Moraes, no semanário "Flan". Ambos escreviam com pseudônimos femininos (Elenice e Susana Flag), mas Nelson só respondia a mulheres , alegando que "homens não têm coração" e num estilo que lembra os joelhaços do Analista de Bagé.

Sigo na jornada pelas belas letras do jornalismo pátrio. O próximo na cabeceira é Rubem Braga, mestre maior da crônica.

sexta-feira, junho 17, 2005

Ninguém Escreve ao Comissário


Adeus, camarada. Te vejo no Gulag. Posted by Hello

Caro companheiro José Dirceu,

Imagino que a barra deve estar pesada aí em Brasília. Depois do discurso "indicado para o Oscar" do Roberto Jefferson, não dava mesmo para você continuar no ministério. Quero ver o que vai acontecer com o Delúbio e o Genoíno. Devem estar fugindo de você, como de um cão sarnento. O poder é efêmero, não é? Mas eu te escrevo.

A primeira vez que ouvi falar de você foi nas disputas internas do partido. A coisa foi um tanto pessoal, porque você estava contra o grupo do meu irmão. Não te culpo: tem horas em que é mesmo meio difícil agüentar o pessoal da DS, sempre reclamando. Meu mano dizia cobras e lagartos de você e também caprichei nos adjetivos depois que você interveio no PT fluminense e impôs a aliança com o Garotinho.

Pois é, comissário: a questão é que essa laia é muito mais esperta do que a gente e ainda tem a vantagem de não precisar sequer aparentar escrúpulos. Pensei que você tivesse aprendido a lição do Rio, mas vi que não quando começaram os acordos com Roberto Jefferson & Cia. Tudo em nome da governabilidade, claro. Mas o estranho é que o programa implantado é o de outro partido. É como se Fausto vendesse a alma a Mefisto e ainda levasse um fora da Margareth e da Helena de Tróia, ficando a ver navios pelos rios da Alemanha.

Só podia dar nesse teatro das sombras bizarro, com tesoureiros, espiões, cortejos de carros blindados, malas de dinheiro (imagino que em notas miúdas, como nos filmes de máfia) e a atuações de charlatões nas CPIs e comissões de ética. E o pior, comissário, é ver o aspecto abatido do Genoíno, aquela cara de quem sabe que as denúncias são apenas a ponta do iceberg.

Me surpreendi em ver você em Madri, no meio da crise, dizendo que o PT quer ficar 12 anos no poder. Isso é idade de uísque, camarada. O Sérgio Motta tinha prometido aos tucanos um Reich um pouco mais ambicioso, de 20 anos. Depois você chama o senador Suplicy de "estranho" quando ele assina a CPI. Comecei a me sentir em "A Vingança dos Sith", com você repetindo os diálogos de Darth Vader. E Lula de Jar Jar Binks.

Os jornais estão dizendo que Márcio Thomas Bastos, o melhor ministro do governo (que belo trabalho na Polícia Federal!) vai para o seu lugar. Que vem por aí uma reforma ministerial, que até o Abílio Diniz foi convidado. Logo ele, cujos seqüestradores foram fantasiados com a camisa do PT em 1989, pela polícia de SP, lembra? Mas entendo o presidente. Nesse quadro, eu também tentaria recompor o gabinete com nomes "técnicos" e "neutros", afastando o fantasma de quadros partidários corruptos e autoritários.

Comissário, sugiro uma temporada no gulag. A prisão sempre é boa para políticos e intelectuais, ajuda a refrescar as idéias. Ontem você se despediu com um inacreditável "a luta continua". Camarada, isso a gente diz quando tem vergonha de constatar o óbvio: que perdemos novamente!

quarta-feira, junho 15, 2005

Argentina: memória e justiça


Nunca Mais Posted by Hello

Na terça-feira a Suprema Corte da Argentina declarou inconstitucionais as leis de anistia aos militares que cometeram seqüestro, torturas e assassinatos durante a mais recente ditadura daquele país, entre 1976-1983. O argumento dos juízes é que os pactos internacionais de direitos humanos assinados pela Argentina invalidam a legislação que protegia os militares. Estima-se que 30 mil pessoas foram assassinadas na ditadura por motivos políticos. Desconheço as estimativas para os que foram presos e torturados.

Na Argentina, a ditadura caiu de modo muito mais brusco do que no Brasil, onde houve uma transição "lenta, gradual e segura" de 10 anos. A rápida virada para a democracia em nossos vizinhos se deu, claro, pela derrota humilhante que o regime autoritário sofreu na guerra das Malvinas. Não sei se é coincidência, mas a decisão da Suprema Corte vem no mesmo dia - 14 de junho - em que o conflito terminou. O simbolismo, mesmo que acidental, é forte.

A junta militar que governava a Argentina e levou o país a uma guerra desastrosa já havia sido julgada e condenada, ainda no calor da derrota. Mas os processos contra os oficiais de médio e pequeno escalão, que conduziram a rotina das torturas e da repressão, foram interrompidos no governo Alfonsín, depois que o presidente se apavorou com as freqüentes rebeliões dos militares. A jovem democracia argentina se rendeu ao medo e promulgou as Leis da Obediência Devida e do Ponto Final.

De lá para cá, muita coisa mudou. O trabalho das organizações da sociedade civil na Argentina foi exemplar em denunciar os crimes da ditadura, principalmente através das Mães e Avós da Praça de Maio, mas também por entidades como Anistia Internacional, Human Rights Watch, Organização dos Estados Americanos e ONU. As campanhas renderam um prêmio Nobel da Paz a um dos principais ativistas (Adolfo Pérez Esquivel) e um Oscar de melhor filme estrangeiro a um drama sobre desaparecidos ("A História Oficial").

A batalha pelos corações e mentes em torno dos direitos humanos foi ganha. É significativo que mesmo nos piores momentos da crise de 2001 não tenha havido apoio para um golpe militar. O presidente Kirchner e sua mulher foram presos políticos. Entre as reformas que introduziu está a renovação da Suprema Corte (manchada por escândalos de corrupção na era Menem) e a transformação do mais infame centro de torturas, a Escola de Mecânica da Marinha, num Museu da Memória.

A Argentina e até mesmo o Chile, cheio de órfãos de Pinochet, deram passos importantes para acertar as contas com o passado. No Brasil, o governo Lula capitulou diante dos militares e até demitiu o ministro da Defesa que se opôs a eles. Vale lembrar que nosso país é signatário dos mesmos pactos internacionais de direitos humanos que a Argentina. Se lá os acordos invalidaram as leis de anistia, por que não aqui?

terça-feira, junho 14, 2005

Para Quem Tem Paixão


Tom e Vinicius compondo Orfeu Posted by Hello


Na onda do interlúdio literário, reli nos últimos dias "O Poeta da Paixão", bela biografia de Vinicius de Moraes escrita pelo jornalista José Castello. O livro é um banquete à base de palavras essenciais - poesia, paixão, amor, amizade, Brasil. Meu entusiasmo transbordou e Vinicius foi tema de vários papos com os colegas de trabalho. A gente nunca conseguirá celebrá-lo tanto como ele merece.

O que mais destacamos foi o poetinha como símbolo de outra época, "desse Rio de amor que se perdeu" para usar os versos do próprio, no qual os meios jornalísticos e artísticos fervilhavam. Parece que todo mundo era amigo e se estimulava mutuamente: Vinicius, Bandeira, Jobim, Rubem Braga, Nelson Rodrigues, João Cabral. Tomemos por exemplo a estréia de "Orfeu da Conceição" em 1956. A peça: Vinicius. A música: Tom Jobim. O cenário: Oscar Niemeyer. Para ficar só nos medalhões.

Castello não aborda muito o envolvimento do poeta com a política, mas o essencial está lá: a juventude ligada aos grupos religiosos conservadores e a virada para a esquerda após o primeiro casamento e a Segunda Guerra Mundial, a oposição à ditadura militar, a ruptura com os padrões clássicos dos intelectuais para uma vida de showman da música popular, incluindo um exílio meio hippie na Bahia.

Mas claro que o principal na vida de Vinicius são as mulheres. Nove casamentos e Deus sabe quantos namoros, flertes, ficadas, etc. Ninguém se torna o maior sonetista em língua portuguesa desde Camões sem um tremendo manancial de inspirações. O outro lado da história é seu alcoolismo e seus surtos de depressão. No fundo, um homem bem mais sombrio do que a imagem usual. O site oficial do poetinha está muito bom e vale visitá-lo e deixá-lo na lista de favoritos.

Nesta assim chamada "terça-feira negra" para o governo, pensei no que Vinicius fez ao saber do AI-5. Interrompeu um show em Portugal e anunciou à platéia o que ocorria no Brasil. Depois recitou o poema "Pátria Minha". Aqui vão alguns trechos:

Vontade de beijar os olhos de minha pátria
De niná-la, de passar-lhe a mão pelos cabelos...
Vontade de mudar as cores do vestido (auriverde!) tão feias
De minha pátria, de minha pátria sem sapatos
E sem meias, pátria minha
Tão pobrinha!

Mais do que a mais garrida a minha pátria tem
Uma quentura, um querer bem, um bem
Um libertas quae sera tamen
Que um dia traduzi num exame escrito:
"Liberta que serás também"
E repito!

Não te direi o nome, pátria minha
Teu nome é pátria amada, é patriazinha
Não rima com mãe gentil
Vives em mim como uma filha, que és
Uma ilha de ternura: a Ilha
Brasil, talvez.

segunda-feira, junho 13, 2005

Chile: a atualidade do passado


A favorita à presidência do Chile Posted by Hello


No fim ano irão ocorrer eleições presidenciais no Chile e a favorita é a socialista Michelle Bachelet, uma médica que foi presa política durante a ditadura de Pinochet, junto com a família – o pai era general da Força Áerea e aliado de Salvador Allende. Após a redemocratização, foi ministra da Saúde e a primeira mulher a ocupar a pasta da Defesa, onde conduziu no governo Lagos uma corajosa política de direitos humanos e reparação dos crimes da ditadura.

Minha visita a Santiago no ano passado foi marcada por excelentes conversas sobre a política no país, inclusive com o ex-ministro da Fazenda de Allende, que foi palestrante no evento que organizei. O Chile é muito citado como uma história de sucesso econômico. De fato, o PIB cresceu muito, a inflação foi controlada e as condições sociais são bastante boas. Mas a desigualdade é imensa, só inferior ao Brasil.

O que mais me impressionou foi um clima de desânimo e abatimento nas pessoas, inclusive com taxas altíssimas de depressão e suicídios. Marca de uma sociedade autoritária, que ainda vive de modo muito intenso os conflitos da era Pinochet.

Li por estes dias dois bons livros que me ajudaram a entender um pouco do que se passa além da cordilheira: “El Quiebre de la democracia em Chile”, de Arturo Valenzuela e “Chile, un país dividido: la actualidad del pasado”, de Cláudio Huneeus. O primeiro é um excelente estudo sobre as tensões sociais que precederam o golpe, abordando os anos 60 e 70. O segundo é um painel, a partir de pesquisas de opinião, sobre as atuais posições dos chilenos face à ditadura e ao legado do general Pinochet. A conclusão principal é que persiste uma significativa base social autoritária no pais, cerca de 1/3 do eleitorado. Quase ganhou a última eleição presidencial.

Apesar disso, desde a redemocratização em 1990 o Chile vem sendo governando por uma coligação de centro-esquerda (democratas-cristãos e socialistas), que basicamente manteve o modelo liberal da economia de Pinochet, centrada na agroexportação, e tenta compensá-lo pro meio de políticas sociais e da retomada dos direitos humanos. O desafio é o mesmo de uma série de presidentes em nosso continente. Escrevi até um artigo sobre "O Modelo Chileno e os Dilemas da América do Sul."

Boa sorte a Michelle. Tem a simpatia e a torcida deste blogueiro.

sexta-feira, junho 10, 2005

Interlúdio Poético

"Talvez não haja uma saída para esta crise. Talvez a própria política, no fundo, não sirva para muita coisa e a gente precise dela apenas como uma invenção para seguir vivendo."

O pensamento veio de um veterano economista e professor universitário, consultor do IBASE. Trabalhamos em dois projetos e viajamos bastante, tanto pelo Brasil quanto por outros países. Gosto muito de conversar com ele e ouvir suas histórias de tempos passados, pedir dicas de leitura ou simplesmente falar sobre a vida.

Ele estava com uma coletânea de textos de Caio Fernando Abreu e leu para mim algumas das cartas do escritor gaúcho, a maioria escritas quando ele estava desbundando em Londres, nos anos 70. Demos umas boas risadas imaginando a reação da mãe do autor às descrições das seitas erótico-esotéricas que ele freqüentava na capital britânica.

Por concidência, nesta semana uma amiga do IBASE me presenteou com uma coletânea de outro gaúcho, o poeta Mário Quintana. Concordamos que em meio a tantas turbulências, um interlúdio poético é bem-vindo. Uma dose de beleza para lembrar que o ser humano é capaz de muito mais do que se prostituir na luta pelo poder.

Mas a boa política também é uma aposta na capacidade das pessoas em praticar a arte do encontro - mesmo que haja tanto desencontro pela vida. Já escrevi aqui sobre minha visita à Conectas Sur, uma ONG paulistana que entre outros belos projetos faz um intercâmbio com africanos. A amizade que nasceu em torno de uma feijoada deu frutos. Hoje uma das pesquisadoras de lá e eu conseguimos interessar a direção do IBASE em receber um moçambicano como intercambista. Ainda precisamos fechar vários detalhes, mas a boa vontade e o entusiasmo são contagiantes. Acho que todos sairão ganhando.

Por isso sempre serei contra visões de mundo cínicas, que acham que tudo está perdido. A vida é muito mais divertida quando a gente pensa o contrário, mesmo que seja a invenção citada por meu colega de instituto. É preciso ser um pouco poeta para sobreviver aos perigos deste mundo maluco.

quinta-feira, junho 09, 2005

"Après Moi, le Delúbio!"

Seguindo o post do Mauricio, não poderia me furtar a escrever sobre a crise política atual. Estava pensando especialmente em como o mundo da política dá voltas. Então vejamos.

É interessantíssimo ver o PT se comportando como o antigo PSDB-PFL negando o inegável, e estes últimos agindo como se fossem os bastiões da moral, decência e probidade em seu zelo persecutório. Com os papéis trocados, o PT pede uma CPI contida (já existiu isso? Que pedido político bobo...) e, pasmem, uma reforma política! Já vimos também esta história: quando as coisas ficam esculhambadas fala-se em reforma política. "Ah, se só os nossos políticos votassem contra seus interesses, tudo mudaria..." Com essa base parlamentar capenga, que tal ler alguma coisa que mencione o tal "problema da ação coletiva"? Parece que a Branca de Neve ou algum dos Ursinhos Carinhosos assumiu a estratégia política do PT.

O mais fantástico em nosso país, no entanto, é descobrir de vez em quando essas figuras que trabalham nos porões. Esse tal de Delúbio teria que ser inventado se não existisse (assim como os anões do Orçamento, o PC Farias, o Waldomiro Diniz...). A entrevista coletiva de ontem foi um exercício em delongas e declarações vagas. No fim, ficou a imagem constrangedora do José Genuíno se levantando desesperado para acabar com aquele desastre em curso. Triste imagem para alguém que sempre cobrou probidade das figuras públicas.

E que tal essa de que "todo mundo já sabia dessas denúncias"? Crime de responsabilidade SIM. Como sempre, somos os últimos a saber. E fica tudo por isso mesmo.

Por fim, concordo plenamente com o Mauricio. O Jefferson ainda nem começou a abrir a tal "caixinha das maldades". Deus segure esse governo (e esse país) quando o fizer. Enquanto isso, todos nós teremos o prazer de ver o netinho do ACM se preparando para fazer show na CPI. E como diria a Rede Globo: "CPI e BBB, tudo a ver".

quarta-feira, junho 08, 2005

Boca no Trombone


Recordar é viver... Posted by Hello

Nesta tarde fui entrevistado por Lilian Witte Fibe (que agora comanda o UOL News) sobre os escândalos de corrupção no governo. Meu ponto principal foi a necessidade da mobilização dos cidadãos para garantir a democracia e a defesa das instituições, independente de que partido esteja no poder. Também falei sobre os projetos que o IBASE tem na área, em particular uma pesquisa comparada sobre orçamento na América Latina e o monitoramento da participação social na presidência de Lula.

Lilian comentou que está recebendo muitos e-mails indignados dos internautas se dizendo frustrados e desiludidos com Lula, senão com a política em si mesma. Ela me perguntou se eu mantinha o otimismo e lhe respondi lembrando o exemplo de Betinho, que nos deixou a lição de que sempre vale a pena acreditar na sociedade. Ela sugeriu que o IBASE tocasse adiante uma grande campanha contra a corrupção, nos moldes da Ação da Cidadania contra a Fome. Anotado.

É legal conversar com uma jornalista a quem admiro mas para mim o mais divertido da entrevista foi malhar o Roberto Jefferson, que classifiquei como “uma das figuras mais pitorescas do nosso folclore político”. “Para dizer o mínimo”, riu Lilian. Também desci a lenha no Severino. A gente ganha mal mas se diverte.

Na semana que vem entrego ao Jornal do Brasil meu primeiro artigo para a nova coluna do IBASE. Conversei com o assessor de imprensa do instituto e a idéia é que eu escreva sobre a crise política. Penso na possibilidade de comparar a situação brasileira ao impasse da Bolívia e do Equador. Os três casos têm em comum a esperança de transformação degenerando em corrupção e frustração. Mas nos países andinos houve uma reação popular muito forte, inexistente em nosso país, e que culminou na renúncia e deposição dos presidentes – aqui, o governo foi muito mais hábil em cooptar e dividir os movimentos sociais.

Ao que parece o PT vai eleger o tesoureiro Delúbio Soares como o bode expiatório da crise. O PTB já fez isso com Jefferson. Vejamos o rumo que tomará a CPI. Dadas as trapalhadas do governo, com vários ministros assumindo que sabiam do mensalão (isso não é crime de responsabilidade?) teremos emoções fortes pela frente.

segunda-feira, junho 06, 2005

Garganta Profunda


Diga-me com quem andas... Posted by Hello

Só faltava a entrevista-bomba para explodir o barril de pólvora da corrupção no governo Lula. Agora não falta mais. Nesta segunda a Folha de S. Paulo publicou uma entrevista de Roberto Jefferson na qual ele acusa o PT de pagar uma mesada de R$30 mil a deputados da base aliada. O homem da mala seria Delúbio Soares, o ex-tesoureiro da campanha do presidente.

É caso para impeachment, mas acompanhando o blog de Ricardo Noblat, parece que a estratégia da oposição será desgastar Lula ao máximo, para que ele seja um candidato fraco à reeleição, ou nem mesmo concorra. Acho que todos os cidadãos que acompanham a crise estão com o sentimento muito forte de que as falcatruas nos correios e agora as mesadas são apenas a ponta do iceberg de relações muito irregulares entre o governo e seus aliados.

Jefferson percorreu um longo caminho desde seus dias do “Povo na TV”, passando pela tropa de choque de Collor e do lugar de um dos principais acusados na CPI do Orçamento para um dos pilares do governo petista no Congresso. Minha fé na humanidade não inclui a crença em sua regeneração. Acho que ele está falando 10% para vender caro o silêncio sobre o resto dos 90%. Com aliados como esse, ninguém precisa de oposição.

Difícil imaginar uma saída para a crise. Como no caso Waldomiro, tudo aponta para o envolvimento da alta cúpula do PT. Com o que se anuncia como um fraco desempenho da economia em 2005, estão prontos os ingredientes da receita do fracasso do governo. Triste fim para um presidente cuja biografia merecia uma conclusão melhor.

domingo, junho 05, 2005

Quanto vale ou é por quilo?


Atrizes ótimas a escrava Lucrécia e Maria do Rosário em "Quanto Vale ou e por quilo?" Posted by Hello

“Não me surpreendo com a raça humana. Não julgo impossível sequer que em 200, cem ou mesmo 50 anos, voltemos a ter escravidão ou algo pior. A história não anda necessariamente sempre para frente.” Com palavras mais ou menos como essas, e sem nenhuma pena, ou raiva, minha orientadora, colocou no devido lugar o scholar que tinha acabado de dar uma palestra para os acadêmicos colonizados que ouviam seu discurso setentrional, por definição superior, e vinha nos ensinar o que havia mudado no mundo pós-guerra fria. Não lembro o nome do famoso medalhão, mas lembro das cruas palavras realistas da mestra e passei a admirá-la mais.

Lembrei destas palavras quando vi o trailer de “Quanto vale ou é por quilo?” julgando que veria uma peça de ficção que mostrasse a volta da escravidão no Brasil de hoje. Algo como uma crítica ácida à desigualdade, que retratasse que a escravidão pelo menos não era hipócrita. Não vi nada disso. O trailer me fez ir ver o filme, mas o filme é péssimo.

Teoricamente deveria ser uma comparação da sociedade escravista da colônia com a desigualdade social de hoje. O mercado de pessoas passou de escravos para miseráveis. Os compradores de senhores viraram ONGs. Pretensamente acusatório e com o objetivo de chocar, o filme tem um discurso muito conservador. A mensagem que passa é: Não podemos fazer nada! Não tem nenhum personagem principal cativante no filme, a não ser a Miryam Pires, velhinha que vira ‘laranja’ do dono da ONG. Todos os demais são escroques. Ou burros. Ou tão vociferantemente raivosos que não atraem nenhuma simpatia, mas medo. Viram todos criminosos em algum ponto.

“Quanto vale” não se decide se é documentário ou ficção. Isso trás implicações morais a meu ver. A passagem que a meu ver é a mais abjeta mostra velhinhos muito debilitados, babando, sendo deixados a urinar, em um asilo com péssimas condições. Não fica claro, mas me parece óbvio que é a única cena do filme que não foi feita por atores, mas retratava realmente pessoas que tiveram sua dor ‘real’usada de modo anti-ético numa ficção. E o pior é que nada tem a ver com a história. A cena é plenamente dispensável e até exótica ao argumento.

Outro pecado mortal. Ao reconstituir com figurino vagabundo (que provavelmente sobrou de alguma novela da Manchete), cenas da escravidão do final do século XVIII, o filme sempre dá crédito ao Arquivo Nacional. Retirado do ANRJ, 4º oficio de notas. Caixa X, lote Y. Só que em pelo menos dois casos, a preguiça de pesquisador não chegou a fazer o responsável pelo roteiro sentar seu traseiro nas cadeiras duras no ANRJ. O Primeiro caso, foi retirado inteiramente do ótimo livro “Crônicas históricas do Rio Colônial” escrito por Nireu Cavalcanti, professor de arquitetura da UFF. As palavras que Nireu usa em seu livro ao recontar casos que ELE pesquisou no arquivo nacional são ‘plagiadas’, sem o devido crédito, na voz do narrador do filme. Coisas que não poderiam sair de nenhuma fonte histórica judiciária, como os pensamentos dos personagens, que Nireu especula em seu livro e o filme copia e ainda copia mal.

Ainda mais descarada é a referência explícita feita à história do conto de “Pai contra Mãe” de Machado de Assis. Como é cópia literária, esta é a única reconstituição de época que não termina com citação ao Arquivo nacional, mas como o resto do filme sempre cita o AN, o cineasta passa a idéia de que esta história que inspira o filme também é verídica.

O filme esculhamba completamente a ação das entidades sociais. Seu discurso coloca todas as ongs no mesmo saco, disputando uma fatia a mais do mercado da miséria. Em determinado momento aparece uma conta esdrúxula. O que se gasta com ‘solidariedade’, salários, aluguéis, publicidade, das estimadas 10 mil entidades envolvidas em assistência é 100 milhões de dólares por ano. O filme diz abertamente que isso daria um apartamento de quarto e sala para cada uma das estimadas 10 mil crianças de rua do Brasil. As estimativas, certamente não saíram do livro do Nireu, que é um profissional sério e não faz afirmativas levianas.

Cenas absurdas que reificam o preconceito, mostra crianças faveladas, invadindo e destruindo numa baderna um centro de informática 10 segundos após sua inauguração ou ou ativistas sociais que protestando contra a corrupção são rapidamente subornados pelo corrupto. Preço da propina: convite para um coquetel no Teatro Municipal que eles ‘bestializados’ não conheciam.

Pior. O filme incita a violência. Diante da corrupção (ou imbecilidade) completa daqueles que querem ajudar (isto é, o movimento social), só o que resta é seqüestrar e matar ou mutilar todos os corruptos. Pretensamente é ficção. Se fosse um documentário (ou se assumisse como um) poderíamos abrir um processo por incitação a prática de crimes, pois o filme dá uma aula de seqüestro, inclusive sobre o que fazer para acelerar a negociação com a família. Alias, como o diretor é um inseguro indeciso, ele não soube escolher qual final ia por e colocou dois. Assim, após ser morta, a ‘honesta’ do filme ressuscita e conclama o assassino a abrir uma central de seqüestros ‘não apenas pela grana, mas para fazer os corruptos sofrerem...’

No fundo, o que o filme diz é que a culpa da classe média e alta leva ao impulso solidário. As ongs nada mais são do que empresas capitalistas (inúteis e corruptas) que fazem desta culpa seu filão e disputam fatias de mercado para comprar e vender ‘ajuda ao próximo’. O ativismo engajado é assassinado e a escravidão, pretenso tema do filme, é rapidamente esquecido pelo espectador, que sai do cinema quase um liberal ou pior, um criminoso.

sexta-feira, junho 03, 2005

Coquetel Acadêmico

"Você recebeu o convite para o lançamento do meu livro?"
"Cinco vezes"
"Decidi estudar o seu país"
"Isso é fácil, para entender a Argentina, basta entender o peronismo."
"Ai, caramba! Não tem outra maneira?"
"Sempre achei seu orientador o professor mais legal do instituto."
"Como dizia Drummond, Que é loucura? Ser Cavaleiro Andante? Ou segui-lo como escudeiro? "
"Você escreveu a tese com um filho recém-nascido?"
"Pois é, virei o terror dos meus colegas. Quando eles reclamam de dor de cabeça ou resfriado para atrasar entrega de textos, meu orientador cita o meu caso."
"Rapaz, há quanto tempo! Pensei que você tivesse ido para a Noruega!"
"Não, eu ia para casar, mas o casamento foi para o espaço. Olha, obrigado pela sua indicação, graças a ela consegui financiamento para meu filme."
"Como está cheio! Estou olhando a galera e pensando que daqui a 20 anos todo mundo vai estar na história das ciências sociais brasileiras."
"É, e eu vou pegar o livro e dizer: Esse é fulano, que não ia a nenhuma aula, essa é sicrana, que sempre atrasava os trabalhos, esse é beltrano, que até hoje me deve R$50."
"O seu filho de 6 meses me lembra o meu cachorro. Quer sempre ser o centro das atenções e os dois têm mais ou menos o mesmo vocabulário."
"Ele também tem medo de vacina?"
"Mestre, ninguém está levando a sério meu plano da bolsa sanduíche em Buenos Aires. Todo mundo acha que só vou tomar vinho por lá."
"Bom, mas convenhamos que você vai se divertir, não é mesmo?"
"Começamos um trabalho de capacitação muito bom com a polícia..."
"Estou com o Itagiba por aqui."
"O plano é ir para Nova York em agosto e ficar 9 meses em Columbia, aprendendo metodologia."
"Vai rolar bota fora?"
"Porque eu não quero ser um teórico. Quero ir para o mercado, fazer consultoria."
"Faz bem."
"Não sabia que nessa livraria tinha um sebo."
"E excelente! Uma estante só sobre China!"
" Mudei o enfoque do projeto, mas o objetivo da pesquisa é o mesmo."
"Isso é desculpa para a banca. Pode me contar a verdade."
"Para ser sincera, o problema é que a bibliografia era muito chata."
"Galera, vamos emendar num chope?"

quarta-feira, junho 01, 2005

O Episódio Final

Depois de ter esperado vários anos pelo episódio final (pelo menos até o momento) da série "Guerra nas Estralas", saí do cinema decepcionado mas com algumas coisas na cabeça. Aqui vão alguns pensamentos randômicos a respeito do filme (e da série). Prometo que está livre de "spoilers" para quem ainda não viu.

(1) O terceiro episódio é bom. Pelo menos, comparado aos dois anteriores, este aqui vale a entrada no cinema. Poder ver na telona o Darth Vader, o Chewbacca e o Yoda no mesmo filme de novo foi ótimo. No entanto, quando os créditos subiram, tive certeza de que os números 1 e 2 são absolutamente inúteis. Pode-se começar a ver a série a partir do terceiro sem qualquer perda na história. Quem se importa com o Qui-Gon, com o Conde Dokoo ou com o Jar-Jar Binks?

(2) Apesar da história do filme ter sido criada há muito tempo atrás, George Lucas (quem diria!) resolver alfinetar o governo Bush! Alguém mais percebeu que o Imperador é o Dick Cheney e o Vader é o Bush? Ninguém brinca com o lado negro da força.

(3) Nos meus tempos de "O Retorno de Jedi", lutas de sabres de luz eram um coisa séria. Ninguém ficava pulando e dando piruetas no ar como em "Kill Bill" e "Matrix". Mas confesso que isso é apenas implicância.

(4) Quer dizer que o Chewbacca já conhecia o Yoda de outras épocas? Que forçado... Só faltou o Boba Fett aparecer de novo.

(5) O Samuel L. Jackson mostrou-se um jedi bundão. Tinha jeito de Shaft, mas habilidade de tartaruga.

(6) Este Hayden Christensen é muito ruim. Ou o roteiro é muito ruim. Ou os dois.
Fiquei com pena da Natalie Portman.

(7) Com este filme, acaba minha paciência para o senhor George Lucas. Prometo que não assisto mais a filmes dirigidos por ele.

(8) Vocês sabiam que o Anakin vira o Darth Vader no final? E que o Lorde Sith era o Senador Palpatine? Pois então, ops, acabei de contar o filme. Faltaram as surpresas. Qualquer uma.

(9) Por que os efeitos do "Senhor dos Anéis" são tão legais, mas os de "Guerra nas Estrelas" parecem cenário falso? Será que é porque os primeiros são feitos com Macintosh e os últimos com PCs? Nunca saberemos.

e, finalmente, (10) Acho que fiquei velho demais para esta série. Saí triste comigo mesmo. Funcionou perfeitamente quando eu tinha 8 anos. Agora, ao sair, procurei imediatamente um café espresso. Para poder acordar.

Ainda o recomendo. É questão de honra ver o episódio final. Mas é só honra mesmo.

Depois do Não


O novo premiê francês Posted by Hello

"Você acha que a Constituição Européia vai ser resolvida no tapetão?", me perguntou ontem meu irmão. Respondi que isso havia ocorrido em fases anteriores da integração. Quando países pequenos como a Irlanda rejeitavam tratados importantes, o que Bruxelas fazia era repetir a votação até o que resultado fosse aquele pretendido pelos senhores da Europa. O problema é que agora o não foi veio de um pilar da UE, a França (e ao que tudo indica, os holandeses seguem hoje o mesmo caminho). Ou seja, é preciso entender o recado das urnas.

O presidente Chirac agiu a seu modo, substituindo o impopular primeiro-ministro, Jean-Pierre Raffarin, por Dominique de Villepin. O novo premiê, em suas primeiras declarações, defendeu o Estado de Bem-Estar Social da França, afirmando que é preciso que a UE seja compatível com ele. É uma posição que o distingue del Nicolas Sarkozy, presidente da UMP e o principal líder em ascensão da direita francesa, que fez campanha pelo sim e por reformas liberais. O Estado francês é caro, talvez caro demais para uma população com muitos velhos e aposentados, e com empresas que podem se mover para outros países com menos regulações e encargos.

Não acredito que Villepin tenha a capacidade necessária para a dificílima tarefa a que se propôs. Ele é um membro típico da elite tecnocrática francesa: diplomata, filho de diplomata, formado pela Escola Nacional de Administração, que treina a nata dos dirigentes do país. Passou a maior parte da vida no exterior, ou no ambiente do alto funcionalismo público. Nunca foi eleito para nada, nunca disputou um voto. Sem dúvida é um homem muito qualificado do ponto de vista intelectual e técnico, mas sem a sensibilidade e a vivência dos problemas da maioria da população.

Para onde vai o voto dessas pessoas? Para os novos partidos de extrema-direita, com um programa de protecionismo econômico, nacionalismo, hostilidade aos imigrantes e ao mundo globalizado. Na maioria dos países europeus, a extrema-direita cresceu a 1/3 dos votos. Na França, mais do que em qualquer outro. Le Pen foi o segundo mais votado nas últimas eleições presidenciais e roubou boa parte do eleitorado tradicional dos partidos de esquerda, como os trabalhadores não-qualificados.

O Partido Socialista francês se dividiu quanto à Constituição. A maioria optou pelo sim, mas o não teve adesões importantes, como a do ex-premiê Laurent Fabius e a da viúva de Mitterand. Como Fabius é candidatíssimo às eleições presidenciais de 2007, é de se esperar que PS ao menos tente formular uma alternativa para o impasse político em que caiu a França.
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