quarta-feira, maio 31, 2006

Congresso, direitos humanos e diplomacia

Passei esta quarta em Brasília. Fui à Câmara dos Deputados para o lançamento do Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa, no qual serei um dos representantes da sociedade civil. O aeroporto do Rio ficou fechado por causa de uma forte neblina, de modo que meu vôo atrasou quatro horas (!) e perdi a solenidade de inauguração. Mas ainda tive tempo de conversar com as pessoas e levantar informações.

O Comitê surgiu a partir das atividades da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara e teve a adesão de outras instâncias governamentais, como o Senado, Itamaraty, Ministério Público, Secretaria Nacional de Direitos Humanos, Secretaria Geral da Presidência e Ministério da Saúde. Pelo campo da sociedade civil, participam diversas organizações não-governamentais e movimentos sociais.

O diálogo entre governo e sociedade tem dois objetivos principais: aumentar a participação cidadã no que toca à promoção diplomática dos DHs e melhorar as atividades de educação nesse campo.

Minha tarefa mais importante no Comitê será abordar as questões ligadas aos DHs no Mercosul. A maioria das organizações sociais que fazem parte da iniciativa concentraram esforços em outras áreas, como o Conselho de DHs da ONU e a Corte Interamericana de DHs. Claro que a atuação do Brasil na América do Sul é um dos pilares da política externa nacional, além de ser a região em que o país tem mais influência. Será um belo desafio, há campo fértil para a ação política da sociedade civil, com temas quentes como migrações, povos indígenas, atos das transnacionais etc.

Penso que pode ser uma boa experiência para a questão da participação do Congresso na agenda diplomática, que atualmente é muito reduzida, basicamente se limita (segundo os próprios parlamentares) à ratificação de tratados e às sabatinas dos embaixadores. Na medida em que o Brasil aprofunda suas relações internacionais, é inevitável que o parlamento e os partidos desempenhem mais tarefas na área.

Há sinais de mudanças, por exemplo, em senadores que acompanham as comunidades de emigrantes brasileiros nos EUA, como já é praxe entre políticos da América Central. Na Itália, as últimas eleições resultaram em brasileiros sendo eleitos ao Congresso daquele país. O próprio parlamento do Mercosul entra em funcionamento no fim deste ano, mas com poderes limitadíssimos pelo menos até meados da próxima década.

Aproveitei a visita a Brasília para rever amigos, funcionários em diversos ministérios. Impressionante o clima de decepção e desalento com corrupção generalizada, nepotismo, ou bagunça administrativa pura e simples. “A gente achava que ia ser diferente com o PT, mas estávamos errados”, me disse um deles. Estou convencido de que só virão mudanças com muita pressão social. O Estado é algo sério demais para ser deixado na mão dos políticos.

sábado, maio 27, 2006

O "Modelo" Colombiano



A imprensa brasileira nunca cansa de me surpreender, particularmente em sua cobertura sobre América Latina. A novidade da semana é que nossos jornalistas descobriram o “modelo” colombiano de segurança pública e que consistiria em adotar políticas de linha dura contra o crime, colocando muitos policiais nas ruas. O sucesso dessa estratégia miraculosa estaria comprovado pela reeleição do presidente Álvaro Uribe, que venceu a disputa deste domingo com mais de 60% dos votos. Certo?

É natural que depois dos atentados terroristas em São Paulo a opinião pública brasileira esteja atrás de respostas rápidas, simples e baratas para resolver de uma vez por toda o problema da violência. Só que não existem panacéias desse tipo. A Colômbia é um alerta, mais do que um exemplo, para o Brasil.

A Colômbia não é o país mais pobre, nem o mais desigual, nem o mais fragmentado da América Latina. Por que virou um inferno de violência fratricida? Posso citar os fatos principais da tragédia, mas não encontro suas razões essenciais. De 1948 para cá a rotina colombiana tem sido de guerras civis. Primeiro entre liberais e conservadores, depois entre guerrilhas marxistas e o governo, mais tarde entre remanescentes dos grupos comunistas, paramilitares, traficantes de drogas e autoridades. Traçar a linha de separação entre quem é quem é tarefa árdua.

Ao longo da década de 90, os grandes cartéis de droga de Cali e Medellín foram desmantelados, com a conseqüência de que esse comércio se tornou mais fragmentado entre pequenos chefes locais e talvez mais difícil de controlar. Os governos de Cesar Gavíria (1990-1994) e Andrés Pastrana (1998-2002) iniciaram negociações com os diversos grupos armados numa tentativa desesperada de paz e estabilidade para o país. Não deu certo, em meio a acusações mútuas de desonestidade e falta de compromisso com a reconciliação nacional. Pastrana também implementou o polêmico Plano Colômbia, pelo qual os EUA investem bilhões de dólares na militarização do combate ao narcotráfico.

Uribe foi eleito pela primeira vez em 2002, já no contexto da “guerra ao terror” após o 11 de setembro. Foi hábil em afirmar que a Colômbia vivia o mesmo problema e o discurso duro ganhou a eleição e conquistou simpatia e apoio de Bush. Conseguiu inclusive usar o dinheiro do Plano Colômbia para combater as FARCs e o ELN, o que é proibido pelo Congresso dos EUA. Sua política teve relativo sucesso em desmobilizar alguns grupos paramilitares. Analistas apontam que terá que negociar com os rebeldes em seu segundo mandato.

Os problemas da violência e da guerrilha persistem. Isso explica porque 57% dos colombianos se abstiveram de votar nas eleições presidenciais de domingo. Não vêem nos políticos soluções para o país. Significado: na prática, apenas 26% dos eleitores de fato deu apoio a Uribe. Outro ponto interessante é que ele se elegeu nas duas vezes como líder de uma coalizão de pequenos partidos, sinal da decadência das agremiações tradicionais, Conservadores e Liberais, que têm fortíssima tradição naquele país.

As eleições presidenciais de domingo e as legislativas que aconteceram em março também marcaram a ascensão de uma nova força de esquerda no país: o Pólo Democrático de Carlos Gavíria (não há parentesco com o ex-presidente Cesar Gaviria, mas o Globo confundiu os dois). Mesmo em meio ao terrorismo e à violência, há sinais de mudanças na Colômbia.

Diálogo com a África

Passei a semana organizando um encontro entre ONGs e movimentos sociais da América do Sul e da África. A iniciativa já tem dois anos e foi lançada com o objetivo de criar uma agenda comum a ambos os continentes, em torno de modelos alternativos de integração regional. Desta vez, tivemos participantes da África do Sul, Zimbábue, Malauí, Zâmbia, Brasil, Uruguai e Colômbia.

Cada delegação apresentou um estudo sobre os blocos em suas áreas. Fui um dos autores da pesquisa sobre o Mercosul e fiz uma breve exposição sobre e os problemas enfrentados pelo processo de integração, como a falta de transparência e informação, as crises entre os países-membros, a instabilidade política etc.

O cenário é muito parecido na África, apenas os problemas são mais agudos por lá. Eles vieram com grandes expectativas sobre os governos Chávez e Morales, mas creio que saíram com a convicção de que não existem saídas rápidas e que é preciso um longo trabalho de construção e fortalecimento de movimentos sociais. Me impressionou o quanto a agenda das organizações dos dois continentes ficou mais parecida. A comunicação não era tão fácil há 2 anos, quando começamos o diálogo.

A idéia é realizar mais dois seminários até o fim do ano, um no Brasil e outro na África do Sul, concentrando nos temas da terra (reforma agrária, uso dos recursos naturais) e do trabalho (emprego, migrações, economia solidária).

Com este evento, terminou neste sábado uma maratona de três seminários internacionais em 15 dias, nos quais trabalhei como organizador, expositor, relator, intérprete de inglês e francês e assessor para assuntos aleatórios. Minha agenda para junho também está cheia, mas minha participação será mais como palestrante, o que é mais fácil e divertido.

quinta-feira, maio 25, 2006

O Corte



Não me reconheço: estou gostando muito do cinema francês. Depois do excelente “Cachê”, adorei “O Corte”. Ok, francês em termos: o diretor é o grego Costa-Gavras, mestre do filme político, e o roteiro é baseado em romance do americano Donald Westlake.

Filme e romance contam a história de um executivo de meia idade que enlouquece após ser demitido e vira um serial killer que assassina profissionais do mesmo ramo industrial, só que mais qualificados, que poderiam vencê-lo numa competição por emprego.

Li o romance de Westlake há 6 anos, quando foi publicado no Brasil, e até escrevi uma resenha elogiosa para o site onde trabalhava na época. Mas o filme de Costa-Gavras é muito melhor, resolveu os defeitos do livro, deu-lhe novo cenário (França, em vez dos EUA), novas temáticas (mal-estar racial, os sonhos impossíveis da publicidade) e um final provocador.

O excelente ator francês José Garcia interpreta Bruno, o protagonista, como um tipo desequilibrado, uma bomba relógio emocional, mas dolorosamente verossímil. Conquista nossa empatia enquanto seu padrão de vida de classe média alta começa a cair: a família vende um dos automóveis, perde a TV a cabo, a esposa arranja empregos mal pagos de meio expediente. Bruno vai se isolando de todos, ficando agressivo e desconfiado.

É claro que a reação-limite do protagonista é um pretexto para falar dos efeitos mais amplos do aumento do desemprego e da perda da segurança social. “On a peur”, diz um personagem, usando a forma verbal mais indefinida do francês para expressar o medo generalizado que tomou conta do país. Em outro bom momento, um policial comenta que “o crime é a única indústria que cresce”.

Mas o ponto alto do retrato social do filme é a erosão da solidariedade entre as vítimas dos problemas econômicos. Bruno não se junta a outros “oprimidos” para tentar mudar o mundo. Ele se volta contra aqueles que estão na mesma situação, porque são seus rivais mais imediatos. Pode odiar os patrões que o demitiram ao transferir a fábrica para a Europa Oriental, mas seu universo é darwinismo social e individualismo radical. Encontra outros com a mesma perspectiva, um discurso que canaliza raiva e frustrações para os segmentos mais frágeis da população: idosos, imigrantes, o que puder servir de bode expiatório.

Eis aí a base social para o crescimento da extrema-direita e do racismo no Velho (e cada vez mais Velho) Mundo.

terça-feira, maio 23, 2006

A Ciência Política Vai ao Condomínio

O condomínio nasce bom, a sociedade é que o corrompe (Rousseau, para seus senhorios em Genebra, Paris e Londres).

Todo mundo é comunitarista até a primeira reunião de condomínio (de meu ex-professor de teoria política contemporânea).

Ontem à noite tivemos uma reunião de moradores no meu prédio e fui eleito síndico. Não é tão comum que cientistas políticos assumam o cargo – enfrentamos concorrência desleal dos generais de pijama. Como a teoria política pode ajudar um jovem síndico a desempenhar suas funções?

Primeiro, há o célebre problema da ação coletiva. As pessoas podem ter objetivos comuns (como melhorar o prédio em que vivem) e não serem capazes de cooperar. Em geral isso ocorre porque o sujeito quer que o outro entre com os custos de tempo e dinheiro, enquanto ele relaxa. O típico carona.

A manifestação clássica da questão no condomínio é a espinhosa escolha de quem será síndico. Mancur Olson diz que o problema da ação coletiva só se resolve na porrada ou por “incentivos seletivos”. Alguém tem ganhar extra para exercer o fardo da liderança. No meu caso, meu interesse de proprietário em valorizar o imóvel, e um certo ceticismo em que isso ocorra sem que eu toque o bonde. Também fico dispensado de pagar o condomínio, mas o valor é muito baixo, não é esse o ponto principal.

O inferno são os outros. (Sartre)

O mundo contemporâneo é caracterizado por estilos de vida plurais e a diversidade é valor a ser celebrado, nos dizem os teóricos políticos. OK. E como você lida com o sujeito que é pianista e precisa praticar horas a fio a mesma seqüência, sem incomodar a moça que tem que estudar e se sente incomodada pelo barulho? Com a boa e velha tradição do é conversando que a gente se entende, embora eu tenha sugerido que ingressos grátis para o próximo concerto terão impacto decisivo.

Quando os recursos são escassos, o homem vira o lobo do próprio homem. (Hobbes)

Então o condomínio quer pintar o prédio, reformar o interior, mudar a tampa dos medidores, instalar porteiro eletrônico, limpar a lixeira com mais freqüência e colocar uma caixa de correio? Cada um tem sua prioridade e a grana disponível não é tão alta. Propus escolhermos uma, e apenas uma, para depois dela pronta discutirmos o resto. Conseguimos fechar uma prioridade razoavelmente consensual. Locke e Kant ficariam orgulhosos.

Faça o mal de uma só vez, faça o bem aos poucos (Maquiavel)

Já avisei que posso passar uns meses na Argentina no fim de ano. E está dito.

Mudanças na administração do prédio, como mecanismos mais eficientes e transparentes de prestação de contas, virão pelas próximas semanas.

A burocracia tradicional não funciona, é preciso criar grupos de trabalhos específicos para implementar seus objetivos políticos (Celso Lafer, em seu livro sobre JK e o Plano de Metas).

Vou ouvir quem entende do assunto. Faxineira? Fulano. Serviço elétrico? Sicrano. Contabilidade? Beltrano.

Semana que vem chamo o mestre de obras para fazer o primeiro orçamento da minha gestão, quem sabe não dá para fazer uma bela obra já no primeiro mês?

Cinqüenta anos em cinco meses!

domingo, maio 21, 2006

O Futebol Explica o Mundo


O seminário de Petrópolis parou para o jogo entre Barcelona e Arsenal, pela Copa da UEFA. As atividades foram suspensas até o fim do primeiro tempo, porque ninguém – latino-americanos, europeus, africanos, asiáticos – conseguia descolar da TV. A torcida unânime era pelo time catalão, claro. Mas por que o Barcelona é o queridinho da esquerda mundial?

Esta e outras respostas estão no livro “Como o Futebol Explica o Mundo – um olhar inesperado sobre a globalização”, do jornalista americano Frank Foer. É uma obra interessantíssima e original, que faz olhar o esporte de outro modo e lança luz sobre temas contemporâneos como a ascensão do nacionalismo extremista e o poder sem freio das empresas transnacionais.

O livro está organizado em 10 capítulos que são pequenas e saborosas reportagens independentes. Sete tratam da Europa, mas há uma sobre o Brasil, outra a respeito dos EUA e uma interessante sobre o Irã. Cada uma começa com “Como o futebol explica...” e aí vem o complemento, que pode ser “O Hooligan Sentimental”, “O Discreto Charme do Nacionalismo Burguês” ou “A Sobrevivência dos Cartolas”.

Esta última trata do Brasil. Foer usa a figura de Eurico Miranda para mostrar o fracasso brasileiro em transformar os clubes nacionais em empresas profissionais, administradas de maneira eficiente e honesta. O jornalista faz uma boa análise do fracasso de Pelé como ministro e das confusões em que se meteu o Rei.

O consolo para os brasileiros é que a corrupção também impera na Itália, onde Foer examina a ascensão empresarial e política de Berlusconi (dono do AC Milan) contra a rival família Agnelli (donos da Fiat, de meia Itália e do Juventus de Turim). Há uma hilária descrição da oposição da esquerda futebolística, embora eu ache que ele caricaturizou os comunistas italianos, que são os mais simpáticos do mundo.

As relações entre torcidas organizadas, violência, sectarismo e racismo rendem quatro capítulos ambientados na Iugoslávia, Escócia, Inglaterra e Ucrânia. Foer pega todos os espectros: desde o envolvimento dessas associações com o genocídio cometido pelos sérvios até os hooligans nostálgicos do tempo em que podiam bater à vontade e que sentem-se deslocados no novo ambiente de grandes negócios e prosperidade do futebol.

A importância do futebol para a afirmação étnica e religiosa dá um capítulo aos judeus e outro aos muçulmanos. E o modo como o esporte faz parte dos dilemas culturais dos EUA e das mudanças de identidade em curso naquele país é uma análise excelente.

Há sim. O Barcelona é a estrela de um capítulo onde são ressaltadas suas impecáveis credenciais de luta anti-fascista e compromisso com causas sociais. Inclui um exame divertido de sua relação de ódio visceral com o Real Madrid, bastião de Franco e dos conservadores. Fizemos bem em torcer pelos catalães.

sexta-feira, maio 19, 2006

Canções de Guerra, Quem Sabe Canções de Mar



Passei a semana em Petrópolis, num seminário de planejamento estratégico da ONG em que trabalho. O evento reuniu cerca de 100 pessoas de todos os continentes para discutir os rumos da instituição nos próximos três anos. Para além dos debates em plenário, o mais emocionante para mim foi a riqueza humana do convívio com ativistas políticos de várias partes do mundo.

É uma tradição nesse tipo de encontro que a música desempenhe um papel muito importante. Fizemos duas ótimas festas ao longo da semana, mas o momento mais especial foi ontem à noite. Era o fim do seminário e só restava um grupo pequeno, de latino-americanos, europeus e árabes. Nos reunimos junto à lareira para conversar, contar piadas e cantar.

Um colega chileno que é craque no violão destilou toda a beleza do cancioneiro hispano-americano, tocando preciosidades de Mercedes Sosa (perdi a conta de quantas vezes ele teve que bisar “Gracias a la Vida”), Pablo Milanés e Victor Jara, compositor que militou ao lado de vários dos presentes, até sua brutal tortura e assasinato no Estádio Nacional do Chile, nos primeiros dias da ditadura de Pinochet. Na foto, Jará canta para uma multidão.

Uma das minhas favoritas foi “Caminante no hay camino”, do catalão Joan Manuel Serrat com seu refrão belíssimo do poema de Antônio Machado, que sabia que “se hace camino al andar, golpe a golpe, verso a verso”. Também recitou Pablo Neruda, versos que escreveu em Macchu Pichu sobre a longa história de opressão e violência de nossa América.

Uma amiga uruguaia me falou de uma atração radiofônica que me deixou interessadíssimo: o programa Tímpano, de Daniel Viglietti. Ele é um dos mais importantes cantores daquele país e comanda uma apresentação semanal de canções políticas e sociais, discutindo música e as histórias das lutas de cada país. Viglietti também continua engajado, principalmente na investigação sobre os crimes da ditadura militar uruguaia. Minha amiga descreveu seu show mais recente, em frente a uma cova clandestina recentemente descoberta em Montevidéu, na qual foram encontrados os restos mortais de ativistas comunistas. De arrepiar.

Num determinado momento, alguém propôs uma canção radical francesa. “A Marselhesa”?, brincamos. Não, disse o amigo, e tocou “Je Ne Regrette Rien”. Belo brado para quem, como muito dos meus colegas, viveu por momentos de dor, sofrimento e perseguição. Eles ficaram surpresos com o fato de eu conhecer músicas antigas da esquerda, como o hino partigiani italiano “Bandiera Rossa”. Comentaram que meus pais devem ter um longo histórico de ativismo político.

Caí na risada. A vida dos meus pais sempre se limitou ao circuito trabalho-família. Ironias do destino, criaram um filho para quem esse horizonte foi desde muito cedo limitado e asfixiante. Talvez um dia eu escreva sobre isso uma canção de guerra, quem sabe uma canção de mar.

Por ora, brindo à liberdade de escolher minha própria vida, neste dia em que dei entrada no pedido da bolsa-sanduíche na Argentina.

quinta-feira, maio 18, 2006

Maquiavel Dramaturgo



Garimpando na feira do livro comprei “A Mandrágora”, de Maquiavel, comédia que o florentino escreveu quando amargava o exílio, posto para correr pelos Médici. O autor do “Príncipe” criou várias peças de teatro, mas ao que me consta só esta sobreviveu e continua a ser encenada. O enredo é um imbroglio rocambolesco (maquiavélico?) sobre um jovem que convence um marido rico e estúpido a deixá-lo ser amante de sua bela e virtuosa mulher, usando como artifício uma suposta poção mágica.

O primeiro a montar “A Mandrágora” no Brasil foi Augusto Boal, nos anos 60. Certa vez assisti a uma palestra em que o mestre do teatro do oprimido analisava a comédia de Maquiavel como uma metáfora para a luta pelo poder, representada por uma mulher desejável e difícil. É uma interpretação válida, mas para mim o tema da peça de Maquiavel é corrupção.

Todos os personagens são corruptos e/ou corruptores. O herói mente e suborna para ter a mulher que despertou sua paixão. Para isso se vale da ajuda de um cortesão que vive de favores e migalhas que recolhe dos poderosos e de um padre degradado que trai os princípios da Igreja por dinheiro. A mãe da heroína é uma velha estúpida e lasciva e a própria protagonista emite um julgamento que é mais ou menos o seguinte, “já que todos me enganaram, vou me divertir”. Talvez o único que escape à regra seja o marido traído, que é apenas burro e vaidoso, sendo logrado pelo desejo de ter um filho.

Apesar de ter passagens engraçadas, o riso da Mandrágora vem com sombras, como se Maquiavel dissesse a seus contemporâneos: “Olhem a porcaria que é o mundo e como nossos costumes são podres!”. No fundo, todo humorista é um moralista.

Talvez essa opinião surpreenda quem se acostumou a pensar em Maquiavel como... bem, como maquiavélico, encarando “O Príncipe” como um manual de auto-ajuda para políticos inescrupulosos. Injustiça com o mestre florentino que escreveu “A Arte da Guerra”, na qual convocava seus compatriotas a abandonarem os perigosos mercenários e assumirem eles mesmos a defesa de suas cidades, como na velha república romana. Ou as lições sobre civismo e responsabilidade ética de “Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, novamente a partir dos exemplos da antiga Roma. Ou ainda sua história de Florença, encomendada pelos Médici após uma complicada reconciliação, que apesar do patronato nobre é um elogio da liberdade e uma crítica da tirania. Ora bolas: o próprio “Príncipe” termina com um apelo idealista a um soberano que encerre as intermináveis guerras e querelas entre as cidades italianas e reunifique o país para enfrentar as ameaças dos franceses e espanhóis!

A imagem de Maquiavel melhorou muito de duas décadas para cá, quando cientistas políticos e filósofos desiludidos com os rumos da democracia liberal anglo-americana redescobriram os pensadores da Renascença italiana que defendiam uma visão ativa da cidadania. Sua doutrina é conhecida pelo rótulo de “republicanismo” ou “humanismo cívico”, os mais famosos são Maquiavel e Guicciardini. Quem sabe o autor da Mandrágora acabe rindo por último.

terça-feira, maio 16, 2006

Caché



Caché” é um dos melhores filmes da temporada, estrelado por meu ator francês favorito, Daniel Auteil. Ele interpreta Georges, um intelectual refinado e culto que apresenta um programa literário na TV. A auto-imagem idealizada da França.

A vida bem-sucedida de Georges é abalada quando sua família começa a receber vídeos que mostram imagens do cotidiano da casa. Alguém os está espionando. Logo depois, chegam cartões com desenhos infantis de sangue e violência. A esposa (Juliette Binoche) fica perplexa, mas ambos escondem tudo do filho adolescente.

Aos poucos o espectador descobre que Georges desconfia sobre quem seja a pessoa misteriosa que envia os vídeos, mas prefere ocultar suas suspeitas da mulher. A chave para o caso está na relação complicada que manteve quando criança com empregados argelinos de sua família, em particular com um gesto vergonhoso e mesquinho que cometeu naquela época, cujas conseqüências trágicas continuam a atormentá-lo.

O passado que Georges se esforça para manter escondido – mas que insiste em retornar para assombrá-lo – é uma metáfora brilhante para o mal-estar que a França da “liberdade, igualdade e fraternidade” sente em lidar com sua história de opressão e tirania como poder colonial na África e na Ásia. O massacre dos argelinos em Paris, durante protesto pela independência de seu país nos anos 60, de certa maneira detona a trama. A História se imiscuindo na vida dos personagens, pingando sangue por todos os lados.

O enredo está estruturado como um mistério policial, mas só superficialmente. Com certeza, muitos espectadores se frustrarão com a falta de respostas para várias perguntas do filme. O que importa são os sentimentos que ele retrata. Uma França de tensões raciais à flor da pele, marcada pela cultura do medo com relação ao Outro, principalmente se ele tiver tez escura e/ou for muçulmano. “Caché” foi lançado poucos meses antes da revolta das banlieus, mas as fagulhas estavam todas lá.

domingo, maio 14, 2006

Lembrai-vos do Acre!

Evo Morales declarou durante a cúpula América Latina-União Européia que “a Bolívia trocou o Acre por um cavalo” e que não faria o mesmo com o gás natural. Não é todo dia que minhas aulas sobre história da política externa brasileira ficam tão contemporâneas.

No período que passou à frente do Itamaraty (1902-12) o barão do Rio Branco realizou obra notável, principalmente no que toca à consolidação das fronteiras brasileiras. O conflito mais complexo foi com a Bolívia, pelo Acre. Região remota, rica em borracha (o grande produto de exportação da época) e reclamada por ambos os países. A coisa esquentou quando os bolivianos arrendaram a área a uma empresa americana, que administraria o território. O barão se apavorou: temiam que ocorresse na América do Sul o mesmo que acontecia na África, onde companhias semelhantes governavam verdadeiros impérios.

O acesso ao Acre era feito por rios da Amazônia brasileira, e muitos seringueiros do Brasil ocuparam a região, rebelando-se contra a autoridade boliviana. Na negociação diplomática que se seguiu, Rio Branco usou todas as armas: indenizações financeiras, promessas de obras de infraestrutura (a infame “ferrovia da morte”, Madeira-Mamoré) e mobilização militar (um dos oficiais que marchou à fronteira era o jovem cadete Getúlio Vargas).

O barão havia estabelecido uma “aliança não-escrita” com os EUA, pela qual o Brasil apoiava aquele país em questões internacionais (inclusive ocupação de países na América Central e Caribe) em troca do auxílio de Washington aos objetivos brasileiros na América do Sul. Tal apoio foi decisivo no Acre: um dos acionistas da empresa que arrendou o território era o filho do presidente dos EUA!

O que deu errado na atual política externa brasileira? Me parece que foi especialmente a tensão entre os objetivos globais do Brasil (a quimera do Conselho de Segurança) e as metas regionais de integração sul-americana. O relacionamento com a Argentina, de importância crucial, foi relegado a segundo plano. A diplomacia brasileira ficou de lado em meio à dificílima renegociação da dívida externa empreendida por Kirchner.

A falta de ação brasileira abriu caminho para que a Venezuela, enriquecida pela alta no petróleo, virasse a campeã da integração. Chávez apoiou Kirchner na questão da dívida, na criação da Telesur e iniciou sua própria diplomacia de ajuda econômica e auxílio técnico, da qual Morales, Castro e Humala são os principais clientes. Um contrapeso à influência brasileira. E a tradicional sensibilidade dos hispano-americanos ao projeto “Brasil Potência”. Afinal, os EUA não são o único império das Américas. A anexação do Acre espelha a do Texas. Os texanos gritavam “lembrai-vos do Alamo!” para celebrar sua luta. O nosso imperialismo foi mais negociado. Como sempre. Os bolivianos dizem que o presidente Pando Soares, que vivia bêbado, trocou o Acre por um cavalo.

Ah, sim. Depois de provocar crises diplomáticas com os EUA e o México por causa da novela “América”, Gloria Perez ataca novamente com uma inacreditável minissérie sobre a história do Acre. Provocação pura. Dizem que Evo planeja invadir o Projac.

sexta-feira, maio 12, 2006

A Força dos Direitos Humanos


Ando surpreso em como os Direitos Humanos estão se tornando importantes nas minhas atividades profissionais. Das monografias que orientei ano passado na pós-graduação, ¾ eram sobre o tema. Há poucas semanas assumi no trabalho um ótimo projeto sobre comércio internacional e DH e dias atrás a PUC-Rio me fez um convite muito simpático (e prontamente aceito) para contribuir com um artigo para um livro/seminário a respeito do assunto. Para completar, hoje e amanhã estou num debate sobre “Democracia, Desenvolvimento e Direitos”, com pessoas da América Latina, Europa e Ásia.

A maioria das pessoas no Brasil associa DH à proteção contra o abuso da autoridade do Estado. Compreensível, uma vez que foi no contexto da resistência à ditadura militar que essa temática ganhou força em nosso país. Mas o atual campo dos DH vai muito além, englobando esferas ligadas aos problemas econômicos e sociais.

A criação do sistema ONU teve papel vital nessa história. Os pactos e acordos assinados nos fóruns das Nações Unidas são o principal respaldo jurídico global dos DH. Me refiro às convenções da Organização Internacional do Trabalho (que abarcam desde liberdade de associação sindical e direito de greve até a proteção dos povos indígenas), à Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), ao Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966) e às resoluções das grandes conferências sociais dos anos 90, em especial o encontro de Viena (1993), que reafirmou a universalidade e a indivisibilidade dos DHs.

A desacreditada Comissão de DH da ONU acaba de ser substituída por um Conselho sobre o tema, com mais países-membros e maior importância na hierarquia da organização, embora eu não seja otimista sobre suas possibilidades. O Brasil foi eleito com boa votação para o Conselho e tem uma tradição razoável de defesa dos DHs, pelo menos nos últimos 15 anos. Poderia fazer mais. Quem sabe faça.

Claro que muitos desses direitos existem apenas no papel ou nos salões de Nova York e Genebra, mas tais decisões são importantes porque criam princípios que fortalecem o sistema jurídico internacional de proteção aos DHs. E delimitam o “itinerário da utopia”, na bela expressão do embaixador José Augusto Lindgren Alves, um dos principais especialistas brasileiros no tema.

Boa parte da agenda de DH é fruto do trabalho de ONGs e movimentos sociais, como Anistia Internacional, Human Rights Watch e Mães da Praça de Maio. Numa análise clássica de duas excelentes cientistas políticas, esses “ativistas além das fronteiras” usam as redes transnacionais para pressionar governos locais, criando um “efeito bumerangue” que causa “international shaming” para as autoridades. Queima o filme delas, escreveu de modo bem direto uma orientanda minha.

A maior parte dos estudos sobre o tema utiliza modelos que opõem governo e sociedade civil. Minha contribuição teórica e prática ao assunto é considerar esse paradigma ultrapassado. Ele descreve o que ocorria (e ocorre) em ditaduras. Mas numa democracia como a brasileira, é tolice agir assim. Governos são formados por muitas entidades com interesses diversos e contraditórios: ministérios, estatais, Executivo, Legislativo, Judiciário. Vários deles têm postura pró-DH.

Por exemplo, meu irmão assumiu casos na Advocacia Geral da União de pleitear licenciamento compulsório (quebra de patentes) de medicamentos de combate à AIDS. Sua experiência me chamou a atenção para vários setores do Estado que pensam da mesma maneira, como Ministério da Saúde e Ministério Público. São aliados. E ainda bem, porque a tarefa é longa e difícil!

quarta-feira, maio 10, 2006

Império


Recentemente me envolvi num debate sobre as bases militares dos EUA na América Latina. Disse que não são importantes na política externa americana. Meus interlocutores afirmaram o contrário, destacando principalmente o desejo de Washington de controlar os recursos naturais do continente. A discussão despertou meu interesse em saber mais sobre o tema e uma amiga me emprestou dois ótimos livros, Sorrows of Empire, de Chalmer Johnson e American Empire, de Andrew Bacevich. Ambos foram publicados há poucos anos, na esteira das críticas à diplomacia de Bush. Seus autores são ex-oficiais militares, atualmente professores universitários.

Os dois compartilham a visão de que os EUA construíram um império a partir de suas vitórias na Guerra Hispano-Americana (1898), nos dois conflitos mundiais e na Guerra Fria. Não é o império tradicional de colônias, mas uma zona de influência político-econômica, na qual desempenha papel importante a ampla rede de bases militares no exterior. Seu número atual é impreciso, porque muitas são secretas ou disfarçadas de instalações científicas, a estimativa de Chalmer Johnson é que sejam em torno de 700.

Johnson e Bacevich ressaltam que o colapso da URSS e, posteriormente, o 11 de setembro, abriram caminho para mais uma onda de expansão do poderio americano, com a instalação de bases no Oriente Médio, nos Bálcãs e na Ásia Central, anteriormente áreas que faziam parte do império soviético.

Tais bases variam muito em seus propósitos. As maiores são relíquias das guerras anteriores (Alemanha, Japão, Coréia do Sul), outras surgiram em meio aos conflitos contemporâneos em zonas de alta turbulência (Afeganistão, Iraque, Arábia Saudita, Kosovo) ou em áreas onde a influência americana é crescente e há interesses a proteger, principalmente oleodutos (Bulgária, as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central). As bases na América Latina são citadas apenas de passagem e o único país do continente mencionado mais longamente é a Colômbia, por conta da política de combate às drogas.

Os autores destacam um ponto ainda pouco estudado: o quanto a política externa americana está sendo cada vez mais formulada pelo Pentágono. As figuras mais importantes são os generais que chefiam os comandos regionais das Forças Armadas – há um para cada continente. Bacevich e Johnson os chamam, ironicamente, de proconsuls e vice-reis, em homenagem aos impérios do passado. Meu orientador prefere gauleiters – os líderes do partido nazista nos territórios ocupados por Hitler.

Johnson levanta questões interessantes sobre o relacionamento das guarnições das bases com as populações vizinhas. O que acontece quando se coloca milhares de jovens entre 18 e 24 anos, com nenhum preparo para lidar com culturas estrangeiras, numa situação de poder, isenção jurídica das leis locais e desamparo psicológico por estar longe de casa? Ninguém precisa ser antropólogo para saber que se multiplicam os casos de alcoolismo, jogo, prostituição, violência sexual e até acidentes de trânsito. Não é bom negócio ter troço desses no quintal.

O mesmo autor também discute o novo perfil das Forças Armadas dos EUA: jovens pobres, negros, hispânicos e sulistas. Escolheram a carreira militar porque a opção era fritar hambúrgueres e na nova vida ao menos podem aprender habilidades técnicas, ganhar créditos para a universidade e quem sabe ver o mundo e conhecer pessoas interessantes (talvez tendo que matá-las depois). É um contraste com o “Exército de cidadãos” que lutou as guerras mundiais. Se parece mais com a tropa do Vietnã, onde leis de recrutamento injustas isentavam a classe média universitária em detrimento dos pobres.

Tanto Johnson quanto Bacevich chegam à conclusão que a atual cultura americana é muito mais individualista e consumista, pouco disposta a sacrifícios pessoais. Por isso, a população paga a outros para lutar em seu lugar, inclusive mercenários e tropas aliadas. Os dois autores escrevem com preocupação sobre o distanciamento entre os cidadãos e os militares profissionais. Em grandes potências do passado, como Roma e Alemanha, esse divórcio acabou por destruir as liberdades políticas e levou a governantes militaristas e autoritários, de César a Hitler.

terça-feira, maio 09, 2006

Os Três Enterros de Melquíades Estrada


Este é um faroeste sobre temas clássicos – amizade, honra, o nascimento da nação e o herói solitário cavalgando rumo ao horizonte. Disfarçado em drama sobre as tensões sociais na fronteira entre México e Estados Unidos.

Tommy Lee Jones estrela e dirige “Três Enterros”, e se sai tão bem em ambas as tarefas que pode ser comparado a Clint Eastwood. Jones interpreta Pete, vaqueiro do Texas cujo melhor amigo é Melquíades, imigrante mexicano ilegal. Melquíades é morto acidentalmente por um patrulheiro da fronteira, e enterrado como indigente. Pete obriga o policial a desenterrar o cadáver e levá-lo até o México, para ser devolvido à família, numa viagem de vingança e redenção.

O faroeste é um gênero masculino, no qual as mulheres raramente encontram seu lugar. As duas personagens femininas importantes são a garçonete Rachel e Lou, a mulher do patrulheiro. Rachel está na meia idade que dribla a pasmaceira cotidiana mantendo casos extraconjugais. Lou vê nela um espelho do que sua vida pode se tornar e tenta encontrar uma maneira de sair do tédio da fronteira e de superar a distância que se cria entre ela e o marido.

A viagem rumo ao México é uma travessia quixotesca em busca da ilusão de um lar, de um refúgio para a instabilidade da vida. A fronteira é um entre-mundos, onde americanos escutam rádios em espanhol (“Não entendo nada, mas gosto do som”, diz um personagem) e mexicanos vêem telenovelas em inglês, sem compreender os diálogos. Pete e Melquíades são os únicos a dominarem as duas línguas, eles superaram o fosso cultural através da amizade.

Na melhor tradição dos faroestes, “Três Enterros” é também um elogio do individualismo e da honra pessoal diante de um Estado opressivo. Todos os policiais retratados no filme são violentos, preguiçosos, incompetentes ou burros.

Num dos meus westerns favoritos, “Rio Vermelho”, John Wayne toma posse à força de terras pertencentes a um latifundiário mexicano, no que vem a se tornar o Texas. Os EUA mudaram muito: a identidade nacional está em disputa e já se reconhece o papel que os imigrantes hispânicos tem (e terão) na construção do país. “Três Enterros” exemplifica esta nova perspectiva, bem como o presidente eleito Matt Santos, em The West Wing.

A luta política tem muitos aspectos: a vitória na representação simbólica nas artes não é o menor deles.



segunda-feira, maio 08, 2006

O Dia em Que o Brasil Esteve Aqui


Há poucos filmes sobre a política externa brasileira – creio que o tema só foi abordado em meia dúzia de produções sobre a participação do país na Segunda Guerra Mundial. Por isso, é muito bem-vindo o documentário “O Dia em Que o Brasil Esteve Aqui”, de Caíto Ortiz e João Dornelas, que trata do “Jogo da Paz” entre Brasil e Haiti. A partida foi realizada em 2004 na capital haitiana, como gesto de relações públicas do governo Lula para marcar a liderança militar da missão de paz da ONU na ilha (Minustah).

O filme mostra a adoração que os haitianos têm pela seleção brasileira e toca na exploração do prestígio do futebol como uma manifestação do soft power do Brasil. O conceito foi cunhado pelo cientista político Joseph Nye, vice-ministro da Defesa no governo Clinton. Significa o poder oriundo da cultura, da admiração pelas instituições sociais e de outros fatores que complementam o hard power da economia, política e força militar.

Nye pensou o soft power como um mecanismo para facilitar a liderança mundial dos EUA, sem precisar recorrer a difíceis e custosas intervenções militares. O conceito caiu nas graças de muitos acadêmicos e diplomatas brasileiros por razões diferentes – um país pacífico como o Brasil seria admirado pelo soft power da música, das novelas, das artes e mesmo do respeito ao multilateralismo e ao direito internacional.

O documentário não entrevista diplomatas, mas faz um retrato favorável dos militares brasileiros no Haiti, mostrando-os preocupados com a população local e engajados em tarefas simpáticas, como distribuir camisas da seleção e bandeiras brasileiras a órfãos e crianças pobres. As cenas são bonitas, os meninos e os soldados estão emocionados. Mas fica também o sentimento de que os brasileiros não sabem bem qual objetivo político foram cumprir, além da quimera do Conselho de Segurança da ONU. Os militares distribuem seus brindes, vão embora, e tudo continua pobre, sujo e injusto no Haiti.

Nessas condições, o soft power serve para amenizar as complicadas relações entre a Minustah e a população, mas sem clareza de propósitos por parte do governo brasileiro, a coisa se limita à comoção provocada pela passagem da seleção – Parreira dá um belo depoimento dizendo que todos se lembrarão para sempre daquele dia. Lula diz as generalidades e bobagens de sempre sobre a admiração despertada pelo futebol brasileiro.

JD e eu escrevemos um artigo sobre futebol e política externa brasileira, publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional. Falamos do Haiti, claro, e nossa análise é que diversos governos desde Vargas usaram a seleção para vender uma boa imagem do Brasil, reforçando valores como alegria, criatividade, integração racial e até boas maneiras – o comportamento da torcida na Copa de 50 foi exemplar.

Além de ter nos dado a honra de figurar na revista ao lado de Armando Nogueira e Eduardo Galeano, o texto me chamou a atenção para várias análises brasileiras sobre futebol, sociedade e cultura, como a de Roberto DaMatta e José Miguel Wiznik. Também estou curioso para ler o jornalista inglês que afirma que o futebol explica a globalização - ganhei o livro de presente ontem. Em suma, o tema merece uma análise a fundo, com ou sem conquista do hexa.

sábado, maio 06, 2006

Amigos Absolutos



Você acredita que a guerra terminou porque um bando de nazistas na Alemanha Oriental trocou Lênin pela Coca-Cola? Acredita realmente que o capitalismo americano fará do mundo um lugar doce e seguro?

E não me venha com essas asneiras de Velha Europa...Estamos olhando é para a mais velha América. Puritanos fanáticos chacinando selvagens em nome do Senhor. É possível ser mais velho do que isso? Foi genocídio então, é genocídio agora, mas quem for o dono da verdade é o dono do jogo.


Uma amiga me disse que John Le Carré fez pelos romances de espionagem o que Dashiell Hammett empreendeu pela literatura policial: retirou as tramas dos jardins de rosas ingleses e as lançou às ruas. Com “O Espião Que Veio do Frio”, um dos clássicos do gênero, Le Carré inovou ao retratar agentes secretos como tipos solitários, paranóicos, alcoólatras, fracassados. Quando profetas apressados previram a extinção dessa corrente literária no pós-Guerra Fria, Le Carré novamente mudou, abordando temas como a ação descontrolada das transnacionais farmacêuticas (“O Jardineiro Fiel”).

“Amigos Absolutos” é Le Carré em sua melhor forma, um magnífico romance que conta as transformações no mundo da espionagem, da Guerra Fria ao 11 de setembro, através da história de dois amigos, o inglês Edward Mundy e o alemão Sasha. Quando o livro começa, Mundy sobrevive como guia turístico na Alemanha, atolado em dívidas e vivendo com uma ex-prostituta turca. É surpreendido pela visita de Sasha, que não vê há 10 anos, e lhe faz uma estranha proposta de emprego.

O romance entra num flashback entre 1947 e 1989, para narrar a “amizade absoluta” entre os dois. Mundy nasceu no Raj, o domínio britânico no subcontinente indiano. Uma paixão por idiomas o levou à Universidade de Oxford e dali a Berlim. Sasha é o filho rebelde de um pastor luterano que trocou a Alemanha Oriental pelo Ocidente.

Mundy e Sasha se conhecem na turbulenta Berlim dos anos 60, quando ambos são parte da ala radical do movimento estudantil numa cidade que fervilha com tensões internacionais (o Muro acabou de ser construído), choques com a polícia e a revolução comportamental em plena explosão. Mundy é deportado após um protesto estudantil e perde o contato com o amigo.

Inicia um período de confusão existencial e meio por acaso termina no British Council, como divulgador cultural. Numa viagem ao leste europeu, é procurado por Sasha, que pulou para o lado errado do Muro e virou agente da Stasi, a polícia secreta alemã-oriental. Ele propõe um acordo a Mundy e ambos iniciam uma perigosa rede de espionagem para a Inglaterra, que avança à medida que o Império Soviético se desintegra. Sasha desaparece após a queda do Muro e Mundy também vê seu mundo ruir, com o fim de seu casamento e um novo período de desorientação.

O reencontro na Alemanha unificada leva Mundy de volta para o mundo da espionagem, mas num cenário ainda mais perigoso do que aquele conheceu, marcado pela ascensão dos fundamentalismos religiosos, do terrorismo, da manipulação da imprensa e da opinião pública, dos crimes e mentiras cometidos pelos Estados. Suspense político de primeiríssima qualidade, e Le Carré chutando o balde de hipocrisias da nova ordem internacional, em particular do papel dos britânicos sob Tony Blair.

quinta-feira, maio 04, 2006

A Economia Política da Crise Brasil-Bolívia

A Petrobras é uma empresa de economia mista controlada pelo Estado. Seu envolvimento na Bolívia se deu mais por razões políticas do que pela busca do lucro. Agiu por pressão do governo brasileiro, que queria fortalecer a influência sobre aquele país. Especialistas eram céticos quanto a possibilidades de grandes negócios, até que os técnicos da empresa descobriram que as reservas da Bolívia eram 10 vezes maiores do que se supunha.

José Sérgio Gabrielli, presidente da Petrobras, definiu a empresa como “a maior nação amiga do Brasil”. Cerca de 15% de seus investimentos são no exterior, a maioria na América Latina (México, Colômbia, Equador) e África Ocidental (Nigéria, Angola, Gabão). Os ativos na Bolívia representam apenas 1% do total da estatal.

Às vezes a diplomacia da nação amiga choca-se com a política externa brasileira. As surpreendentes reservas bolivianas de gás foram exploradas de maneira predatória, desrespeitando os direitos dos povos indígenas e causando sérios danos ao Meio Ambiente. Suponho que ninguém imaginava que aqueles bolivianos meio mortos de fome iriam reagir e desafiar o Grande Irmão brasileiro.

O gás é a melhor alternativa no curto prazo ao petróleo, mais barato e menos poluente. Só que é difícil de ser comercializado. Pode ser transformado em líquido e exportado por navios especiais, embora ainda seja um processo muito caro, que talvez fique razoavelmente barato em cerca de uma década.

A opção é transportá-lo via gasodutos. Gigantescos, caros, demoram a se pagar. O gasoduto Brasil-Bolívia tem 3.150 Km e custou US$2 bilhões. O projeto do “Gasoduto do Sul”, entre Venezuela e Argentina, tem 8 mil Km e está orçado em US$25 bilhões. Só governos podem se lançar em empreitadas desse tipo.

Venezuela e Bolívia são ricas em gás. Argentina e Peru também possuem reservas consideráveis. O Chile é pobre nesse recurso. E o Brasil? A descoberta do Campo de Mexilhão, em 2003, triplicou as reservas nacionais. Espera-se que o campo esteja em operação por volta de 2008.

A instabilidade política nos países da América do Sul vai empurrar o governo brasileiro para favorecer opções internas de abastecimento. Não me refiro apenas à crise com a Bolívia. Empresas privadas argentinas cortaram o fornecimento para os chilenos por conta de problemas domésticos. E sabe-se lá o que seria depender do gás peruano com um eventual governo Humala!

Mmm... tensões políticas em torno de disputas por recursos naturais.... Necessidade de cooperação.... Soa familiar? Que tal checar a história da Comunidade Européia do Carvão e do Aço. Instituição supranacional, criada para administrar conjuntamente riquezas vitais à economia, e embrião do processo de integração regional no Velho Mundo. Oxalá um dia possamos fazer algo semelhante no Novo, para lidar com petróleo e gás.

terça-feira, maio 02, 2006

O Gás é Deles



O Brasil tem pelo menos cinco grandes interesses na Bolívia:

1) O gás natural que abastece 50% das necessidades nacionais.
2) As empresas brasileiras que operam por lá e são responsáveis por cerca de 20% do PIB boliviano.
3) Os cidadãos brasileiros que residem na Bolívia e tem grande importância na economia, sobretudo na plantação de soja.
4) O combate conjunto ao tráfico de drogas – boa parte da cocaína consumida no Brasil é plantada na Bolívia.
5) A estabilidade e crescimento econômico de um país importante para o processo de integração regional na América do Sul.

A decisão do presidente Evo Morales de nacionalizar o gás boliviano é um golpe apenas contra o segundo item dessa lista. O modo pelo qual a medida foi tomada – de surpresa, com o exército ocupando refinarias – piora as coisas. Morales criou um enorme problema para Lula, que parecia acreditar que seu bom relacionamento com o presidente boliviano serviria para conseguir uma solução satisfatória para ambos os países.

Por que Morales agiu de maneira tão tempestuosa? Seu comportamento durante a campanha presidencial foi ambíguo, mas a frase que mais repetia é que “a Bolívia quer sócios, não patrões”. Acreditei que ele fosse usar a pressão popular para rever os contratos e conseguir melhores condições para o Estado, mais transferência de tecnologia, contrapartidas sociais etc. Desejos bastante justos.

Não questiono o direito boliviano à nacionalização de suas riquezas naturais. Dezenas de países na América Latina e Oriente Médio fizeram o mesmo, inclusive o Brasil. O petróleo é nosso, lembram?

O decreto de nacionalização foi um lance arriscado para ganhar apoio nas eleições à Assembléia Constituinte, que ocorrem em julho. É fundamental para Morales conseguir a maioria, o que é difícil devido à fragmentação do sistema eleitoral boliviano.

O decreto presidencial se chama “Heróis do Chaco”. Refere-se à guerra entre Bolívia e Paraguai, nos anos 30, que resultou na derrota boliviana e na nacionalização do petróleo – o governo alegou que as petrolíferas estrangeiras conspiraram contra as autoridades durante o conflito. Vinte anos depois, a Revolução de 1952 fez outra nacionalização. Morales deu o recado: seus atos se situam numa longa história de disputas pelos recursos naturais do país.

Mas o mundo mudou. As condições internacionais de hoje restringem muito o espaço de manobra dos governos. Morales iniciou uma crise diplomática que pode fugir ao controle de todos, envolvendo 20 grandes empresas e os Estados que as apóiam – Brasil, Espanha, Reino Unido, Argentina. Vem aí uma seqüência de batalhas judiciais e políticas.

O principal prejudicado é o Brasil. Não só por ser o maior investidor na Bolívia, mas porque a política externa de Lula para a América do Sul virou um dos principais alvos dos ataques da oposição. O tom nos jornais e sites é de histeria. Naturalmente: não podem criticar a política econômica, que é a mesma do governo anterior. E os escândalos de corrupção são tema arriscado, pois envolveram vários partidos e podem abalar a todos, favorecendo um candidato oportunista como Garotinho.

Vale seguir os acontecimento pelo excelente blog Tordesilhas. Renato está na Bolívia fazendo o que eu gostaria: acompanhando in loco os principais fatos.

segunda-feira, maio 01, 2006

Um Método Muito Perigoso



Quando Nietzsche Chorou” é um best seller improvável. Quem se interessaria por um romance de idéias que faz a ponte entre a filosofia alemã do século XIX e o nascimento da psicanálise? Milhões, a julgar pelo sucesso do livro. Mas acredito que os leitores foram atraídos mais pelos defeitos do obra do que pela suas qualidades. Comecemos por estas.

Nitetzsche prenunciou conceitos posteriormente desenvolvidos por Freud. Se você ler em seqüência “A Genealogia da Moral’, do filósofo, e “O Mal-Estar na Civilização”, do dr. Sigmund, ficará espantado com as semelhanças. Estava tudo lá. Ambos tinham amigos em comum, como Lou Salomé – bela e ousada aristocrata russa que arrasou corações de metade da intelectualidade européia e se tornou uma psicanalista pioneira.

É Salomé que inicia o romance, ao procurar o famoso médico Joseph Breuer e pedir-lhe que atenda seu amigo Nietzsche, que após levar um fora da bela russa caiu em depressão profunda e está à beira do suicídio.Ela sugere a Breuer que use no filósofo seu método experimental de “terapia pela conversa”.

Breuer hesita. Desenvolveu a técnica ao tratar da paciente que entrou para a história médica como Anna O. Mas além de não conseguir curá-la, ficou obcecado sexualmente pela moça. Na verdade, a situação de Breuer não é tão diversa de Nietzsche. No auge da carreira e casado com uma linda mulher, está infeliz, deprimido, com sentimentos de vazio, frustração, medo da morte e da velhice.

Claro que Breuer topa o desafio e pede a ajuda de seu mais brilhante discípulo, o jovem médico Sigmund Freud. O relacionamento de amizade e cumplicidade intelectual entre os dois é o melhor do romance – ou talvez eu tenha gostado tanto porque reflete minhas experiências com meus mentores acadêmicos. A vida universitária é muito mais do que coletar notas de rodapé, graças aos deuses.

Breuer passa a tratar de Nietzsche pelo método da terapia pela conversa, mas logo a relação entre os dois se torna mais ambígua – no fundo, o filósofo é que está ajudando o médico a superar seus traumas e desenvolver a técnica que o tornará célebre. Quem conhece psicanálise vai se divertir com os dois experimentado em primeira mão fenômenos como a transferência. E também constatar que era mesmo um “método muito perigoso”, como descreveu um historiador da disciplina.

Chegamos aos defeitos do livro. O autor, que é um respeitado professor de psicanálise nos EUA, apresenta a filosofia de Nietzsche como “pérolas de sabedoria” adocicada. Embora cure Breuer de sua depressão, não altera em nada sua atitude diante da vida e dos problemas que o defrontam. No fundo, o médico apenas fica mais conformista. Não há transformação de personalidade, abertura de horizontes. O leitor pode fechar o livro tranqüilo e continuar a chafrudar na mediocridade cotidiana. Se bobear, até votar no Alckmin.

Não dá para imaginar Ana Karênina e Emma Bovary voltando para um casamento infeliz, ainda que milhões de pessoas façam isso rotineiramente. A grande literatura é como a psicanálise em seus primórdios – um método muito perigoso de mergulhar na alma humana e confrontar o que existe de difícil, belo e complicado nela. E, eventualmente, retornar da jornada uma pessoa melhor e mais completa.

Em tempo: na vida real Breuer nunca tratou de Nietzsche e depois de Anna O, não usou mais a técnica da terapia pela conversa. Freud é que pegou a idéia e levou-a adiante, entre outros fatores porque era um apaixonado por literatura e tinha queda pelos caminhos perigosos que espreitam a vida.
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