quinta-feira, maio 18, 2006

Maquiavel Dramaturgo



Garimpando na feira do livro comprei “A Mandrágora”, de Maquiavel, comédia que o florentino escreveu quando amargava o exílio, posto para correr pelos Médici. O autor do “Príncipe” criou várias peças de teatro, mas ao que me consta só esta sobreviveu e continua a ser encenada. O enredo é um imbroglio rocambolesco (maquiavélico?) sobre um jovem que convence um marido rico e estúpido a deixá-lo ser amante de sua bela e virtuosa mulher, usando como artifício uma suposta poção mágica.

O primeiro a montar “A Mandrágora” no Brasil foi Augusto Boal, nos anos 60. Certa vez assisti a uma palestra em que o mestre do teatro do oprimido analisava a comédia de Maquiavel como uma metáfora para a luta pelo poder, representada por uma mulher desejável e difícil. É uma interpretação válida, mas para mim o tema da peça de Maquiavel é corrupção.

Todos os personagens são corruptos e/ou corruptores. O herói mente e suborna para ter a mulher que despertou sua paixão. Para isso se vale da ajuda de um cortesão que vive de favores e migalhas que recolhe dos poderosos e de um padre degradado que trai os princípios da Igreja por dinheiro. A mãe da heroína é uma velha estúpida e lasciva e a própria protagonista emite um julgamento que é mais ou menos o seguinte, “já que todos me enganaram, vou me divertir”. Talvez o único que escape à regra seja o marido traído, que é apenas burro e vaidoso, sendo logrado pelo desejo de ter um filho.

Apesar de ter passagens engraçadas, o riso da Mandrágora vem com sombras, como se Maquiavel dissesse a seus contemporâneos: “Olhem a porcaria que é o mundo e como nossos costumes são podres!”. No fundo, todo humorista é um moralista.

Talvez essa opinião surpreenda quem se acostumou a pensar em Maquiavel como... bem, como maquiavélico, encarando “O Príncipe” como um manual de auto-ajuda para políticos inescrupulosos. Injustiça com o mestre florentino que escreveu “A Arte da Guerra”, na qual convocava seus compatriotas a abandonarem os perigosos mercenários e assumirem eles mesmos a defesa de suas cidades, como na velha república romana. Ou as lições sobre civismo e responsabilidade ética de “Discurso sobre a Primeira Década de Tito Lívio”, novamente a partir dos exemplos da antiga Roma. Ou ainda sua história de Florença, encomendada pelos Médici após uma complicada reconciliação, que apesar do patronato nobre é um elogio da liberdade e uma crítica da tirania. Ora bolas: o próprio “Príncipe” termina com um apelo idealista a um soberano que encerre as intermináveis guerras e querelas entre as cidades italianas e reunifique o país para enfrentar as ameaças dos franceses e espanhóis!

A imagem de Maquiavel melhorou muito de duas décadas para cá, quando cientistas políticos e filósofos desiludidos com os rumos da democracia liberal anglo-americana redescobriram os pensadores da Renascença italiana que defendiam uma visão ativa da cidadania. Sua doutrina é conhecida pelo rótulo de “republicanismo” ou “humanismo cívico”, os mais famosos são Maquiavel e Guicciardini. Quem sabe o autor da Mandrágora acabe rindo por último.
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