terça-feira, outubro 31, 2006

Encontros e Despedidas



“Olá, sr. Maurício. Vamos estar oferecendo ao senhor um cartão de crédito do Banespa e...”
“Obrigado, mas me mudo amanhã para a Argentina e ficarei um bom tempo fora. Não terei necessidade de um cartão de banco brasileiro.”

A atendente desligou ofendida, na certa pensando que eu havia inventado uma desculpa esfarrapada para me livrar do telemarketing. O fato é que não resisti: foi o segundo cartão que me ofereceram nesta terça.

Os últimos dias foram surreais, vividos numa espécie de limbo. De licença dos meus três empregos, o tempo foi todo para os preparativos da viagem, que só terminaram hoje pela manhã. Todas as providências foram tomadas, as malas estão prontas e os documentos em ordem. Embarco amanhã para Buenos Aires.

A ficha ainda não caiu. Parece que vou apenas para uma reunião em São Paulo, com retorno no mesmo dia. Talvez porque viajarei com pouca bagagem: duas malas e uma mochila levando basicamente roupas, além de papéis e material para entrevistas (gravador, câmera). O resto compro por lá.

As expectativas para a temporada argentina são altas. Do ponto de vista acadêmico, realizar pesquisa que me ajude a escrever uma boa tese, e aprofundar meus conhecimentos sobre política sul-americana, inclusive comprando uma bela biblioteca. De uma perspectiva pessoal, a experiência de viver em outro país, conhecer gente nova e visitar lugares interessados. Também desejo descansar um pouco, depois de três anos muito agitados e repletos de obrigações.

Algo mais. Ando irritado com as limitações dos meus horizontes. Por mais que circule em vários ambientes, 90% do meu tempo se dá entre o centro do Rio de Janeiro e um punhado de bairros da zona sul. Como diz uma amiga que sofre do mesmo problema, “minha vida se limita ao itinerário do ônibus 434”. Vontade de sair deste casulo e descobrir pedaços deste vasto mundo. Inventar. Experimentar.

Ficarei fora apenas quatro meses. È pouco para quem permanecerá por aqui, mas certamente o tempo correrá diferente para mim, com outra intensidade. Não acredito que seja longo o suficiente para que eu sinta saudades, estarei muito ocupado com descobertas e aventuras (ou pelo menos, com aulas, pesquisas, livros e bifes de chorizo).

As perspectivas imediatas são ótimas. Terei um novembro cheio na universidade. Já no dia 2, que não é feriado na Argentina, tenho um evento acadêmico. Na manhã seguinte, uma reunião política no Ministério das Relações Exteriores. No fim de semana, a idéia é me divertir e visitar amigos e na segunda chega a Buenos Aires uma ex-orientanda com quem trabalharei em parte da pesquisa. Também farei uns frilas como repórter. Jornalistas são como espiões e controladores de vôo e jamais se aposentam.

Naturalmente, escreverei bastante sobre minhas experiências na Argentina – blog serve para isso, não é? O plano é brincar bastante com este espaço e exercitar “o ofício de viver em voz alta”, como Rubem Braga definia a profissão de cronista.

Até logo!

segunda-feira, outubro 30, 2006

A Vitória de Lula


Estive com Lula uma vez, quando ele era candidato à presidência nas eleições de 2002. Visitou o Iuperj para um debate qualquer. Eu estava sentado numa das cadeiras próximas à entrada, lendo uma revista econômica, quando ele chegou. Apertou a mão de todos, inclusive a minha. Na ocasião, me espantou o entusiasmo que ele despertara nos funcionários - um sinal da arrancada que culminaria com sua vitória meses mais tarde.

Passei seu primeiro governo trabalhando em boa medida com monitoramento de políticas públicas no plano federal. Conheci muita gente, de ministros a técnicos, e vi de tudo: pessoas sérias e dedicadas ao lado de canalhas consumados, mais um monte a quem dou o benefício da dúvida. Além do problema da corrupção e da falta de caráter, acho que os maiores obstáculos foram a fragilidade financeira, o mau relacionamento do Executivo com o Congresso, a carência de funcionários qualificados em muitos dos novos ministérios e as dificuldades em lidar com a fragmentada máquina administrativa do Estado brasileiro.

O colega Conspirador Alexandre observou que Lula foi candidato em todas as eleições presidenciais desde que o Brasil voltou a ser uma democracia. Para o bem e para o mal, sua presença marca todo este período. Como diria o próprio, nunca antes na História nacional houve um político com tais características. Talvez isso seja inevitável: num país de instituições ainda frágeis, em consolidação, aumenta a importância das pessoas, de líderes carismáticos que possam fazer a mediação entre as demandas sociais e o Estado.

O formato dessa relação mudou muito. Lula despontou para a vida política brasileira como o líder do Novo Sindicalismo, o movimento dos trabalhadores concentrado no setor mais moderno da indústria - as grandes fábricas automobilísticas do ABC - que criticavam tanto a ditadura militar quanto o populismo da Era Vargas e seus sindicatos controlados pelo Estado.

Aquele movimento operário virou símbolo das aspirações dos brasileiros e catapultou Lula ao lugar em que está hoje. Mas o Novo Sindicalismo não existe mais. Foi sepultado pela automação das empresas, pela triplicação da taxa de desemprego e pela nova mobilidade ganha pelo capital numa economia internacional mais aberta. Seus líderes assumiram posturas muito próximas àquelas dos ´pelegos' de Vargas - vide o presidente da CUT que virou Ministro do Trabalho. Os movimentos sociais estão em larga medida desarticulados diante do governo, relutantes em criticá-lo. Postura que a meu ver abriu caminho para muitas coisas ruins.

O próprio Lula virou uma espécie de pai dos pobres, com um discurso de reforma social baseado em políticas de assistência garantida pelo Estado, mas com medidas econômicas que não promovem crescimento na escala necessária. Conquistou o eleitorado do Norte/Nordeste e se aliou às oligarquias tradicionais. Estratégia bem-sucedida em termos eleitorais. A vitória foi total: Alckmin perdeu 2 milhões de votos com relação ao primeiro turno. Lula venceu em 19 dos 27 estados, embora tenha perdido na região Sul, em São Paulo (por baixo percentual) e nos estados agroexportadores.

Nos governos estaduais, temos o Centro-Sul com o PMDB e PSDB, e o Norte/Nordeste dividido entre PT, PDT e PSB. Boa nova é a surra do PFL, que fica somente com o Distrito Federal, onde elegeu o inacreditável Arruda - aquele da violação do painel do Senado, lembram?

A campanha presidencial foi tediosa e não vi entusiasmo nem nos colegas cientistas políticos. Uma amiga chegou a me falar em "vergonha da política" por parte dos eleitores. Talvez seja o percurso inevitável das democracias - do ímpeto dos anos iniciais passamos para uma fase mais rotineira, um tanto chata. Mas eventualmente, a vida será melhor e mais estável, sem as montanhas russas de crises sem fim.

sábado, outubro 28, 2006

Anpocs para coro e orquestra

- Eu sou a discórdia! A discórdia!

(seguem-se socos, empurrões e alguém é jogado na piscina)

- Quem é o cara?
- Não sei, parece uma cena do Glauber Rocha. Toda essa fúria barroca...

(briga na piscina, noite de abertura)

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- A falta de curiosidade científica dos cientistas sociais é responsável por muitas barbaridades.

(José de Souza Martins, palestra sobre trabalho escravo e migrações internacionais)

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- Acho que há um conflito de gerações entre acadêmicos. Estão sumindo aqueles velhos maîtres à penser.
- Mas você acha isso ruim? A nova geração é muito bem preparada do ponto de vista metodológico. E depois, o sujeito começa duende e só depois vira Gandalf.

(conversa em restaurante)

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- Nunca vi tanta gente dura na minha vida. Só tem sociólogo e historiador. Não vendi uma assinatura de revista.

(papo nos estandes de editoras)

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- Fui no GT coordenado pelo seu orientador. Achei uma droga. Visão conservadora, banalidades. Além disso ele é gago, tem língua presa e fala portunhol.
-Sentiu meu drama!

(diálogo de corredor entre doutorandos)

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- Vai comprar algum livro?
- Não, estou com um Dostoievski me esperando. E quarta embarco para Buenos Aires, onde eles são bem mais baratos.
- Você vai respirar até lá ou também vai economizar ar?
- Respirarei com moderação. Estou em busca de bons ares.

(conversa de beira de piscina)

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- Você quer dizer que ele saiu do hotel sem pagar?
- E fugiu de charrete!

(boletim de ocorrência que já entrou para o folclore da Anpocs)

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- Adoro as publicações de vocês. Nem parecem do governo!
- Elas não são, senhora. Somos uma organização da sociedade civil. Mas as pessoas vivem me confundindo com funcionário do governo, não sei que mal faço a elas.

(papo de estande)

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- Você viu a encenação do Lula?
- Ele ensaiou bem.
- Quero aprender isso. Faz parte do curso de vocês lá no laboratório de comunicação política?

(fofoca pós-debate)

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- As ciências sociais estão virando uma legitimação do senso comum. Falta questionamento, ousadia, criatividade.
- Só vejo isso nas artes, na música, na literatura...

(desabafo em jantar)

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- A gerente está dizendo que não tem como confirmar nosso depósito.
- Mas passei o fax para ela!
- Ok, vamos tentar resolver isso. Mas em todo caso, reserve a charrete!

(check-out no hotel)

segunda-feira, outubro 23, 2006

Travessuras da Menina Má



“Aquele foi um verão fabuloso”, nos diz Vargas Llosa, quando o adolescente Ricardo conheceu a chilenita com olhos cor de mel e deram início a um amor profundo, doloroso e turbulento que se arrastaria por 40 anos e passaria por Lima, Paris, Londres, Tóquio e Madri. “Travessuras da Menina Má” é o mestre peruano em grande estilo, ainda que diferente do habitual: terno, romântico, com uma doçura que permanece mesmo nos momentos mais sórdidos do enredo.

O jovem Ricardo tem apenas duas ambições na vida. Amar a Niña Mala e morar em Paris. Ele se instala na capital da França como tradutor e intérprete, mas sua amada atravessará seu caminho sob diversos disfarces: aprendiz de revolucionária na Paris e na Havana dos anos 60, esposa de um milionário britânico na swinging London da década de 70, amante de um mafioso japonês e organizadora de golpes, tramóias, mentiras e traições que infernizam a vida de seu eterno admirador. Aos poucos, descubrimos alguns de seus segredos, com a origem de suas inquietações nas iniqüidades da vida peruana.

Além do amor entre os protagonistas, Vargas Llosa costura com incrível sensibilidade os personagens secundários, como os grandes amigos de Ricardo: Paul, que embarca na epopéia suicida da revolução peruana; Juan, cujo mergulho na outra revolução, a sexual, revela-se igualmente trágico; Salomón, intérprete genial e melancólico; Simon e Elena, o casal de vizinhos, o tio peruano que lhe dá constantes notícias do descalabro do país.

A trama do romance acompanha as diversas etapas da vida de Vargas Llosa, como se o já idoso escritor fizesse um balanço de sua educação sentimental. E com espantosa leveza e suavidade, embora persista a tensão entre os personagens: a paixão (amorosa, política, o que seja) de cada um é o que dá sabor à vida, mas também é aquilo que os ata ao sofrimento, à dor e à morte.

E ainda assim, “Travessuras da Menina Má” me deixou com uma sensação de serenidade e paz. Talvez pelo livro, numa impecável edição espanhola, ter sido presente de uma amiga recente, mas já muito querida. Talvez pelo inegável carinho do autor por cada personagem. Ao lê-lo, pensei na Niña Mala como a protagonista da canção Te Recuerdo Amanda, do chileno Victor Jara:

Y tu caminando
Lo iluminas todo


Valha-me Deus, tudo soa tão bonito em espanhol...

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Me ausento do Rio de Janeiro e do blog por alguns dias: sigo para Caxambu, Minas Gerais, para o encontro anual da Anpocs, reunião de cientistas sociais e outros seres esdrúxulos.

domingo, outubro 22, 2006

Super-Homem no Supermercado



Você está entusiasmado pela cobertura da imprensa sobre as eleições presidenciais? Se estiver, meus parabéns. Sou jornalista e cientista político e quase durmo ao ler os jornais e assistir à TV. Por isso foi um alívio descobrir o excelente trabalho de reportagem de Norman Mailer em “O Super-Homem vai ao Supermercado”, coletânea de três textos sobre convenções presidenciais nos EUA da década de 60, publicada na suculenta coleção de jornalismo literário da Companhia das Letras.

A única coisa que eu havia lido de Mailer fora “Os Nus e os Mortos”, bom romance sobre a Segunda Guerra Mundial. Sabia também que ele é um dos expoentes do chamado “Novo Jornalismo”, ao lado de Tom Wolfe e Truman Capote. Basicamente, uma turma de ótimos escritores que utilizou técnicas de ficção para redigir reportagens. Nas palavras do próprio Mailer: “Julgava que a ficção podia nos levar mais para perto da verdade que o jornalismo, o que não quer dizer que se deva inventar fatos quando se escreve um relato sobre gente de verdade.”

Mailer cobre as convenções para a escolha dos candidatos à presidência dos EUA como uma oportunidade para radiografar os sonhos e temores do país naquele momento. A primeira e melhor reportagem do livro fala sobre a inesperada escolha de Kennedy em 1960. A segunda aborda a ascensão do republicano Barry Goldwater em 1964, num espírito de “contra-revolução”, de oposição às transformações sociais em curso. A terceira, e mais trágica, fala das convenções de 1968, com os republicanos ficando com Nixon e os democratas num conclave suicida em Chicago, que culminou em dias de pancadaria e quebra-quebra na cidade e na própria convenção, com o país dividido pelo Vietnã e pelas tensões raciais.

A obra-prima do livro é a análise de Kennedy, que encarnava a busca de mitos e heróis (“a política da América seria também o filme favorito da América, a principal telenovela, o maior best seller”) ao mesmo tempo em que lidava com o supermercado do consumo de massas e das grandes campanhas eleitorais.

Há bons perfis no livro de diversos políticos americanos: os irmãos Kennedy, Nixon, Goldwater, o prefeito Daley (velho cacique democrata de Chicago), Adlai Stevenson e outros. Mas o melhor são as descrições dos tipos comuns, os militantes de base, os delegados das convenções, a atmosfera de cada encontro, além de uma análise magistral da “política como propriedade”.

Mailer tem mais de uma semelhança com Gore Vidal, que aliás detestava – surrou-o uma vez porque o autor de “A Era Dourada” disse que ele era... violento!. Ambos escrevem com inteligência, ironia, sarcasmo mas também com óbvia paixão pela política. Os dois tentaram, sem sucesso, se eleger para cargos públicos. Sinto falta de livros assim no Brasil, que possam ir além do simples denuncismo das nossas mazelas.

sábado, outubro 21, 2006

Confissões de um Canastrão

Há boas razões pelas quais um cara se torna professor universitário, no entanto as más são mais divertidas. O ofício exige exibicionismo em grau elevado, ou seria psicologicamente impossível um sujeito ouvir o som da própria voz durante oito horas seguidas, enquanto discorre sobre as relações entre Kant e o nacionalismo, a corrida armamentista entre Brasil e Argentina, o plano Marshall ou qualquer outra catilinária que imponho a meus pobres alunos. O único consolo que eles têm é que ao menos não incomodo o público em escala maior, como ator canastrão ou orador de boteco.

Se a atividade de professor muito de teatro, as palestras então batem na trave de um musical da Broadway. Este semestre está sendo bem atarefado para mim nesse tipo de performance - foram duas só nesta semana, uma na PUC-Rio sobre América Latina contemporânea e outra na UVV, em Vila Velha, sobre as organizações não-governamentais no sistema ONU. Gosto muito desse tipo de evento: a gente é paparicado pelos amigos e alunos, nos servem refeições maravilhosas e sempre se conhece pessoas interessantes. É a melhor profissão do mundo.

Ontem, no Espírito Santo, minha palestra foi precedida de uma bela apresentação de tango. Fiquei divagando: meu ofício é assim tão diferente do daquele do casal de dançarinos? Noves fora a destreza de ambos, estávamos todos ali para entrenter a platéia, embora eu tivesse a desvantagem de não poder executar meu número com uma flor na boca.

O curioso foi uma aluna que veio me cumprimentar após a fala afirmando que tinha assistido a outra palestra minha, no mês passado numa simulação da ONU no Rio de Janeiro. Me senti o Bob Dylan. Daqui a pouco saio em turnê, começando pela Argentina, claro.

Depois do evento, fui jantar com amigos queridos da universidade - Rodrigo, Evelyn, foi ótimo rever vocês, que agora me devem o troco em Buenos Aires! - e um dos assuntos do papo foi o "acadêmico como artista frustrado". Brincaram comigo dizendo que meu caso era o cinema, mas juro que minha ambição limita-se a escrever um bom romance. Mas tudo bem: a teoria política tem seu quê de ficção, afinal uma de suas funções é imaginar mundos possíveis.

***

E falando no demônio, segue o link para meu artigo acadêmico mais recente: "Participação Social e Direitos Humanos no Mercosul". Também preparei dois outros na mesma linha, um para a revista Democracia Viva, outro para um livro da PUC.

Ciência política é uma cachaça. Mantenham suas crianças longe disso.

quarta-feira, outubro 18, 2006

Sábado



Dezesseis de fevereiro de 2003 também foi importante para mim. Era o dia da manifestação global contra a guerra no Iraque. Estive em dezenas, senão centenas, de protestos políticos e aquele foi um dos melhores. Bom humor, gente legal, os mais velhos com lembranças das marchas anti-Vietnã. Pessoas que encontrei ao longo da passeata me ofereceram dois empregos (aceitei um, assistente de pesquisa), o que levou uma amiga que estava comigo a me perguntar: “Isso acontece sempre com você?”. Sempre, não.

A história política às vezes se condensa em um único dia de alta intensidade, que funciona como um catalisador para tensões sociais e mudanças latentes. Onze de setembro. Dezoito de Brumário. Por aí vai. O escritor inglês Ian McEwan escolheu 16 de fevereiro de 2003 para ambientar seu excelente romance “Sábado” e nos dar a melhor obra de arte sobre o mundo da “guerra ao terror”.

“Sábado” é protagonizado por Henry Perowne, um bem-sucedido neurocirurgião de meia idade. Ele vive em Londres com mulher e dois filhos chegando à idade adulta. Henry é um homem racional e contido, acredita na ciência e no poder da técnica médica. Seu contraponto vem dos filhos, que escolheram carreiras artísticas na música e na poesia. Quando o sábado começa, Henry está preocupado em organizar um jantar para a filha, que volta para casa após seis meses numa universidade francesa e quer se reconciliar com o avô materno, um poeta celebrado e egocêntrico.

No entanto, dois acontecimentos irão perturbar a ordem do mundo de Henry, e mostrar a ele que o caos e a violência estão mais próximos do que parecem da rotina tranqüila da alta classe média européia. O primeiro é o pouso de um avião em chamas que ele vê de sua janela (Acidente? Terrorismo?). O segundo é um acidente banal de trânsito que tem conseqüências inesperadas e de grande impacto.

Ao longo do sábado, a manifestação contra a guerra entra no cotidiano de Henry, atrapalha seus deslocamentos pela cidade e força-o a pensar sobre o conflito. Ele é favorável à invasão do Iraque, influenciado pela amizade que fez com um professor torturado pelo regime de Saddam. Sua filha o questiona e levanta tudo que pode dar errado no Oriente Médio com a guerra. Ao fim o próprio Henry se pergunta o que um médico que vivesse em 1903 poderia prever sobre os horrores do século XX. O que nos aguarda neste que mal começou? Cem anos de choques religiosos?

O início do livro é ruim, com muitos detalhes técnicos sobre neurocirurgia, mas aos poucos a trama engrena e as últimas 50 páginas são primorosas. “Sábado” não tem frases de efeito, conquista o leitor pela riqueza das relações humanas entre os protagonistas.

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Algumas palavras sobre o Nobel de literatura de 2006: nunca li o poeta turco Orhan Pamuk. Uma amiga que o ouviu na feira literária de Paraty gostou dele. Mérito poético à parte, o senso político da academia sueca continua afiado: premiar Pamuk em meio às controvérsias sobre a entrada da Turquia na União Européia e aos conflitos entre muçulmanos e cristãos é tomar posição em favor do diálogo entre culturas e religiões. No estado atual do mundo, já é muito.

terça-feira, outubro 17, 2006

Alterações no Programa



De: Prof. Maurício Santoro
Para: Coordenação do Curso

Prezado Coordenador,

em virtude dos acontecimentos políticos recentes em nosso país, sugiro realizarmos alterações na bibliografia do módulo sobre teoria política. Tucídides, Hobbes e Maquiavel foram ultrapassados pela maré dos tempos e é necessário treinar os alunos segundo o pensamento vivo de nossa própria época. Segue então uma lista de obras de referências a serem utilizadas no curso em 2007:

CARDOSO, Fernando Henrique. A Arte da Política. Rio de Janeiro: Record, 2006.
Partindo do pressuposto de que a política brasileira é complexa demais para ser entendida somente com estudos técnicos, iniciaremos o curso com esta peça de ficção, uma tocante fábula sobre um intelectual que acredita ter feito um bom governo no Brasil. No fim, ele salva a mocinha - mas se casa com ACM.

JEFFERSON, Roberto. Nervos de Aço – um retrato da política e dos políticos no Brasil. Rio de Janeiro: Topbooks, 2006.
Para discutir os tópicos “Oratória” e “Amigos para Sempre”. Ao fim da aula, serão sorteados CDs de Lupicínio Rodrigues e cadeiras de deputado pelo PTB.

KAMEL, Ali. Não Somos Racistas. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006.
O único rival de FHC no quesito ficção. Vencedor do Prêmio Condoleezza Rice de Adesão Aos Valores da Elite Branca Dominante. A discussão em sala será complementada por um trabalho de campo em que os alunos serão maquiados de negros e discutirão se o racismo existe com uma unidade de choque da Polícia Militar.

PARREIRA, Carlos Alberto. Formando Equipes Vencedoras. São Paulo: Editora Best Seller, 2006.
Lição de otimismo, liderança, organização e realização. Entra no lugar de “A Lógica da Ação Coletiva”, de Olson, e do “Que Fazer?” de Lênin.

SURFISTINHA, Bruna. O Doce Veneno do Escorpião. São Paulo: Panda Books.2005.
Este importante relato será usado para discutir a relação entre o Poder Executivo e o Congresso, particularmente os acordos feitos com a base governista. Os estudos serão complementados por exibições dos melhores momentos da CPI do Mensalão. Se os alunos acharem forte demais, substituiremos pelo vídeo “As Aventuras de Bruna Surfistinha e suas Amigas na Sex Shop”.


No prelo:

Rumores em Brasília nos informam da preparação dos seguintes livros, que eventualmente poderemos usar no curso de 2008:

LULA. Por que bebo – retratos do Brasil.

DIRCEU, José. Minha Luta Democrática pela Democracia. Prefácio de Kim Jong Il.

domingo, outubro 15, 2006

Política na Era de Clodovil



Brasília. Câmara dos Deputados. Gabinete esfumaçado. Clodovil está sentado em sua cadeira examinando um catálogo de decoração. No sofá, o senador Fernando Collor fala pelo celular com Faustão, dando uma entrevista sobre a importância da ética e rogando às crianças que permaneçam longe das drogas. Frank Aguiar dedilha em seu teclado uma canção sertaneja de dor de cotovelo. Um churrasqueiro presidencial entra afobado no gabinete e tira alguns dólares da cueca, perguntando se alguém topa ser ministro no segundo mandato de Lula. Um grupo de mensaleiros passa fazendo trenzinho no corredor e cantando "Ei, você aí, me dá um dinheiro aí!". Enéas aparece e abraça Clodovil: "Finalmente um parlamentar sem rabo preso! Vamos em frente, construir a bomba atômica!"

Acordo suando frio. Tenho que parar de jantar tarde, tão perto da hora de dormir.

Neste fim de semana a Alta Cúpula dos Doutorandos Iuperjianos esteve reunida para mais uma sessão de orgias e esbórnia, no qual a vida política do país foi passada em revista num cabaré de baixa reputação e preços altos - vocês não imaginam quanto me cobraram pelos bolinhos de bacalhau!

Entre as muitas revelações da noite dantesca esteve a de que um de nossos professores mais idolatrados, um dos pilares das ciências sociais brasileiras, havia concorrido ao cargo de deputado federal, com votação aproximada de 1/2.000 daquela de Clodovil. Isso mesmo: a celebridade teve dois mil vezes mais votos do que nosso luminar intelectual. Se Lênin tinha razão e "a prática é o critério da verdade", quem entende mais de política?

Em época de eleição muitas pessoas crédulas me procuram com olhar ansioso e ar esperançoso e me perguntam em quem devem votar. O tom é semelhante ao daquelas almas cândidas que aceitam folhetos de ciganas que prometem trazer o ser amado em três dias. Como não desejo fazer concorrência a esse povo sofrido, em geral gesticulo impaciente e lanço os buscadores de resposta à balbúrdia do mundo. Além disso, não entendo nada de política. Talvez saiba um pouco de cinema e de literatura, e mesmo assim estou desatualizado com os asiáticos.

Apesar das minhas recusas, as pessoas continuam a me procurar. "Mestre, devo dar a Lula uma segunda chance? Acho que ele realmente não sabia, e ajudou nas investigações." Ou então: "O Alckmin é honesto, não é? E foi bom administrador em São Paulo...".

Me chamaram para uma caminhada de apoio a Lula. Praia de Copacabana e Ipanema. Estou em dúvida entre dar um pulo lá e ir ver uma paródia de Chapeuzinho Vermelho no cinema.

É dura a vida de cientista político brasileiro. Alguém tem o email do Clodovil? Quero mandar meu currículo. Quero aprender com quem sabe.

sexta-feira, outubro 13, 2006

O Grande Jogo



Kipling chamou de “O Grande Jogo” a disputa por poder entre os impérios britânico e russo na Ásia. Desde então a expressão se generalizou para abarcar as guerras frias de todos os tipos. Gosto de usá-la como sinônimo de espionagem e estes anos pós-11 de setembro têm sido férteis em boas obras no gênero.

Devo ao Igor a dica (e o empréstimo) do romance “O Bom Alemão”, de Joseph Kanon, que explora um cenário pouco utilizado: Berlim em meados de 1945, logo após a rendição dos nazistas. A cidade vive um momento caótico, em ruínas, ocupada por diversos exércitos e com os russos cobrando a conta da ocupação alemã em seu país através de estupros e saques generalizados.

Neste ambiente chega a Berlim um jornalista americano, Jake, que lá vivera antes da guerra. Ele tenta reencontrar sua antiga amante, casada com um cientista importante no programa de foguetes dos nazistas. Acaba se envolvendo com o misterioso assassinato de um oficial americano. Quando as duas tramas se cruzam, Jake se verá no centro de uma rede de intrigas que marcam o confronto entre EUA e URSS pela nata da ciência alemã, prenunciando a Guerra Fria que só eclodirá oficialmente dois anos mais tarde.

Kanon tem boa prosa e maneja com classe os elementos da espionagem, com destaque para sua excelente caracterização do caos berlinense. “O Bom Alemão” foi adaptado para o cinema, sob direção de Steven Soderbergh, com George Clooney e Cate Blanchett no elenco. Estréia em dezembro. Promete.

Já em “Quelques Jours en Septembre”, uma das boas surpresas do Festival do Rio, a ação se passa na semana anterior aos atentados de 11 de setembro. Juliette Binoche interpreta Irène, espiã francesa que recebe um pedido de Elliot, velho amigo e colega de profissão americano: reunir Orlando, sua filha francesa, que ele não vê há anos, e David, seu enteado americano – que sequer sabiam da existência um do outro. Elliot virou uma espécie de free-lancer no Oriente Médio e tem uma importante informação a passar para seus filhos e para clientes bilionários.

Enquanto esperam por Elliot, Irene, David e Orlando circulam por Paris e Veneza, tendo na cola um assassino com contas a ajustar (John Turturro) e hábitos heterodoxos, como recitar poesia romântica britânica e fazer psicanálise lacaniana. O suspense é bom, mas o melhor são as relações entre Orlando e David. A moça acha o pai um crápula, o rapaz o idolatra. Aos poucos, a antipatia inicial entre os dois vai dando lugar a um clima de romance, temperado por humor em cima das diferenças culturais entre americanos e europeus.

Belo trabalho de estréia na direção de um roteirista argentino veterano, Santiago Amigorena. Olho nele.

quarta-feira, outubro 11, 2006

Polarização



Há uma discussão entre analistas da política brasileira sobre se o país está polarizado em termos de classes sociais no apoio a Lula e Alckmin. Tenho vivido essa polarização. No trabalho e no doutorado o clima é decididamente pró-Lula, indo da adesão entusiasmada ao governo até à resignação de que o PT corrompido é melhor do que o retorno dos tucanos, particularmente em sua vertente mais conservadora, com Opus Dei e tudo. Mas entre meus alunos Alckmin leva a maioria, às vezes com expressões de ódio visceral a Lula. No entanto, há ressalvas quanto à polarização.

Vamos aos dados: a divisão geográfica já é bem conhecida. Norte/Nordeste com Lula, Centro-Sul com Alckmin. Exceções, e importantes: Minas Gerais, Rio de Janeiro e Espírito Santo com o presidente. No Norte, o candidato tucano levou Roraima (onde a posição do governo federal em defesa das terras indígenas da Raposa Serra do Sul tirou votos de Lula) e Rondônia (cujo perfil econômico está em transformação, tornando-a mais próxima dos estados do agronegócio).

Contudo, quando dizemos “o Rio de Janeiro votou com Lula” podemos cometer um erro de avaliação. Vamos olhar esse voto mais de perto. O Globo desta segunda publicou um mapa eleitoral da eleição presidencial na cidade do Rio. Alckmin ganhou em todos os bairros da zona sul e na Barra da Tijuca, onde se concentram os eleitores de classe média e alta. Lula levou a zona oeste e boa parte da norte. É possível que algo semelhante tenha ocorrido, por exemplo, em Curitiba ou Porto Alegre, com o presidente vencendo em bairros pobres, mesmo quando seu adversário ganhou na cidade ou no estado.

A Folha de S. Paulo publicou alguns dados na edição desta segunda que também ajudam na análise. Alckmin teve nada menos do que 56% dos votos dos eleitores com estudo universitário. Falamos de uma minoria que corresponde a uns 10% da população, mas é um grupo com enorme importância política, de formação da opinião pública, influência nos meios de comunicação. Em contrapartida, Lula ficou com 57% dos eleitores com nível de instrução fundamental. A imagem invertida de seu oponente.

Polarização à parte, será que uma vitória de Alckmin mudaria tanto assim o rumo das políticas públicas? Claro que haveria diferenças, mas acredito que menores do que a retórica inflamada de campanha dá a entender. A corrupção, por exemplo, continuaria igual. Tanto PT quando PSDB são minoritários no Congresso e teriam que buscam apoio numa série de partidos cujo principal pilar ideológico é o Diário Oficial. Enfim, vale ler a ponderada análise do argentino Rosendo Fraga, que desenvolve o tema na base de que na Argentina as mudanças são sempre mais bruscas, enquanto no Brasil prevalece a tradição da moderação, de busca de consensos e de negociações e acordos pelas elites políticas. Está certíssimo.

segunda-feira, outubro 09, 2006

Liderança



Nestes dias de campanha eleitoral, se você estiver em busca de exemplos de liderança assista à minissérie “Band of Brothers”, produzida pela HBO, acompanha o cotidiano de uma companhia de paraquedistas dos EUA na Segunda Guerra Mundial. Em dez episódios magistrais, a série aborda o treinamento da tropa, o Dia D, a fracassada tentativa de tomar as pontes do Reno na Holanda (Operação Market Garden), a terrível contra-ofensiva alemã na floresta das Ardennes e a ocupação aliada da Alemanha e da Áustria. Embora as cenas de combate sejam excelentes, o essencial da série são as relações entre os membros da companhia, em particular a liderança exercida pelo oficial Richard Winters, que passa de tenente a major durante os três anos cobertos pela série. Só fui vê-la inteira agora, graças a meu irmão ter me emprestado os DVDs.

Pessoas vão à guerra por vários motivos: ideais, obrigações, senso de dever, desejo de aventura ou de rapina. No entanto, uma vez em combate, os que as mantém unidas não é a filiação abstrata ao Rei ou ao Estado, mas o elo que se forma com seus camaradas. We happy few, we band of brothers, como diz Henrique V a seus soldados, na peça de Shakespeare.

No início de Band of Brothers, o tenente Winters é o esforçado assistente do capitão Sobel, o comandante da companhia, um oficial rigoroso em excesso que acredita que ser líder é cobrar seus subordinados ao máximo e ocasionalmente humilhá-los com ordens injustas. O zelo de Sobel disfarça sua insegurança e ele se revela um péssimo comandante nos exercícios de campo, sendo afastado do posto às vésperas do Dia D.

Winters assume o comandado da companhia exatamente nesse dia fatídico para a guerra, pois o comandante substituto morre na invasão da Normandia. O tenente é visto com estranheza pelos seus, por não beber, confraternizar pouco com os soldados. Corre até o boato que é quacre. Aos poucos Winters demonstra seriedade, competência e dedicação pela tropa. É sempre o primeiro a se expor aos riscos e também se esforça para proteger seus homens da eventual estupidez da burocracia do Exército.

É difícil dar conta de tantas exigências de liderança e alguns dos melhores momentos da série são as tentativas da companhia em lidar com oficiais ruins (“Ele grita muito, viu filmes de guerra demais”, diz Winters a respeito de um tenente), ou com bons oficiais que simplesmente não agüentam o tranco do combate, de perder amigos e subordinados.

A guerra é a situação extrema por excelência, mas várias das discussões sobre liderança podem ser aplicadas em outros ambientes. A principal constatação de Band of Brothers é que liderança extrapola a posição na hierarquia, é um respeito construído na convivência, confiança e espírito de equipe. Ao exemplo de Winter se junta o dos sargentos da companhia – a espinha dorsal de qualquer Exército - em especial recepcionando os “substitutos” que chegam no lugar dos muitos mortos nas campanhas européias. Há também um episódio excelente no qual a terrível batalha de Bastogne é contada do ponto de vista de um dedicadíssimo enfermeiro, que contribuiu a sua maneira para manter o moral em meio a uma situação desesperadora.

“Band of Brother” é também uma justa homenagem ao Exército de “soldados e cidadãos” americanos que venceu a Segunda Guerra Mundial. Numa bela cena, um coronel nazista se rende a Winters e diz que não haverá lugar para pessoas como eles nos anos de paz. Mas Winters opta por sair das Forças Armadas e se torna fazendeiro nos EUA, em busca da tranqüilidade que tanto almejou em seus anos de combate.

sábado, outubro 07, 2006

A Vergonha da França


Uma amiga francesa, cientista política formada na tradição das grandes escolas do país, certa vez me perguntou: "De onde vocês brasileiros tiraram a idéia de que a França é progressista? Ela é muito conservadora, com uma extrema-direita fortíssima!"

Um espectro ronda a França – e seu cinema – a dificuldade em lidar com o passado colonial na África do Norte, em especial com as atrocidades cometidas na Argélia e com o tratamento dos cidadãos de origem africana. Os melhores filmes franceses recentes, como “Caché” e “Amigo é para essas coisas” tratam do tema, bem como dois excelentes que vi no Festival do Rio: “Dias de Glória” e “A Batalha de Paris”.

Dias de Glória” fala da participação de 130 mil soldados argelinos e marroquinos no Exército da França, durante a Segunda Guerra Mundial, e de seus esforços fundamentais para a libertação do país da ocupação nazista. Sacrifício naturalmente esquecido, tão logo passou o perigo do III Reich.

O filme acompanha um grupo de soldados entre os quais se destacam o cabo Abdelkader, inteligente e ambicioso, que aspira à ascensão no Exército, e os soldados Messaoud, que se apaixona por uma francesa em Marselha, e Said, que vê na guerra a chance de escapar da miséria em que nasceu. Eles são indigénes, termo pejorativo (e título original do filme) que designava os árabes das colônias francesas. São liderados pelo sargento Martinez, um pied noir (francês nascido na Argélia) que se mostra simpático, à primeira vista, à integração dos árabes na tropa.

À medida que a ação se desenrola, vemos a tropa participar de batalhas na Itália e na França e acompanhamos as múltiplas discriminações que sofreram nas Forças Armadas: alimentação pior, promoções mais lentas, desprezo dos superiores, racismo. Numa das melhores cenas, o cabo Abdelkader lidera um motim e questiona os ideais pelos quais lutam, “sobretudo a fraternidade”, que parece inexistente naquele Exército segregado. O próprio sargento Martinez mostrará seus limites.

Por fim, “Dias de Glória” é uma homenagem eloqüente ao esquecimento do heroísmo desses soldados. O filme despertou um debate na França sobre a maneira pelo qual o governo trata os veteranos – suas pensões foram suspensas após a independência das colônias, e as autoridades não retomaram os pagamentos, apesar de uma ordem judicial para que o fizessem.

A Batalha de Paris” (Nuit Noir) é ambientada em 1961. A guerra de indendência da Argélia está quase no fim e a FNL levou os combates à capital francesa, atacando policiais e delegacias. O clima fica cada vez mais tenso, com grupos de extermínio formados por policiais espancando e humilhando a esmo os argelinos. A estupidez resulta num grande massacre, quando a polícia ataca uma manifestação pacífica dos argelinos contra as medidas repressivas.

O diretor Alain Tesma conta a histórica em forma de ficção, focando num grupo de personagens variados, franceses e argelinos, militantes, policiais e pessoas sem envolvimento político, mas capturadas pelo turbilhão dos acontecimentos.

O massacre foi comandado por Maurice Papon, chefe da polícia, que continuou carreira como deputado e ministro. Foi condenado em 1998 por crimes contra a humanidade – mas pelas atividades que exerceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando deportou judeus para Alemanha nazista.

Não é por acaso que ambos os filmes tenham como protagonistas jovens árabes inteligentes, estudiosos e dedicados, que sonham com os ideais da República francesa. Ambos descobrem que são uma ilusão e que a retórica de “igualdade” não se aplica a pessoas de cor de pele escura e religião muçulmana. Vergonha da França, mas não só dela.

quinta-feira, outubro 05, 2006

África em Tela



Todas as vezes que penso na África me lembro da moça que cantava no mercado de pulgas de Johannesburgo.

Eu estava num pequeno estande de livros, conversando com a simpática proprietária, uma velhinha que me recomendava obras sobre África do Sul, Angola, Quênia. E a mulher que trabalhava numa barraca vizinha começou a cantar, enquanto limpava o local. Talvez ela não tivesse o que comer quando chegasse em casa. Talvez vivesse com medo da violência, da pobreza ou de outro cavaleiro do apocalipse africano. Mas cantava.

Tudo que diz respeito à África do Sul sempre me emociona de maneira especial. Assisti a dois excelentes filmes do país no Festival do Rio: o drama “Infância Roubada” e o documentário “Os Dozes Discípulos de Mandela”.

“Infância Roubada” é o (péssimo) nome em português de Tsotsi, que venceu o Oscar de filme estrangeiro de 2006. O título é gíria para bandido e é o apelido do protagonista, um rapaz que chefia uma gangue de criminosos pés-de-chinelo na megafavela de Soweto, próximo a Johannesburgo, o coração empresarial da África.

Numa noite, um dos membros da gangue faz perguntas a Tsotsi sobre seu passado – coisas banais como seu nome verdadeiro, quem foram seus pais, se ele teve um cachorro etc. O rapaz responde com fúria, espanca o amigo e sai descontrolado. Termina por roubar um carro e balear uma mulher num bairro rico. Mais tarde, descobre um bebê no banco traseiro.

Tsotsi resolve ficar com a criança e ao longo dos dias seguintes a companhia do bebê provoca nele uma série de reações que lançam a esperança de um pouco de humanidade e ternura em seu ambiente de violência e privações. Mas o rapaz está tão carregado pela tragédia que há um limite para sua capacidade em mudar.

Gostei muito do filme – é uma espécie de “Cidade de Deus” com menos violência e mais lirismo, tudo isso ao som empolgante do Kwaito, o hip hop sul-africano, e um grupo de jovens atores com excelente desempenho.

Os “Doze Discípulos de Mandela” também foi uma bela surpresa, pelo tom simpático com que narra a odisséia de jovens militantes do Congresso Nacional Africano que deixaram a África do Sul em 1960 para criar redes de apoio no exterior a luta contra o apartheid. O resultado foi um épico que atravessou todo o continente africano e se estendeu a Cuba, aos Estados Unidos e à Inglaterra.

A história seria empolgante em qualquer circunstância, mas o diretor Tom Harris encontrou o tom ideal. Ele entrou em contato com a odisséia dos Doze quando sua mãe, americana, se casou com um dos rapazes. Harris era um menino de 9 anos, que havia sido abandonado pelo pai, e iniciou uma forte relação afetiva com o padrasto revolucionário.

O filme não é só um documentário político tradicional, é também uma bela história de amor do enteado com o padrasto, marcada por amizade, admiração, mas igualmente pelas dificuldades, brigas, dor e sentimento de distância e exílio. Impossível não se comover e se emocionar com o apartamento do Bronx que serviu de ponto de encontro para toda uma geração de exilados africanos e negros americanos, unidos pelo sonho comum de acabar com o mais odioso regime racista do mundo.

quarta-feira, outubro 04, 2006

Esboços

O cenário: Rio de Janeiro, Belle Époque. Os personagens: os mais importantes intelectuais do país – Joaquim Nabuco, Euclides da Cunha, Oliveira Lima, Rui Barbosa – reunidos na corte do barão do Rio Branco. O drama: a tentativa de construir um país moderno em meio às limitações da Velha República.

Qual voz narrativa usar? A solução óbvia seria contar a história pela boca de um jovem que se juntasse ao grupo numa posição de assistente, aprendiz. Testemunha, mas não protagonista, dos atos dos grandes homens. Mas por que não tentar uma perspectiva mais marginal – uma mulher, ou um mulato, que por definição estariam excluídos dos mais altos círculos do poder e ofereceriam visão mais crítica daqueles tempos?Eventualmente, incluir um jovem militar, envolvido com o nacionalismo autoritário (mas preocupado com o desenvolvimento econômico) que começava a surgir, em oposição ao liberalismo tradicional.

Atos: a volta de Rio Branco ao Brasil, sua aclamação como herói nacional e a nomeação para Ministro das Relações Exteriores. A ida de Nabuco para os Estados Unidos, como primeiro embaixador brasileiro naquele país. O conflito com a Bolívia pelo Acre. As disputas com a Argentina e a retórica geopolítica do ministro Zeballos, reflexo dos medos da Grande Guerra que começa a se esboçar no horizonte. A pompa e a circunstância da Conferência Pan-Americana no Rio de Janeiro e das negociações de paz na Haia.

Contrapontos: Machado de Assis atuando como comentarista, com observações irônicas em cartas a seu velho amigo Joaquim Nabuco. Lima Barreto, amargurado e semi-alcoolizado, e João do Rio, com sua boemia e gosto pelo submundo, falariam do lado obscuro da República que estava sendo criada. Os deserdados do Bota-Abaixo e do "Rio Civiliza-se". Problema: como lidar com a Revolta da Vacina?

Alívios cômicos: a hilariante disputa entre Rio Branco e Oliveira Lima, o Dom Quixote Gordo, pela entrada na Academia Brasileira de Letras. O périplo de Lima para não servir no Peru. As crises de vaidade e retórica de Rui Barbosa. A rabugice do lendário diretor geral do Itamaraty, o Visconde de Cabo Frio, que ocupava o cargo desde os tempos do Imperador.

Temas políticos: até onde é possível reformar pelo alto as instituições carcomidas da Velha República? Os projetos pioneiros de Oliveira Lima para modernizar a diplomacia econômica do Brasil, 40 anos à frente do seu tempo! A rixa ideológica entre Dom Quixote Gordo e Rio Branco: melhor priorizar a América do Sul ou os EUA? Euclides da Cunha e a descoberta do Brasil interiorano. Seus complexos de pequeno-burguês diante do grão-senhor Rio Branco.

Grand finale: os simbolismos das mortes de Nabuco, Machado e Euclides – um mundo que se vai... A revolta da Chibata e a “política das salvações” do marechal Hermes da Fonseca, com o bombardeio a Salvador. A morte do barão alguns dias depois. A idéia de uma Belle Époque nos trópicos sepultada pela realidade crua das disputas políticas de então. Epílogo: alguns anos depois, o Dom Quixote Gordo passeia na Avenida Rio Branco com seu jovem discípulo, Gilberto Freyre, que faz uma apaixonada defesa da mestiçagem a aponta os novos rumos que o Brasil tomaria com a eclosão do Modernismo.

Esboços para um romance histórico que eu talvez escreva um dia. Pensados num vôo noturno Brasília-Rio de Janeiro, após uma palestra sobre conflitos na América do Sul, com um calhamaço sobre o barão do Rio Branco no colo e sob os efeitos psicodélicos do biscoito de goiaba da Gol.

segunda-feira, outubro 02, 2006

Surpresas Eleitorais



“Você não está surpreso com o número de leitores do seu blog que votam em Alckmin?”, quis saber uma amiga que verificou a enquete ao lado. Nem tanto. Nos ambientes de classe média, média alta que freqüento – minhas turmas de pós-graduação, por exemplo - há muitos eleitores do PSDB. No sábado à noite, véspera das eleições, fui com amigas no Baixo Leblon e fiquei impressionado com a quantidade de pessoas vestindo camisas denunciando a corrupção no governo Lula. OK, o Leblon é a pátria dourada de Manoel Carlos. Mas também é, ou era, um núcleo da esquerda festiva carioca.

Algo estava no ar e não percebi. As pesquisas de boca de urna indicavam forte possibilidade de segundo turno, mas não vi nenhuma que conseguisse capturar o salto na popularidade de Alcmkin, que obteve 41,6% dos votos. Pelo contrário, a polêmica da semana entre meus colegas de doutorado era se o Ibope estava exagerando os votos do candidato do PSDB, por conta de detalhes na amostra estatística. Não estava. Cientista político não entende mesmo nada de política.

Fazendo o balanço inicial dos resultados, eis o que destaco:

1- O país está polarizado pela divisão geográfica do mapa acima. A maior parte do Norte/Nordeste está com o presidente, enquanto o Centro-Sul ficou com a oposição, exceções feitas a Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo. Como observa o Renato no blog Tordesilhas, essa divisão acende os piores preconceitos da nossa República Federativa.

2- Teremos um mês de chumbo grosso na campanha eleitoral. Tirem as crianças da frente da TV.

3- Congresso: eleitores reelegeram apenas 6 dos 67 acusados no escândalo das sanguessugas.
Apesar da reação aos escândalos de corrupção, estiveram longe de mostrar compromisso com a honestidade, como demonstram as vitórias de 7 mensaleiros (de 12 que concorreram), de Maluf na Câmara e, Deus nos proteja, de Collor no Senado - e declarando simpatia por Lula!!!. No Rio de Janeiro, a lista de deputados estaduais parece um conclave da Máfia. As principais famílias do crime organizado do estado estão representadas.

4-Apesar da surpresa de Alckmin, o PT saiu-se bem. Aumentou a bancada na Congresso e os governos estaduais, incluindo uma surpreendente vitória na Bahia, onde o ex-ministro Jacques Wagner derrotou o grupo de ACM. O partido como um todo não foi atingido pelos escândalos de corrupção no governo Lula (vide nota acima).

5- Mas no novo Congresso o governo segue em minoria. Precisará do apoio do PMDB e dos partidos de médio porte. Até aí, nada de mais, é o habitual no “presidencialismo de coalizão brasileiro”. Os líderes petistas têm ressaltado a importância de melhorar o relacionamento com o parlamento, foco de tantos problemas.

6- A cláusula de barreira complicou a vida de pequenos partidos, do novato PSOL aos tradicionais PPS, PV, PL. O PTB de Roberto Jefferson e o Prona de Enéas também estão na lista.

7 – Clodovil e o rei do forró Frank Aguiar foram eleitos para a Câmara dos Deputados. Como vou explicar isso na Argentina?

8- O que derrubou Lula na última semana? O dossiê? A ausência nos debates? O assunto é controverso – seus 48,6% dos votos estavam dentro da margem de erro das pesquisas. Ele pode muito bem não ter perdido apoio em escala significativa. A pergunta essencial é o que fez os indecisos se aglutinarem em torno de Alckmin. Interessante notar que a soma dos votos do ex-petistas Heloísa Helena e Cristovam Buarque – 9,5% - daria a vitória ao presidente no primeiro turno.

O melhor resultado da eleição: depois de meses de campanha fria, as pessoas voltaram a discutir política, animadamente. Nos ônibus, restaurantes, locais de trabalho, foi o assunto do dia. Antes tarde do que nunca!

domingo, outubro 01, 2006

O Guardião



Eu havia dado palestra num centro de estudos do Exército e passara o dia em Brasília, circulando entre instalações militares. Já estávamos no fim da tarde quando me despedi dos oficiais que me acompanhavam e pedi ao soldado que servia como meu motorista que me levasse ao aeroporto. Conversávamos sobre sua vida na capital, suas expectativas de carreira nas Forças Armadas. Foi quando ele me contou que fizera parte da guarda presidencial de Lula. O tom que usou não indicava que aquele houvesse sido um período feliz.

“A maioria das pessoas poderosas que conheço exige muito de quem está a seu redor, mas não costuma ser lá muito educada”, eu disse. “É verdade”, ele me respondeu, “Eu dava bom dia ao presidente e ele nem me olhava, passava direto com a cara amarrada.” Comentamos o quanto aquele comportamento era injusto. Para além das regras básicas de cordialidade, um suboficial do Exército foi assassinado protegendo a vida do filho de Lula.

Lembrei do soldado ao ver “O Guardião” no Festival do Rio. Mais um bom filme argentino, com roteiro caprichado e excelente atuação do protagonista Julio Chávez. Ele interpreta Rubén, o guarda-costas de um ministro argentino. O segurança é um homem solitário, com uma família problemática, cuja vida se dá à sombra do poder.

O poder não é um lugar, ou uma pessoa, mas uma rede pegajosa de relações, afirma a escritora Rosa Montero. Artemio, o ministro para quem Rubén trabalha, talvez nem seja particularmente arrogante. Ele se esforça para ser jovial e brincalhão, mas suas atitudes cotidianas reduzem Rubén a um status servil, quase de objeto, sem direito a desejos próprios.

Vamos descobrindo a relação entre os dois de maneira fragmentada, pelas imagens que Rubén vislumbra por uma porta entreaberta, por um pedaço de espelho retrovisor, entre as cortinas que protegem a intimidade dos poderosos. Os diálogos também surgem incompletos, trechos de frases ditas em celulares ou sussurradas em elevadores e automóveis oficiais.

Há vários filmes nos EUA sobre seguranças e guarda-costas, em geral ressaltando dever, senso de responsabilidade, sacrifício. Estava na hora da perspectiva latino-americana para destacar o lado obscuro dessa relação de força.
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