sábado, outubro 07, 2006

A Vergonha da França


Uma amiga francesa, cientista política formada na tradição das grandes escolas do país, certa vez me perguntou: "De onde vocês brasileiros tiraram a idéia de que a França é progressista? Ela é muito conservadora, com uma extrema-direita fortíssima!"

Um espectro ronda a França – e seu cinema – a dificuldade em lidar com o passado colonial na África do Norte, em especial com as atrocidades cometidas na Argélia e com o tratamento dos cidadãos de origem africana. Os melhores filmes franceses recentes, como “Caché” e “Amigo é para essas coisas” tratam do tema, bem como dois excelentes que vi no Festival do Rio: “Dias de Glória” e “A Batalha de Paris”.

Dias de Glória” fala da participação de 130 mil soldados argelinos e marroquinos no Exército da França, durante a Segunda Guerra Mundial, e de seus esforços fundamentais para a libertação do país da ocupação nazista. Sacrifício naturalmente esquecido, tão logo passou o perigo do III Reich.

O filme acompanha um grupo de soldados entre os quais se destacam o cabo Abdelkader, inteligente e ambicioso, que aspira à ascensão no Exército, e os soldados Messaoud, que se apaixona por uma francesa em Marselha, e Said, que vê na guerra a chance de escapar da miséria em que nasceu. Eles são indigénes, termo pejorativo (e título original do filme) que designava os árabes das colônias francesas. São liderados pelo sargento Martinez, um pied noir (francês nascido na Argélia) que se mostra simpático, à primeira vista, à integração dos árabes na tropa.

À medida que a ação se desenrola, vemos a tropa participar de batalhas na Itália e na França e acompanhamos as múltiplas discriminações que sofreram nas Forças Armadas: alimentação pior, promoções mais lentas, desprezo dos superiores, racismo. Numa das melhores cenas, o cabo Abdelkader lidera um motim e questiona os ideais pelos quais lutam, “sobretudo a fraternidade”, que parece inexistente naquele Exército segregado. O próprio sargento Martinez mostrará seus limites.

Por fim, “Dias de Glória” é uma homenagem eloqüente ao esquecimento do heroísmo desses soldados. O filme despertou um debate na França sobre a maneira pelo qual o governo trata os veteranos – suas pensões foram suspensas após a independência das colônias, e as autoridades não retomaram os pagamentos, apesar de uma ordem judicial para que o fizessem.

A Batalha de Paris” (Nuit Noir) é ambientada em 1961. A guerra de indendência da Argélia está quase no fim e a FNL levou os combates à capital francesa, atacando policiais e delegacias. O clima fica cada vez mais tenso, com grupos de extermínio formados por policiais espancando e humilhando a esmo os argelinos. A estupidez resulta num grande massacre, quando a polícia ataca uma manifestação pacífica dos argelinos contra as medidas repressivas.

O diretor Alain Tesma conta a histórica em forma de ficção, focando num grupo de personagens variados, franceses e argelinos, militantes, policiais e pessoas sem envolvimento político, mas capturadas pelo turbilhão dos acontecimentos.

O massacre foi comandado por Maurice Papon, chefe da polícia, que continuou carreira como deputado e ministro. Foi condenado em 1998 por crimes contra a humanidade – mas pelas atividades que exerceu durante a Segunda Guerra Mundial, quando deportou judeus para Alemanha nazista.

Não é por acaso que ambos os filmes tenham como protagonistas jovens árabes inteligentes, estudiosos e dedicados, que sonham com os ideais da República francesa. Ambos descobrem que são uma ilusão e que a retórica de “igualdade” não se aplica a pessoas de cor de pele escura e religião muçulmana. Vergonha da França, mas não só dela.

1 Comentarios:

Blogger Maurício Santoro said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Salve, Igor.

Pois é, o seu tema de pesquisa está totalmente em voga... Não te faltará filmografia.

Terminei "O Bom Alemão" e gostei muito do livro, obrigado pela dica. Marquemos um almoço para semana que vem, e batemos um papo.

Abraços

outubro 09, 2006 2:14 PM  

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