quarta-feira, setembro 27, 2006

Gore Vidal: narrativas do Império



- Eu li o manual de Júlio César na escola e aprendi tudo sobre o poder. Você começa quando o sol nasce e então, com marchas poderosas, supreende o inimigo e mata todo mundo. Depois escreve um livro sobre o que fez.
- Bem, os jornais hoje são o livro que se escreve.

Gore Vidal, “Império”

Há tempos queria a ler as “Narrativas do Império”, série de sete romances em que o escritor americano Gore Vidal conta a história de seu país através de uma família de elite, descendentes bastardos de Aaron Burr – o fascinante vice-presidente dos EUA que segundo seus detratores, queria construir um reino para si mesmo no atual sudoeste daquele país. Ainda não li os três primeiros romances da saga (Burr, Linconl, 1876). Comecei pela parte que mais me interessa: a transformação dos Estados Unidos em uma potência internacional.

O quarto romance, “Império”, abre em 1898 com a vitória dos EUA na guerra hispano-americana. A heroína do livro é Caroline Sanford, que disputa uma herança milionária com seu meio-irmão Blaise. O rapaz se interessa por jornalismo e vai trabalhar para o magnata da imprensa sensacionalista William Randolph Hearst (o inspirador do “Cidadão Kane” de Orson Welles). Por rivalidade com o irmão, Caroline assume o controle de um jornal semi-falido em Washington e aplicando os métodos de Hearst o transforma numa poderosa ferramenta política.

O clima é a exaltação nacionalista pelas primeiras vitórias no exterior, que prosseguem com a eleição de Teddy Roosevelt para a presidência e a construção do Canal do Panamá. O contraponto é representado pelas conversas do Clube de Copas, um grupo de intelectuais que inclui o historiador Henry Adams e o escritor Henry James e que expressam a ética e as preocupações da velha República e ficam céticos com as ambições imperiais dos EUA.

“Hollywood” mostra os mesmos personagens cerca de uma década mais tarde. Os EUA entram na Primeira Guerra Mundial e se estabelecem definitivamente como uma potência mundial. Caroline, próxima ao presidente Wilson, envolve-se nos esforços para tornar a nascente indústria do cinema um instrumento de propaganda dos Aliados e acaba virando investidora (e atriz ocasional) dos estúdios. Ao mesmo tempo, a Revolução Russa desperta o início da histeria anti-comunista nos Estados Unidos, com a filha de Caroline se tornando uma das líderes do movimento e ameaçando o amante da mãe, um cineasta com simpatias esquerdistas: “mas o que [Caroline] sabia dos verdadeiros americanos, a começar por sua filha e seu genro? Haveria muitos outros como eles por lá, com sonhos sinistros de absoluto conformismo com algum ideal primitivo? Realmente, a antiga nação de camponeses encontrara a velha Europa civilizada, e a Europa lhe oferecera guerra, revolução e bolchevismo. Não era de se admirar que os camponeses verdadeiros e em potencial estivessem decepcionados.”
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Saltei “Washington DC”, que não consegui achar, e pulei para “A Era Dourada”, o melhor de todos, que começa com os esforços do ex-namorado de Caroline, Tim Farrell, para rodar um documentário discutindo se os EUA devem participar da Segunda Guerra Mundial, que se inicia na Europa. Na segunda parte, o jornalista Peter, sobrinho de Caroline, se torna um observador privilegiado e crítico do império mundial construído pelos Estados Unidos e da renovação cultural do país (um dos melhores trechos é a estréia da peça “Um Bonde Chamado Desejo”, de Tennessee Williams), enquanto o clima político se torna cada vez mais tenso pelo McCartismo e pela Guerra Fria.

No fim, o romance dá um salto para o ano 2000, onde Gore Vidal vira personagem de sua própria obra e debate na TV os rumos do século americano com seu “velho amigo” Peter, inquietando-se com o pânico ao terrorismo e refletindo sobre a inevitável decadência dos impérios.

Os livros são excelentes, mas não para todos os gostos. É preciso se interessar bastante por política e conhecer pelo menos um pouco sobre a história dos EUA, para acompanhar as descrições de Vidal das intrigas dos bastidores e das negociações que influenciaram os eventos mais importantes de seu país.

Gore é um aristocrata. Irmão de criação de Jackeline Kennedy, neto do senador Thomas Gore, primo do ex-vice-presidente Al Gore, amigo de Eleanor Roosevelt... Seu círculo de amizades é a nata do Partido Democrata. Contudo, ele se manteve fiel ao credo do avô, um político isolacionaista que se opôs ao projeto expansionista americano. Evidentemente, Gore foi derrotado. Mas se a História é escrita pelos vencedores, coube ao perdedor a glória de ser o cronista crítico e sarcástico da saga de seu país.
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