Favela, Cidade, Nação
Passei o feriado com duas grandes amigas que havia prometido apresentar por razões profissionais – a cineasta quer rodar um documentário sobre favelas, a especialização da cientista política. Foi um dia regado a conversas excepcionais que se estenderam noite adentro.
Um dos temas que surgiram foi nossa relação pessoal e profissional com as favelas. No meu caso, uma história em dois tempos. Começou quando eu era repórter do Globo e cobria principalmente a periferia do Rio de Janeiro, atrás de notícias de cidade e uma ou outra coisa de polícia. De modo geral costumava ser bem recebido, mas ocasionalmente a situação esquentava. Nunca me esqueci da diretora de uma escola numa favela da zona norte que certa vez me deu uma bronca merecidíssima: “Vocês só vem aqui para falar das coisas ruins [na ocasião, denúncias de que os traficantes tinham roubado o registro do colégio e iriam atrás dos alunos filhos de policiais], mas nunca estão presentes para noticiar as boas. Semana passada, por exemplo, tivemos um belo festival de música. Onde estavam vocês?”
Em momentos assim, todo jornalista se sente um pouco como urubu rondando a carniça, explorando uma realidade sofrida para ganhos pessoais (ou vá lá, porque o chefe mandou e a gente tem a carreira para se preocupar), sem conseguir dar nada em troca. O mesmo problema afeta outros profissionais de classe média que também se dedicam às favelas, buscando nela fontes de inspiração para escrever livros, teses ou realizar filmes. Qualquer pessoa com um mínimo de decência e de sensibilidade social se incomoda com essa relação e imagina maneiras de mudá-la.
Minha chance veio pouco depois, quando me juntei a um grupo de amigos num pré-vestibular comunitário, que atende principalmente moradores de favelas na zona oeste do Rio. Fiquei lá por três anos, lecionando redação. Das melhores coisas que fiz nesta vida. Lá aprendi a ser professor, conheci grandes amigos e me receberam com um carinho e ternura que ainda hoje me emocionam. Vários dos meus alunos entraram em universidades, uma delas agora trabalha comigo, outro em frente e sempre aparece para um papo. Laços de afeto tão profundo são raros, ainda mais num país tão fragmentado num apartheid social e racial (a moça e o rapaz que citei são negros) como o nosso.
Algo que me marcou muito dessa experiência foi a percepção da capacidade quase miraculosa de aprendizado e crescimento pessoal das pessoas com quem convivi. Me irrita imensamente quando ouço alguém dizer que o povo brasileiro é burro, ignorante, isso ou aquilo. Bobagem. Vi jovens muito pobres, em condições difíceis, terem um desempenho extraordinário. Tudo o que precisam é de alguém que os apóie, acredite neles e os estimule a desenvolver seu potencial. Ajuda financeira não faria mal: perdi ótimos alunos que precisaram largar o curso para ganhar salário mínimo e colocar dinheiro em casa.
A certa altura na conversa falamos do filme “Abril Despedaçado”, no qual minha amiga cineasta trabalhou. Comentei que minha cena favorita é a da encruzilhada pela qual o personagem de Rodrigo Santoro passa várias vezes. No fim, ele escolhe o caminho diferente do habitual e toma a estrada que vai dar no mar, deixando para trás a rotina sufocante de miséria, violência e vinganças familiares que dominara sua juventude. Minha amiga riu e comentou que a produção do filme procurou por muito tempo uma encruzilhada para usar na cena e não encontraram. Até que ela simplesmente construiu uma, com um trator.
Moral da história: tome o caminho alternativo na encruzilhada. Se ele não existir, fabrique um. Creio que vale para os países, tanto quanto para as pessoas. Esta é minha reflexão neste dia em que celebramos nossa pátria desigual.
Um dos temas que surgiram foi nossa relação pessoal e profissional com as favelas. No meu caso, uma história em dois tempos. Começou quando eu era repórter do Globo e cobria principalmente a periferia do Rio de Janeiro, atrás de notícias de cidade e uma ou outra coisa de polícia. De modo geral costumava ser bem recebido, mas ocasionalmente a situação esquentava. Nunca me esqueci da diretora de uma escola numa favela da zona norte que certa vez me deu uma bronca merecidíssima: “Vocês só vem aqui para falar das coisas ruins [na ocasião, denúncias de que os traficantes tinham roubado o registro do colégio e iriam atrás dos alunos filhos de policiais], mas nunca estão presentes para noticiar as boas. Semana passada, por exemplo, tivemos um belo festival de música. Onde estavam vocês?”
Em momentos assim, todo jornalista se sente um pouco como urubu rondando a carniça, explorando uma realidade sofrida para ganhos pessoais (ou vá lá, porque o chefe mandou e a gente tem a carreira para se preocupar), sem conseguir dar nada em troca. O mesmo problema afeta outros profissionais de classe média que também se dedicam às favelas, buscando nela fontes de inspiração para escrever livros, teses ou realizar filmes. Qualquer pessoa com um mínimo de decência e de sensibilidade social se incomoda com essa relação e imagina maneiras de mudá-la.
Minha chance veio pouco depois, quando me juntei a um grupo de amigos num pré-vestibular comunitário, que atende principalmente moradores de favelas na zona oeste do Rio. Fiquei lá por três anos, lecionando redação. Das melhores coisas que fiz nesta vida. Lá aprendi a ser professor, conheci grandes amigos e me receberam com um carinho e ternura que ainda hoje me emocionam. Vários dos meus alunos entraram em universidades, uma delas agora trabalha comigo, outro em frente e sempre aparece para um papo. Laços de afeto tão profundo são raros, ainda mais num país tão fragmentado num apartheid social e racial (a moça e o rapaz que citei são negros) como o nosso.
Algo que me marcou muito dessa experiência foi a percepção da capacidade quase miraculosa de aprendizado e crescimento pessoal das pessoas com quem convivi. Me irrita imensamente quando ouço alguém dizer que o povo brasileiro é burro, ignorante, isso ou aquilo. Bobagem. Vi jovens muito pobres, em condições difíceis, terem um desempenho extraordinário. Tudo o que precisam é de alguém que os apóie, acredite neles e os estimule a desenvolver seu potencial. Ajuda financeira não faria mal: perdi ótimos alunos que precisaram largar o curso para ganhar salário mínimo e colocar dinheiro em casa.
A certa altura na conversa falamos do filme “Abril Despedaçado”, no qual minha amiga cineasta trabalhou. Comentei que minha cena favorita é a da encruzilhada pela qual o personagem de Rodrigo Santoro passa várias vezes. No fim, ele escolhe o caminho diferente do habitual e toma a estrada que vai dar no mar, deixando para trás a rotina sufocante de miséria, violência e vinganças familiares que dominara sua juventude. Minha amiga riu e comentou que a produção do filme procurou por muito tempo uma encruzilhada para usar na cena e não encontraram. Até que ela simplesmente construiu uma, com um trator.
Moral da história: tome o caminho alternativo na encruzilhada. Se ele não existir, fabrique um. Creio que vale para os países, tanto quanto para as pessoas. Esta é minha reflexão neste dia em que celebramos nossa pátria desigual.
5 Comentarios:
Nem sei direito o que comentar. Quero apenas dizer que achei muito bonito o seu relato.
Puxa fazia tempo que nao lia seus posts, mas sempre que volto sao tao emocionantes! Este sentimento de humanidade anda tao raro ultimamente...
Caros Marcus e Gigi,
obrigado, fico feliz em saber que vocês gostaram. De fato, acho que nosso país está num momento onde as pessoas andam excessivamente voltadas para si mesmas. Para além de todos os problemas, me pergunto como essa gente faz para lidar com o tédio...
É Maurício,
faltou dizer que, às vezes, aquelas matérias que fazíamos sobre as tais comunidades da periferia não podiam sair no jornal de bairros (ou pelo menos na capa) porque aquela "não era a realidade do leitor". Bolas, em que mundo vive o leitor?
Abandonei o jornal sem resposta para essa e outras perguntas. Se a realidade se constrói dia a dia, o trabalho dos repórteres tem papel decisivo (mesmo que involuntário)na construção desse apartheid em que vivemos. E o leitor diria: apartheid, que apartheid?
Grande abraço
Rodrigo Cerqueira
É, Rodrigo. Lembro que toda vez que ouvi dos nossos ex-chefes a frase "essa pessoa não tem o perfil do jornal", isso se aplicava a algum(a) negro(a) que eu queria colocar na capa do Zona Norte.
Você já leu essa revista de domingo que o Globo lançou há alguns meses? Se ela circulasse em Manhattan, ainda seria elitista. No Rio de Janeiro, chega a ser cômica de tão deslocada da realidade...
Em todo caso, na quarta uma amiga querida vai dar palestra aí na UVV. E amanhã devo tomar um chope com o Leo, nosso amigo das aventuras em Cuba.
Abração
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