Como Traí Dostoiévski
Encontrei recentemente um amigo de infância que não via há muitos meses. A literatura sempre foi nosso principal assunto de Conspiração, portanto tratamos de nos atualizar no que estávamos lendo. Ele ficou um tanto chocado com minha lista: Vargas Llosa, Cortázar, Carlos Fuentes, Agualusa: “Estão todos vivos!” Nem tanto. O mestre argentino deixou este mundo há 20 anos, embora continue presente em nossos corações, ou pelo menos em nossas estantes.
Meu amigo é um apaixonado visceral pela literatura russa do século XIX, em especial por Dostoievski, que conhece como poucos. Seu espanto com minha opção pelos contemporâneos implicava o sentimento de que eu estava traindo os clássicos e escolhendo autores que eram mais políticos do que cultores das belas letras. Procurei responder:
“Você lembra do que Stendhal escreveu n´”A Cartuxa de Parma,” que falar de política num romance era como dar um tiro num concerto? E no entanto, ninguém descreveu melhor do que ele as angústias dos jovens após a queda de Napoleão, querendo subir na sociedade e esbarrando nos preconceitos aristocráticos. Hoje as desventuras de Julien Sorel soam como drama literário, mas na época eram nitroglicerina pura em termos de política partidária.”
Desenvolvi o ponto: o que os contemporâneos encaravam como político nos clássicos, nós tratamos como questões “existenciais” ou “filosóficas”. Dentro de certos limites, é claro. “Crime e Castigo” é uma tragédia sobre ambição e ética, não um documento sobre as más condições de vida dos estudantes em São Petersburgo (embora eu acredite que se o Czar tivesse um bom programa de bolsas de estudo, o problema mais sério de Raskolnikov seria passar na prova final). Do mesmo modo, os estupendos relatos de Vargas Llosa sobre o terrorismo e a ditadura militar no Peru, ou as metáforas de Cortázar a respeito da mediocridade da classe média na Argentina também extrapolam o limite do “aqui e agora” de suas sociedades e são um testemunho sobre a bizarra trajetória da humanidade por este planetinha azul.
Thomas Seltzer, um velho crítico literário, afirmou que o segredo da literatura russa era a combinação de ideais humanitários e fidelidade à vida. Adoro a fórmula. Fidelidade à vida significa estar de olhos abertos ao mundo, à poeira que chega das ruas, às alegrias e aos dramas do cotidiano. Ideais humanitários são a aposta de que a vida poderia ser algo melhor e que trazemos potenciais desconhecidos e não-realizados.
Tais talentos não são exclusivos de gênios barbudos escrevendo no alfabeto cirílico em algum sótão moscovita. Penso mesmo que hoje a América Latina concentra o que há de mais rico, diversificado e interessante em termos de literatura. Ideais humanitários andam em falta, o bom tom intelectual é o ceticismo cinzento deste início de século. Mas a Mestra Vida, a quem devemos vassalagem, se esparrama pelas ruas do Rio de Janeiro, Buenos Aires, Bogotá, Lima e Cidade do México, sempre em movimento e renovação.
6 Comentarios:
Ótima análise, muito original. Entre os contemporâneos que conheço melhor, posso aplicá-la a Saramago, por exemplo.
"Todos os Nomes" é uma crítica (política, também) à desindividualização da vida moderna, mas tem estofo para tornar-se atemporal e transcender ao momento existencial que vivemos.
Bela desculpa, Santoro. Mas o Fiódor ainda dá uma surra em todos desa sua lista aí. Ainda que o Lllosa dê tiros belíssimos e ensurdecedores.
Caro Igor,
o mundo não anda muito bem das pernas, mas a literatura e o cinema têm apresentado produções muito interessantes. Sempre um consolo.
Olá, Marcus.
Gostei bastante do "Ensaio sobre a Cegueira" e infelizmente não li "Todos os Nomes". Mas Saramago está longe de ser meu autor favorito. Acho que muitas vezes ele cai numa visão política maniqueísta e num sentimento de ser contra "tudo o que aí está".
Salve, Sergio.
Que meu amigo não me ouça (ou leia), mas passo por exemplares à venda d´"O Idiota", que ainda não li, e ele sempre fica atrás na lista para lançamentos recentes do Llosa, do Ian McEwan e do Gore Vidal. A cada estado de espírito, seu autor correspondente...
Abraços
Confesso, Santoro, que também atrasei O Idiota na fila (embora esteja curioso de lê-lo, depois que um amigo comparou o protagonista a certo senador paulista, que parece sempre pairar acima da confusão em torno, e está sempre por cima da carne seca).
E, caramba, tenho de discordar de novo de você. Gostei do Ensaio sobre a Cegueira, mas me pareceu o menos Saramago de todos.
O texto mais fluido parece uma concessão aos leitores com menos disposição de mergulhar nos sólidos blocos de frases que são a marca do véio. A alegoria da cegueira geral é a mais óbvia de todas as que ele fez (nada do lirismo e da originalidade da Jangada de Pedra, por exemplo)... enfim. Bom, também não li Todos os Nomes. Tarefa para as férias. Com O Idiota. Se algum Vargas Llosa ou Gore Vidal não atravessar a fila.
forte abraço.
Blog legal, parabéns! A política, se me atrai por sua importância para a vida social, também me cativa pela inesgotável mineração que nela se faz de excelentes motivos para o riso e a ironia. Há muito de exemplar nela! Saúde e paz! www.baratas2006.blogspot.com'
Salve, Sergio.
Realmente, não gosto muito do estilo barroco de Saramago. Talvez eu tenha ficado excessivamente exposto à objetividade dos leads jornalísticos.
Olá, Barata.
No meu caso, o que atrai na política é o drama humano, o choque de paixões e interesses. O aspecto cômico ou satírico para mim é secundário.
Abraços
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