quarta-feira, outubro 18, 2006

Sábado



Dezesseis de fevereiro de 2003 também foi importante para mim. Era o dia da manifestação global contra a guerra no Iraque. Estive em dezenas, senão centenas, de protestos políticos e aquele foi um dos melhores. Bom humor, gente legal, os mais velhos com lembranças das marchas anti-Vietnã. Pessoas que encontrei ao longo da passeata me ofereceram dois empregos (aceitei um, assistente de pesquisa), o que levou uma amiga que estava comigo a me perguntar: “Isso acontece sempre com você?”. Sempre, não.

A história política às vezes se condensa em um único dia de alta intensidade, que funciona como um catalisador para tensões sociais e mudanças latentes. Onze de setembro. Dezoito de Brumário. Por aí vai. O escritor inglês Ian McEwan escolheu 16 de fevereiro de 2003 para ambientar seu excelente romance “Sábado” e nos dar a melhor obra de arte sobre o mundo da “guerra ao terror”.

“Sábado” é protagonizado por Henry Perowne, um bem-sucedido neurocirurgião de meia idade. Ele vive em Londres com mulher e dois filhos chegando à idade adulta. Henry é um homem racional e contido, acredita na ciência e no poder da técnica médica. Seu contraponto vem dos filhos, que escolheram carreiras artísticas na música e na poesia. Quando o sábado começa, Henry está preocupado em organizar um jantar para a filha, que volta para casa após seis meses numa universidade francesa e quer se reconciliar com o avô materno, um poeta celebrado e egocêntrico.

No entanto, dois acontecimentos irão perturbar a ordem do mundo de Henry, e mostrar a ele que o caos e a violência estão mais próximos do que parecem da rotina tranqüila da alta classe média européia. O primeiro é o pouso de um avião em chamas que ele vê de sua janela (Acidente? Terrorismo?). O segundo é um acidente banal de trânsito que tem conseqüências inesperadas e de grande impacto.

Ao longo do sábado, a manifestação contra a guerra entra no cotidiano de Henry, atrapalha seus deslocamentos pela cidade e força-o a pensar sobre o conflito. Ele é favorável à invasão do Iraque, influenciado pela amizade que fez com um professor torturado pelo regime de Saddam. Sua filha o questiona e levanta tudo que pode dar errado no Oriente Médio com a guerra. Ao fim o próprio Henry se pergunta o que um médico que vivesse em 1903 poderia prever sobre os horrores do século XX. O que nos aguarda neste que mal começou? Cem anos de choques religiosos?

O início do livro é ruim, com muitos detalhes técnicos sobre neurocirurgia, mas aos poucos a trama engrena e as últimas 50 páginas são primorosas. “Sábado” não tem frases de efeito, conquista o leitor pela riqueza das relações humanas entre os protagonistas.

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Algumas palavras sobre o Nobel de literatura de 2006: nunca li o poeta turco Orhan Pamuk. Uma amiga que o ouviu na feira literária de Paraty gostou dele. Mérito poético à parte, o senso político da academia sueca continua afiado: premiar Pamuk em meio às controvérsias sobre a entrada da Turquia na União Européia e aos conflitos entre muçulmanos e cristãos é tomar posição em favor do diálogo entre culturas e religiões. No estado atual do mundo, já é muito.
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