Argentina: memória e justiça
Nunca Mais
Na terça-feira a Suprema Corte da Argentina declarou inconstitucionais as leis de anistia aos militares que cometeram seqüestro, torturas e assassinatos durante a mais recente ditadura daquele país, entre 1976-1983. O argumento dos juízes é que os pactos internacionais de direitos humanos assinados pela Argentina invalidam a legislação que protegia os militares. Estima-se que 30 mil pessoas foram assassinadas na ditadura por motivos políticos. Desconheço as estimativas para os que foram presos e torturados.
Na Argentina, a ditadura caiu de modo muito mais brusco do que no Brasil, onde houve uma transição "lenta, gradual e segura" de 10 anos. A rápida virada para a democracia em nossos vizinhos se deu, claro, pela derrota humilhante que o regime autoritário sofreu na guerra das Malvinas. Não sei se é coincidência, mas a decisão da Suprema Corte vem no mesmo dia - 14 de junho - em que o conflito terminou. O simbolismo, mesmo que acidental, é forte.
A junta militar que governava a Argentina e levou o país a uma guerra desastrosa já havia sido julgada e condenada, ainda no calor da derrota. Mas os processos contra os oficiais de médio e pequeno escalão, que conduziram a rotina das torturas e da repressão, foram interrompidos no governo Alfonsín, depois que o presidente se apavorou com as freqüentes rebeliões dos militares. A jovem democracia argentina se rendeu ao medo e promulgou as Leis da Obediência Devida e do Ponto Final.
De lá para cá, muita coisa mudou. O trabalho das organizações da sociedade civil na Argentina foi exemplar em denunciar os crimes da ditadura, principalmente através das Mães e Avós da Praça de Maio, mas também por entidades como Anistia Internacional, Human Rights Watch, Organização dos Estados Americanos e ONU. As campanhas renderam um prêmio Nobel da Paz a um dos principais ativistas (Adolfo Pérez Esquivel) e um Oscar de melhor filme estrangeiro a um drama sobre desaparecidos ("A História Oficial").
A batalha pelos corações e mentes em torno dos direitos humanos foi ganha. É significativo que mesmo nos piores momentos da crise de 2001 não tenha havido apoio para um golpe militar. O presidente Kirchner e sua mulher foram presos políticos. Entre as reformas que introduziu está a renovação da Suprema Corte (manchada por escândalos de corrupção na era Menem) e a transformação do mais infame centro de torturas, a Escola de Mecânica da Marinha, num Museu da Memória.
A Argentina e até mesmo o Chile, cheio de órfãos de Pinochet, deram passos importantes para acertar as contas com o passado. No Brasil, o governo Lula capitulou diante dos militares e até demitiu o ministro da Defesa que se opôs a eles. Vale lembrar que nosso país é signatário dos mesmos pactos internacionais de direitos humanos que a Argentina. Se lá os acordos invalidaram as leis de anistia, por que não aqui?
3 Comentarios:
Maurício, parabéns pelo post. Muito bom. Tenho uma "teoria": talvez os 10 anos da abertura "lenta, gradual e segura" seja uma das razões desse mesmo tipo de abertura ter acontecido na Argentina e no Chile e não aqui. Se isso for verdade, os 10 anos teriam servido como um sedativo para as pulsões por mudanças e denúncias dos opressores. Que achas?
Caro Luiz,
obrigado pelos comentários. Concordo com você: 10 anos de transição é bastante tempo para que muitas das demandas por justiça esfriassem.
Também pesa o fato de que a ditadura brasileira foi bem menos sanguinária do que suas contrapartes chilenas e argentinas. Menos vítimas (e parentes de vítimas) para cobrar reparações.
É possível ainda que a sociedade civil brasileira seja menos organizada do que nos países vizinhos. No caso da Argentina, acredito que não há dúvidas quanto a isso.
Aliás, note-se a permanência da tortura como prática cotidiana no Brasil. Cada vez que um preso aparece apanhando na capa do Globo, os leitores têm orgasmos e mandam cartas elogiando a ação "dura" da polícia.
Abraços,
Eu acho que no Brasil a resignação do povo é que é determinante. Infelizmente vivemos no país das fofocas e pegadinhas, o povo não se interessa por esse tipo de coisa e por isso não há nenhuma mudança. Claro que existem poucas e honrosas execessões, mas acho que a "cordialidade" do povo brasileiro é extremamente prejudicial ao País. Por isso somos a democracia sem povo, ou não ?
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