quinta-feira, setembro 30, 2004

Educacao e Democracia

Desde que o liberalismo classico se juntou a ideia do estado democratico, (especialmente na segunda metade do seculo XIX com John Stuart Mill), uma das suas ideias basicas era a de que educacao importava. Uma sociedade de valores liberais necessita cidadaos educados. Democracia representativa necessita cidadaos educados. Sem eles, fica impossivel estabelecer a relacao entre governados e governantes, nao ha legitimidade, o vinculo do estado de direito se quebra. Traduzindo em linguagem corrente: se o cara nao sabe o que significa o estado, as leis e as eleicoes, ele serah manipulado, e portanto sua participacao serah ineficaz e perigosa. A tal "tirania da maioria" seria o grande problema da sociedade.

Quando Marx ("o ultimo dos iluministas!" diria meu companheiro Oscar) escreveu, ele deu uma mexida na ideia, apesar da questao da educacao ainda ser central. Dizia ele que qualquer educacao fornecida pelo estado burgues apenas reproduziria a ideologia do mesmo. Entretanto, eh preciso educar para revelar as mentiras da falsa consciencia, fazer com que a classe trabalhadora tenha consciencia da "classe em si," garantindo assim os esforcos para a mobilizacao e a posterior revolucao. Enfim, nao ha revolucao sem educacao.

Independentemente do "fim ultimo" que voce imagine para a sociedade, a nao ser que voce seja um conservador bastante convicto (o mundo estah cheio deles, infelizmente), educacao importa. Importa ainda mais no contexto atual: em um mundo globalizado, parafraseando Orwell, quem controla a educacao controla o futuro. Por isso fiquei tao triste (mas nao surpreso) ao ler a noticia de que um em cada quatro brasileiros nao eh capaz de entender um texto escrito.

Eu me lembro do Cristovam Buarque (ainda lembram dele?) quando dizia que a Revolucao no Brasil aconteceria quando todos pudessem ler -- de verdade, LER. Ainda falta muito amigos. Mas sem desanimo: Avante! O caminho nos espera!

Kerry-Haters

Amigos, desculpem pela ausencia de noticias no blog. Essas ultimas semanas tem sido caoticas: as provas se aproximam, a tensao aumenta, o trabalho acumula. Mas ainda estou com a cabeca fora d'agua.

As eleicoes norte-americanas entram em sua fase final e nao vejo muitas esperancas para John Kerry. Alias, estou escrevendo para dizer que nao sou soh eu: os americanos democratas tambem estao achando que a coisa anda meio perdida. E boa parte da culpa eh terem escolhido um candidato tao pouco carismatico quanto Kerry. Em materia de carisma, Kerry compete duramente com Al Gore e Jose Serra. Os democratas estao apostando todas as suas fichas nos debates televisivos que virao.

A proposito, para quem estah interessado nas eleicoes norte-americanas, hoje as 9:00 da noite (10:00 da noite no Rio) tem o primeiro debate ao vivo entre W e Kerry. Quem viver verah.

terça-feira, setembro 28, 2004

Arvore da Vida


Esta eh uma Arvore da Vida. Elas sao bastantes tradicionais no Mexico, onde tirei a foto em marco de 2004, quando estive na Cidade do Mexico por dez dias. O Mexico eh um pais fascinante em suas manifestacoes populares e as Arvores da Vida sao feitas manualmente com barro. A que estah na foto eh imensa e estah no centro de um povoado extremamente caracteristico do pais. Como essa eh a primeira foto do blog e como o clima anda pesado para todos, nada mais apropriado do que colocar um simbolo de sorte, renovacao e esperanca em um mundo melhor. As pequenas coisas farao um mundo melhor, tenho certeza.  Posted by Hello

O País Sob Minha Pele

Na semana passada a tia da Patrícia – amiga querida de muitos anos, colega da faculdade e de trabalho – me emprestou “O País Sob Minha Pele”. O detalhe é que não conheço a tia da Pat, mas ela intuiu pelo que ouviu falar sobre mim que eu iria gostar do livro e acertou em cheio. São as “memórias de amor e guerra” da Gioconda Belli, uma poeta nicaragüense que teve participação de destaque na Revolução Sandinista.

Já havia lido um de seus romances, “A Mulher Habitada”, que conta a história de uma jovem da elite nicaragüense que adere ao sandinismo. Imaginei que tivesse muito de autobiográfico e as memórias confirmaram a impressão. Gioconda escreve bem e com sensibilidade, descrevendo uma trajetória que não é assim tão diversa do que houve no Brasil com a geração dos anos 60 – um de seus maridos, inclusive, foi um exilado brasileiro.

Para mim, o melhor do livro é a riqueza das experiências latino-americanas da autora, suas descrições do tempo em que viveu na Nicarágua, México, Costa Rica e das viagens e aventuras pelo Panamá e Cuba. O envolvimento dela com a política foi profundo, gostei de sua análise das dificuldades do sandinismo (particularmente o autoritarismo dos irmãos Ortega, líderes do movimento) e da derrota da revolução diante da pressão dos EUA e da guerra civil. Há várias anedotas interessantes, não é qualquer mulher que esnobou cantadas de Fidel Castro, Brizola e Osmar Torrijos (o presidente do Panamá que convenceu Carter a devolver o Canal).

Fecho com uma história brasileira. Estou fazendo um treinamento de software livre no trabalho e hoje estávamos mexendo na planilha, brincando com umas imagens do globo terrestre que encontramos na galeria. Uma delas mostrava o Brasil bem no centro do planeta e o estagiário da firma da consultoria de informática escreveu sob a imagem: “O país dos falsos ideais”. Nesse pequeno gesto, está o desabafo de toda uma geração.

Nada de novo no front hospitalar do meu tio.


segunda-feira, setembro 27, 2004

Mais (e más) notícias

A cirurgia do tio Ricky correu muito mal. Ele precisava fazer cinco (!) pontes de safena, mas seu coração está tão debilitado que os médicos só conseguiram completar três. Seu estado de saúde voltou a piorar. O clima lá por casa está ruim, com sobressaltos a cada telefonema. É curioso como todo mundo só fala da morte em sussurros, como se estivéssemos numa igreja.

Meu irmão contou os detalhes do problema com o hospital. Segundo a direção, o plano de saúde de nosso tio ainda não tinha completado a carência necessária para a operação. Quando os diretores souberam que minha tia entraria na justiça, propuseram um acordo: a conta de R$40 mil sairia por R$8 mil. O desconto fez meu irmão desconfiar que o hospital estava mentindo e que o plano cobria a cirurgia.

“Você não faz idéia de como aqueles caras são filhos da puta, eles ficavam caçoando da nossa tia, dizendo que era só passar o chapéu e pegar cemzinho de cada parente para pagar a conta”, disse meu irmão. Na defensoria pública, lhes informaram que no caso de emergência, como a do infarto, a carência tem prazo máximo de 24h após a assinatura do contrato. Quer dizer, o hospital tinha tentado um golpe. De fato, o juiz deu ganho de causa, pelo menos provisoriamente, a minha tia.

Meu irmão ficou tão enfurecido com os diretores do hospital (que é uma entidade religiosa, supostamente sem fins lucrativos) que resolveu sair do plano de saúde de lá – ele tinha o mesmo que tio Ricky. Acontece com a saúde o mesmo que com a segurança: a classe média e a elite vivem na ilusão de que, pagando, vão ter acesso a esses bens e serviços. E na hora H, se descobrem apenas um pouco mais protegidos do que o resto. Cidadania ou é para todos ou é para ninguém.

Em todo caso, a rápida e eficiente atuação do meu irmão me fez lembrar de uma frase do personagem de Tom Hanks em Filadélfia, quando perguntado o que mais gostava na profissão de advogado: "É que às vezes - não com freqüência, mas em ocasiões inesquecíveis - ela é uma ferramenta para se fazer justiça."

domingo, setembro 26, 2004

Cidadania Regulada (e Hospitalizada)

Os últimos dias foram bastante agitados por conta dos problemas de saúde do meu tio. Na sexta-feira, ele estava desenganado, sofreu inclusive uma extensão do primeiro infarto. No sábado, começou a melhorar e foi operado novamente. Agora esperamos, mas a situação parece menos preocupante.

Os problemas mais sérios vieram por conta de sua situação financeira, já que o plano de saúde não cobre suas despesas. O hospital forçou minha tia a assinar um documento onde ela se compromete a pagar pela internação e pela cirurgia. O valor é absurdo, já ultrapassa R$40 mil, é claro que ela não tem como bancar nem uma fração disso.

Ontem, com a ajuda do meu irmão, ela procurou a defensoria pública em busca de uma solução para o caso. Segundo a defensora, as perspectivas são favoráveis, porque era uma situação de emergência etc. Foi uma enorme correria em busca de certidões, atestados, comprovantes de renda etc. Fui dormir por volta de meia-noite e os dois ainda estavam na rua indo e vindo.

Um dos documentos que teve que ser apresentado é um atestado médico descrevendo o estado do meu tio. Não é coisa das mais fáceis de se obter, ainda mais para um processo jurídico contra o hospital (o plano é do Hospital Silvestre, em Santa Teresa) mas como meu pai é médico, valeu-se dessa condição para conseguir o documento - se houvesse recusa, ele poderia acionar o Conselho de Medicina no caso.

O que me fica de toda essa crise é uma constatação de como o acesso aos direitos de cidadania no Brasil, longe de ser republicano (= disponível para todos) é restrito a quem pertence a uma corporação profissional, quase como num clube ou numa máfia. Cidadania regulada, como diz mestre Wanderley Guilherme. Sem os conhecimentos jurídicos e médicos do meu irmão e do meu pai, meus tios estariam nas mãos do hospital.


Em meio a esse caos, vale destacar o trabalho da defensoria pública. Melissa, lembro da nossa discussão sobre o filme "Justiça" - você tem razão quanto ao ótimo desempenho da DP, e de como poucas pessoas sabem disso.

sábado, setembro 25, 2004

Los Justos

Un hombre que cultiva un jardín, como quería Voltaire.
El que agradece que en la tierra haya música.
El que descubre con placer una etimología.
Dos empleados que en un café del Sur juegan un silencioso ajedrez.
El ceramista que premedita un color y una forma.
Un tipógrafo que compone bien esta página, que tal vez no le agrada
Una mujer y un hombre que leen los tercetos finales de cierto canto.
El que acaricia a un animal dormido.
El que justifica o quiere justificar un mal que le han hecho.
El que agradece que en la tierra haya Stevenson.
El que prefiere que los otros tengan razón.
Esas personas, que se ignoran, están salvando el mundo.


Jorge Luis Borges
(postado especialmente para a MD)

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as nações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócio do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, setembro 24, 2004

Infarto

Ontem à tarde o tio Ricky teve um infarto e está internado no CTI. Seu estado é bastante grave e há risco de morte. Ele tem todas as características para ter problemas de saúde: vida sedentária, alto nível de estresse, péssima alimentação e automedicação freqüente.

Há algumas semanas ele procurou meu pai pedindo um atestado para começar na musculação. Depois de ver os exames, meu pai lhe deu uma bronca: "Você não precisa de academia, precisa de um hospital". Mesmo assim ele foi para a malhação. Na quarta-feira, teve um princípio de infarto, meu pai novamente lhe disse que tinha que ser internado. Ele tomou um remédio por conta própria, se sentiu melhor e ficou em casa.

Uma das principais características da visão do mundo dos Santoro é que se alguma coisa de ruim acontece a você, a culpa é sua. Quem mandou não ser bom o bastante. O tom das conversas lá em casa nestas horas faria os generais nazistas parecerem pessoas cheias de tolerância e de compreensão. No fundo, é um tipo de mecanismo de defesa ("se eu agir certo, tudo sairá bem comigo") para tentar se proteger psicologicamente dos acasos, azares e absurdos desta vida.

Como se não bastassem os problemas de saúde do tio Ricky, ainda há questões financeiras bastante sérias, o plano de saúde não cobre a operação da qual ele necessita e o hospital custa R$750 ao dia. O Brasil não é para amadores, uma bobeada que você dê num planejamento com relação à escola, saúde ou aposentadoria pode ter conseqüências gravíssimas. Bem-vinda ao mundo dos pobres, classe média.

Aguardo os acontecimentos, mas segundo meu pai me explicou, a situação médica é muito, muito ruim. Espero o pior.

Comparacao Imaginaria

E se os Estados Unidos fossem o Iraque? Juan Cole compara. (Nota: O blog do Prof. Cole eh leitura obrigatoria para quem tem interesse em seguir a guerra do Iraque com comentarios interessantes.)

quinta-feira, setembro 23, 2004

Lições de Lessa

A semana está sendo puxada, estou atolado em relatórios, reuniões, preparações de textos disso e daquilo, mudança e arrumação de sala. Haja papel e disposição! O melhor destes dias foram duas aulas no doutorado com o professor Renato Lessa, por quem minha admiração cresce a cada dia.

Na terça-feira tivemos outra sessão do seu curso “Pensar a Guerra”, para discutir o livro “Guerras Justas e Injustas”, do filósofo americano Michael Walzer. Após um debate inicial sobre os conceitos e interpretações do autor, a aula virou um bate papo sobre temas ligados a conflitos internacionais, e Lessa dissertou a respeito do nacionalismo:

“Toda história nacional deveria ser proibida para menores de 35 anos. Vejam os hinos, por exemplo, é uma violência só. Na Copa do Mundo eu lia as legendas e ficava horrorizado, até que veio um jogo com a Dinamarca. É um país simpático, um exemplo de resistência pacífica ao nazismo. Daí começou o hino e a letra falava em quando o sangue das crianças do inimigo manchar a neve branca...”.

No dia seguinte tive outra aula com ele, numa matéria sobre clássicos das ciências sociais. Foi sobre o livro mais sombrio de Freud, “O Mal-Estar na Civilização” e rendeu uma ótima discussão a respeito desse bicho complicado que é o ser humano, e de como a felicidade é traiçoeira e difícil. A aula foi incrivelmente bem-humorada, dávamos gargalhadas. Como observou meu orientador, que coordena essa matéria, “Temos que rir quando falamos de Freud, porque ele nos diz coisas muito sérias... De outra maneira não conseguiríamos lidar com elas.”

Um assunto puxa outro e dos problemas da vida em sociedade Lessa citou um autor que pretendo ler em breve, Etienne de la Boétie e seu “Discurso sobre a Servidão Voluntária”. Ele era um nobre do século XVI que morreu muito jovem, mas a tempo de escrever esse livro onde se pergunta por que diabos as pessoas aceitam governos injustos em troca da “segurança de viver miseravelmente”.

Segundo Lessa, Boétie vê a política como uma ordem marcada pela lógica inevitável das disputas de poder e da violência, e afirma que a solução é construir uma sociedade, uma esfera de relações marcada por outros valores. Ele destaca principalmente a necessidade da amizade como um contraponto à selva política. Gostei. A conferir.

segunda-feira, setembro 20, 2004

"As Sombras sao Minhas"

Desde que cheguei aqui, as construcoes nao param. Eles continuam ampliando e construindo. O campus se divide em duas partes. Na parte oeste, o estilo eh gotico. Ha uma catedral no centro da universidade e os predios sao todos no mesmo estilo. Na parte leste, o estilo eh classico, com colunas gregas e domos em cima das construcoes. Apesar de ter uma atmosfera meio Disneylandia (os predios sao novos, o que faz o gotico parecer mais fake ainda), nao posso negar que eh impressionante para quem visita.

Descobri recentemente uma historia muito interessante. O arquiteto que projetou os dois campi na decada de 20 chamava-se Julian Abele. Ele era sulista e foi para a Pensilvania estudar arquitetura. Ele se destacou, era um brilhante aluno, seus desenhos criativos e grandiosos. Passou inclusive um tempo em Paris, na Ecole des Beuax Arts. Mas havia um problema no caminho de Abele: era negro em um pais segregacionista.

Quando o escritorio em que trabalhava como chefe de design foi contratado pela Universidade para projeta-la, Abele era "the man for the job". Projetou tudo, dos lay-outs aos detalhes especificos. Mas nao pode assina-los. Pela lei da Carolina do Norte, "pessoas de cor" nao podiam ser responsaveis por trabalhos profissionais. Seu nome nao apareceu em qualquer linha da historia. Criou uma obra impressionante, mas morreu de desgosto nos anos 50 pela total falta de reconhecimento. Perguntado por alguem o que ele tinha projetado em Duke, ele declarou: "as sombras sao todas minhas".

Sua historia foi recuperada por acaso. Quantas historias como essa se perderam no tempo? Muitas, certamente. Uma pena.

domingo, setembro 19, 2004

Quem sabe o príncipe virou um sapo

Ontem foi a festa de formatura da minha prima - estava na despedida de uma amiga que vai para Londres, de modo que escapei dessa, mas me contaram tudo. Para decepção geral, descobriu-se que o namorado rico da outra prima é apenas um pacato cidadão de classe média que herdou uma cobertura: “A primeira coisa que a mãe dele me disse é que tinha comprado a camisa no camelô”, comentou minha mamma, indignada. Para meu irmão, "Os móveis eram uma porcaria".

O ponto inusitado da noite foi que o príncipe encantado simplesmente sumiu no meio da festa e se trancou no quarto, com a desculpa mais do que batida da dor de cabeça. Segundo consta, o real motivo foi que sua mãe cria o filho da empregada (“É o meu pretinho”, ela explicou) e o namorado da minha prima tem enorme ciúmes dele. Quando o menino chegou, ele saiu da festa. “Infantil, deve ser uma mala”, no julgamento implacável do meu pai.

Hoje é o concurso para a Abin. Meu irmão vai fazer a prova, junto com vários dos meus alunos e com meu advogado (depois explico porque preciso de um, é claro que tem a ver com as trapalhadas da minha família). Estou me sentindo rodeado por espiões potenciais, será que devo destruir meus documentos comprometedores?

Deu na Folha de S. Paulo que a PM paraense se recusou a desocupar a fazenda do meu avô. As terras ficam perto de Eldorado de Carajás, onde houve a chacina, e os policiais estão relutantes em se envolver em outra. A PF também tirou o corpo fora, dizendo que não tem agentes em número suficiente. A reportagem afirma que o Exército poderá intervir – curiosamente, a fazenda é na região em que atuou a guerrilha do Araguaia.

Acho que as Forças Armadas deviam se preocupar mais em nos defender de uma invasão de paraguaios ou marcianos do que correr atrás de terras que estão fazendo todos os meus tios brigarem entre si pelo direito de herança. Pensando bem, o MST faria um favor resolvendo de vez essa questão.

sábado, setembro 18, 2004

Os Sonhadores

Tive a chance de assistir em DVD ao novo filme do Bernardo Bertolucci, "The Dreamers". Geralmente acabo de assistir a um filme e tenho algum julgamento a respeito: pelo menos o "bom", "ruim" ou "mais ou menos". No entanto, alguns filmes desafiam minha capacidade de julga-los e este eh um desses.

O filme conta a historia de um jovem americano que vai parar em Paris em 1968 para estudar frances e acaba se apaixonando por cinema e frequentando diariamente a "Cinematheque Francaise", na epoca o templo da Nouvelle Vague. Em uma das sessoes ele conhece um casal de gemeos e passa a ter todo tipo de experiencia com eles (= sexo, drogas e rock and roll). No meio disso tudo, estoura o famoso protesto estudantil do "eh proibido proibir".

O filme esbanja nostalgia pelos anos 60, pelo idealismo e inocencia de quem tinha certeza de que a revolucao era pra ontem. O filme eh maravilhosamente filmado e Bertolucci faz uma homenagem fantastica a cidade de Paris. No mais, os personagens nao sao tao profundos assim e a historia nunca chega a um lugar especifico. Provavelmente isso eh proposital, mas fica uma sensacao estranha quando o filme acaba. Mas bons filmes sao assim mesmo, ne? Entao me decido e digo que eh bom filme e vale pena assistir.

quinta-feira, setembro 16, 2004

Montanha Fria, Carolina do Norte

Mais uma vez um furacao se aproxima. Eh realmente tragicomico – quando um deles passa devastando tudo, outro jah estah esperando na fila para mais destruicao. Chamem de karma ou de furia divina, os EUA estao tendo muitos problemas com relacao ao seu clima.

Desta vez, eh impossivel nao rir do nome da criatura malefica –o Ivan. Vai chegar por aqui na manha de sabado e, mais uma vez, volto a me esconder ateh que passe. Amigos, nao se preocupem: se eu for pelos ares e nao voltar a escrever, o Mauricio assume o blog.

E quem jah estah devastando Barbados? Uma moca, amiga da Frances -- a Jeanne. Que saudades do Rio de Janeiro!

quarta-feira, setembro 15, 2004

Os Cães da Guerra

Durante o apartheid, as Forças Armadas e a polícia eram, naturalmente, o principal braço da repressão. Suas atividades se extendiam ao exterior: a África do Sul ocupou durante décadas a vizinha Namíbia, invadiu Angola e realizou diversas atividades ilegais em outros países, atacando movimentos de libertação e anti-apartheid. Muitos desses soldados e policiais não se conformaram em ver os negros entrando em suas organizações e preferiram pedir demissão. Seu único talento é o uso da violência.

Resultado: alguns viraram ladrões de banco e traficantes, outros formaram firmas de segurança privada e companhias mercenárias, como as que existiram na Europa há 300 ou 400 anos. Os soldados da fortuna sul-africanos são o contingente mais numeroso no Iraque (e a julgar pelo modo como tratam seus próprios compatriotas, pobres iraquianos!) e também alugam seus serviços para quem pagar mais.

Há poucas semanas um grupo deles se meteu numa trama rocambolesca para derrubar o governo da Guiné Equatorial, um país rico em petróleo. A aventura foi financiada por empresários britânicos, liderados pelo filho da Margaret Tatcher, Sir Mark. Esse tipo de trama ocorreu dezenas de vezes no passado e inspirou até um romance de Frederic Forsyth.

A questão é que a África do Sul mudou e seus sofisticados serviços de espionagem estão nas mãos da elite negra. Eles identificaram o complô e os mercernários foram presos numa escala no Zimbabwe. Como esse país é uma ditadura, estão todos sob tortura. Suas mulheres fazem passeatas pedindo respeito aos direitos humanos, mas como muitos pertenceram aos DOI-Codis locais, foram rechaçadas com hostilidade pela esquerda. Na África, as feridas dos regimes autoritários ainda estão abertas e sangram.

O filho de Tatcher foi agredido e roubado na prisão, levaram suas roupas e objetos pessoais. O juiz determinou uma fiança milionária, paga por mamãe. Sir Mark está em prisão domiciliar, sem poder deixar o país.


terça-feira, setembro 14, 2004

Laços de Família

A fazenda do meu falecido avô paterno (Rocha, não Santoro) foi invadida pelo MST no fim de semana. Os novos ocupantes descobriram que vovô mantinha um cemitério clandestino em suas terras.

Meu pai tentou justificar dizendo que no interior do Pará é comum que as pessoas não tenham registro civil e sejam enterradas na fazenda mais próxima. “É claro”, respondi, “E de quebra se aproveita para colocar ali um fiscal do trabalho, um vereador da oposição, etc” - vovô foi prefeito de Marabá pela ARENA, o partido de apoio à ditadura militar.

Cemitérios clandestinos são uma tradição familiar dos Rocha. O irmão do meu avô também tinha um, apareceu até no Jornal Nacional. Os Santoro também aprontam das suas, mas pelo menos a herança mais prezada do clã continua a ser a receita de turditi, um fantástico doce italiano (um tipo de rosquinha banhada em mel) que minha tia-avó faz como ninguém.

Por que Machado de Assis eh unico?

As vezes eu nao consigo entender os americanos. Levou um pouco mais de cem anos para descobrirem que Machado de Assis estah entre os mestres da literatura moderna mundial. (Nota: nesse ritmo, talvez daqui a uns 50 anos descubram que Santos Dumont inventou o aviao, que o futebol eh o esporte mais popular do mundo e que a capital do Brasil eh Brasilia, mas isso eh uma outra historia). Como eu dizia, ser periferia eh fogo: as ideias estao mais assimetricas do que nunca.

O que aconteceu foi que um maluco teve a ideia de traduzir para o ingles o segundo livro do Roberto Schwartz, "Um Mestre na Periferia do Capitalismo". A atual cena literaria americana nao anda bem das pernas, ha uma falta brutal de boas ideias. Uma coisa leva a outra: leram o Schwartz, descobriram o Machado e virou moda. "Como um escritor na periferia do mundo conseguiu conceber uma obra-prima como 'Memorias Postumas de Bras Cubas'?" perguntam-se todos. Ateh o enfant-terrible da critica literaria norte-americana, Harold Bloom, descobriu a polvora e declarou recentemente que Machado eh genial.

Mas por que tudo isso agora? O grande barato do Machado eh que ele eh extremamente brasileiro em sua critica mordaz e seu entendimento de como a nossa sociedade opera com seus constantes dilemas (corrupcao, clientelismo e paternalismo convivem com a eterna capacidade de conciliacao de opostos). No entanto, quem disse que essas coisas sao tao brasileiras a ponto de nao serem entendidas por todos? Schwartz captura bem essa dialetica, essa tensao entre o particular e o universal. Por que nao podemos falar do mundo sob uma perspectiva brasileira? Por que nao podemos criar nossa propria visao de como o mundo funciona a partir de onde estamos? Questoes assim sao a chave para criarmos algo novo vindo da periferia de um capitalismo cada vez mais selvagem e assimetrico.

Que tal voltarmos a ler Machado de Assis?

domingo, setembro 12, 2004

Pontes sobre o Atlântico

A conferência foi ótima. Houve uma imensa boa vontade dos participantes e a troca de experiência foi intensa, para não falar da empatia entre as pessoas. Como membro do secretariado da organização, trabalhei bastante - 10, 12, 14 horas por dia. Em eventos desse tipo há sempre muito o que fazer, além do fato de que eu era um dos poucos a falar as três línguas da conferência (inglês, espanhol, português) e portanto fui muito solicitado como intérprete.

Isso me deu momentos de grande realização pessoal. Por exemplo, uma sindicalista indiana vinha há meses tentando entrar em contato com o movimento piquetero da Argentina, pois ambos lidam com a questão do desemprego. No entanto, essa tentativa foi falha pela falta de indianos que falassem espanhol ou de argentinos que dominassem o inglês. Como fiquei amigo das duas delegadas, elas me pediram para intermediar as negociações. Resultado: piqueteros argentinos e sindicalistas indianos farão um evento conjunto em Buenos Aires.

Entrevistei a delegada indiana para a revista do Ibase. Num bar de hotel na África do Sul, brasileiros, indianos e irlandeses conversam sobre política e cooperação internacional. Há algo de profundamente simbólico nisso, de novas alianças diplomáticas que se formam neste início de século XXI. A propósito, os africanos vêem com muita admiração as transformações que se passam na América Latina. A pergunta que mais ouvi, como de costume, foi "Como está o governo Lula?". Nosso presidente popstar desperta mais interesse do que o Pelé.

Na África, como no Brasil, tudo termina em música. A conferência se encerrou com uma canção linda, todos aplaudiam marcando o ritmo. Os delegados africanos cantavam a letra, num dos idiomas locais, de modo que é uma música bam conhecida no continente. Perguntei a um amigo da África do Sul o que ela significava e ele me respondeu tranqüilamente, "Oh, é algo como Minha mãe fica feliz quando luto contra o capitalismo". Caí na gargalhada. O encerramento foi tão bonito que até as intérpretes choraram em suas cabines. Os três secretários do evento fomos homenageados e subimos à tribuna para receber um CD com músicas de protesto africanas. Que está tocando enquanto escrevo estas palavras, é lindo, uma mistura de jazz, gospel e ritmos locais!

Comemoramos com um jantar fantástico no Moyo, um dos melhores restaurantes da África. Ótima comida, ótima conversa, ótima companhia. A dança e a música foram tão contagiantes que os funcionários locais se juntaram aos brasileiros (e a uma ou outra argentina renegada). É impossível não adorar um povo assim e torcer para que as pontes sobre o Atlântico que começamos a construir tenham vida longa!

Apartheid Blues

O apartheid não acabou. Seria ilusão pensar que em apenas 10 anos, desde a libertação de Mandela e a democratização da África do Sul, um sistema que durou meio século estaria destruído. Brancos e negros trabalham juntos, mas sente-se uma certa tensão no ar e ocasionalmente um branco manifesta opiniões abertamente racistas - um dono de lanchonete disse a algumas brasileiras que os negros eram uns animais que comiam com as maõs e que ele só se mantinha vivo porque tinha armas.

Os negros na África do Sul são muito orgulhosos de sua história de resistência e falam o tempo todo sobre os pontos altos desse processo - o massacre de Sharpville, os conflitos em Soweto. Visitar o Museu do Apartheid é experimentar intensamente esse legado de heroísmo. Ao comprar o ingresso, o visitante é classificado como "branco" ou "não-branco", com entradas separadas. Era incrível ver os latino-americanos (todos carimbados como não-brancos, salvo uma ou outra argentina) apavorados com isso, com medo de não encontrar os colegas dentro do museu.

A arquitetura lembra uma prisão ou campo de concentração. A exposição é muito bem montada, com vídeos, fotos, armas, depoimentos e testemunhos. Conta desde as primeiras leis de segregação, no início do século XX, até seu colapso. O apartheid foi obra principalmente dos colonos de ascendência holandesa, os afrikaners, que curiosamente haviam sido uma das primeiras vítimas dos campos de concentração durante a Guerra dos Boêres (c.1905) contra os ingleses. A visita é tocante, mas não deprimente, porque termina como uma celebração da liberdade e do espírito guerreiro. Amandla! (algo como força ou garra), como dizem os sul-africanos.

Fora de seus muros, a cidade e o país continuam divididos. Os negros ascendem lentamente à classe média e às posições de poder. A maior parte dos profissionais negros de nível superior são imigrantes de outros países africanos (só do Zimbabwe são 3 milhões). Nos próprios eventos públicos da conferência tivemos a preocupação de colocar brasileiros negros como oradores - muito embora os organizadores do evento fossem todos brancos...

A cidade mais violenta do mundo

Uma moçambicana de quem fiquei amigo na conferência me disse durante um jantar que Johannesburg é a cidade mais violenta do mundo (descontando-se locais em países em guerra, como Iraque ou Chechênia). De fato, o nível de insegurança na África do Sul é chocante mesmo para os padrões brasileiros. Quase todas as casas têm arame farpado e trazem uma placa onde está escrito "armed response" - o que significa que o lugar é protegido por firmas de segurança privada, que dão cobertura às pessoas, em especial no momento que entram e saem da garagem, o momento em que estão mais vulneráveis.

Os assaltos são muito freqüentes e nos advertiram várias vezes para tomar bastante cuidado. Há algumas semanas uma delegação de sindicalistas brasileiros tinha chegado a nosso hotel e desprezou o aviso - era um grupo de trabalhadores braçais, durões. Foram passear nos arredores e voltaram alguns minutos depois, só de cuecas. A missão comercial brasileira, que chegou enquanto estávamos lá, também foi roubada, e dentro do próprio hotel (só soube disso quando voltei ao Brasil). Quando anoitece, não se vê ninguém caminhando nas ruas, parece um episódio de Além da Imaginação.

O aspecto mais cruel dessa onda de violência são os estupros, crime do qual a África do Sul é a campeã mundial. Quando se soma a isso a taxa de AIDS local - 25% da população (é 36% na vizinha Botsuwana) - pode se imaginar o tamanho do problema. Acham que descemos ao fundo do poço? Pois bem, uma superstição largamente difundida na África é de que o vírus HIV pode ser eliminado se o homem fizer sexo com crianças ou bebês, na TV corre uma campanha contra a prática. Não há limites para a perversidade humana, quando o poeta disse que erámos os lobos uns dos outros, ofendeu profundamente os lobos.

O que causa tanta violência? Para começar, a taxa de desemprego é de 50% o que explica muita coisa. Depois, adicione à mistura a cultura de medo, terror e violência instiucionalizada pelo apartheid, que durou 50 anos e acabou oficialmente apenas há 10. E claro, há todo o machismo e patriarcalismo que transforma as mulheres em objetos. Só a exclusão social não explica a quantidade impressionante de crimes sexuais no país.

África à primeira luz

Comecemos pelo começo. Já no vôo para Johannesburg vislumbra-se um novo mundo, com muitos passageiros africanos, indianos e chineses - apesar de todo o progresso nos transportes, os viajantes para o Oriente continuam a seguir a rota do Cabo, igualizinho aos navegantes de séculos atrás. No aeroporto, outra novidade: a presença de vários muçulmanos, presença marcante na África. É fascinante vê-los rezando em seus tapetes, ou desfilando com roupas típicas e longas barbas.

Na troca de dólares por rands e no registro no hotel, as primeiras dificuldades. Na África do Sul, como num certo país que a gente conhece bem, as regras não são muito definidas e a burocracia é excessiva. Funcionários diferentes dizem coisas diversas sobre o mesmo assunto. O inglês é apenas um dos 11 idiomas oficiais dos sul-africanos e a maioria o fala como segunda língua. A comunicação nem sempre é fácil - levei tempo até explicar aos recepcionistas que o sobrenome "Melo" não é um prenome e pode ser usado tanto por homens quanto por mulheres.

A África do Sul é o país mais rico do continente e Johannesburg, sua cidade mais cosmpolita e importante, centro econômico, espécie de São Paulo construída a partir de minas de ouro e de diamante. Apesar disso, a infra-estrutura deixa muito a desejar. O hotel de luxo onde realizamos a conferência tinha um business center que simplesmente não funcionava. A conexão de Internet, por exemplo, era tão lenta que não permitia que eu abrisse os sites, quanto mais lesse e respondesse e-mails. Os cyber-cafés não foram muito melhores, como sabe quem leu meu post anterior.

Mas a riqueza humana e cultural do país, e do continente, é apaixonante. Aos poucos, fui conhecendo os delegados à conferência, pessoas da África do Sul, Angola, Gana, Moçambique, Malawi, Tanzânia, Zimbabwe... Da América do Sul, brasileiros, argentinos e uruguaios. O clima durante os três dias de trabalho foi excelente, com muitas conversas, brincadeiras, simpatia, solidariedade à flor da pele.

Os africanos adoram o Brasil, embora não tenham tanta informação sobre nosso país - eles nem preciso dizer, são desconhecidos quase completos para nós. No entanto, à medida que conversamos, descobrimos semelhanças impressionantes, como irmãos ou primos que passaram muito tempo afastados e de repente se reencontram. Na bela definição do embaixador Alberto da Costa e Silva, África e Brasil são as margens de um rio chamado Atlântico. Pode-se dizer que nosso objetivo com a conferência foi construir algumas pontes.

sábado, setembro 11, 2004

Coroas de Gloria, Lagrimas de Sangue

Tente imaginar a vida em uma pequena cidade da Guiana Inglesa circa 1810-1820. Apenas 2.500 habitantes brancos e 75.000 habitantes negros. Os brancos, senhores de engenho; os negros, escravos trazidos da Africa na ultima leva antes da proibicao inglesa do trafico negreiro. Crueldades e maus-tratos com os negros sao a regra. Ha um constante medo por parte da populacao branca de que aconteca um novo Haiti. A cidade: Demerara. Producao: acucar, cafe e algodao.

Introduza um componente extra na mistura: missionarios protestantes ingleses (Metodistas) mandados para evangelizar os escravos. Vindos da classe operaria, esses missionarios chegam na colonia e rapidamente veem-se num dilema nao previsto em sua visao de mundo simplista e esteriotipada: os senhores, a quem deveriam servir, mostram-se "selvagens" e "barbaros" no seu modo de vida; os escravos, supostamente "bestas" trazidas da Africa, sao humanos e tentam sobreviver a cada dia defendendo a pouca dignidade que lhes sobra. Pregar o Evangelho torna-se subversivo, afirmando sem querer o direito a liberdade, igualdade e justica.

17 de agosto de 1823: explode a maior revolta de escravos desde a Revolucao do Haiti. 12.000 escravos rebelam-se em grande escala e sao reprimidos brutalmente pelas autoridades. Os missionarios sao julgados e condenados a morte por traicao e sedicao.

O livro: "Coroas de Gloria, Lagrimas de Sangue", de Emilia Viotti da Costa, historiadora brasileira que ha anos dah aulas nos EUA. Uma obra-prima. Escrito originalmente em ingles, eh um primor de rigor historico e de narracao envolvente.

Por que eu estou mencionando o livro? Porque eh cada vez mais raro ler um livro de Historia (disciplina) em que a historia (fato) restrita a um acontecimento delimitado no tempo se conecta com a Historia (processo) geral do mundo. Ao descrever a revolta dos escravos de Demerara, Viotti da Costa faz (conscientemente) uma profunda reflexao sobre globalizacao, codigos culturais e ideias que viram armas de resistencia, a capacidade humana de resistir a opressao e as consequencias da rapida mudanca social no mundo.

Realmente, uma maravilha de leitura.

quinta-feira, setembro 09, 2004

Projeto Imperial

Olhar para a politica externa norte-americana e suas implicacoes de longa duracao eh um exercicio complicado, mas necessario. Jah postei sobre isso anteriormente, apresentando uma visao americana do seu papel no mundo (na entrevista com Paul Kennedy e John Lewis Gaddis) e sobre previsoes sobre as eleicoes de 2 de novembro.

Li hoje um artigo de José Luís Fiori sobre a hegemonia norte-americana e as perspectivas para o futuro. Fiori, como sua mestra Maria da Conceicao Tavares, tem sempre uma visao a longo prazo do processo historico e opera na linha de "grandes estrategias" e Politica Externa com letras maiusculas. Vale realmente a pena ler o artigo.

Para despertar a curiosidade, aqui vai uma citacao do Professor Chalmers Johnson, apresentada por Fiori:

(...)“entre 1989 e 2002 ocorreu uma revolução nas relações da América com o resto do mundo. No início deste período, a condução da política externa norte-americana era basicamente uma operação civil. Por volta de 2002, tudo isto mudou. Os Estados Unidos não têm mais uma política externa, têm um império militar. Durante este período de pouco mais do que uma década, nasceu um vasto complexo de interesses e projetos que eu chamo de império e que consiste de bases navais permanentes, guarnições, bases aéreas, postos de espionagem e
enclaves estratégicos em todos os continentes do globo”.

Noticias do Mauricio

O Mauricio acaba de postar um comentario (no post anterior) sobre como estah indo na Africa. Decidi entao copiar e transformar em um post independente.

"Escrevo de um cyber-cafe de reputacao duvidosa num bairro de ma fama em Joahnnesburgo. Estou cercado por uns caras falando nao sei o que em dialeto, a moca do caixa pediu meu dinheiro adiantado, a conexao eh de 10 Mbps (nem sei se vou enviar isso aqui, nao consegui responder aos e-mails nem postar no blog). Em suma, a Africa eh uma aventura. Depois conto mais, se a conversa local nao for sobre como me tirar o escalpo. Adiando que esta sendo muito legal, embora tenham aparecido alguns problemas serios de infra-estrutura durante a conferencia."


quarta-feira, setembro 08, 2004

Sabedoria Oriental

Existe uma passagem escrita por Sun-Tzu em "A Arte da Guerra" que sempre me intrigou. (Sun-Tzu foi um general chines que viveu 600 anos antes de Cristo e que produziu este pequeno livro de maximas para a guerra. O livro eh sensacional, mas algumas vezes hermetico. Acho ateh que foi por causa disso que acabou virando sucesso na lista de best-sellers de auto-ajuda para executivos com problemas).

Sun-Tzu diz:

Lideres podem ter Cinco Fraquezas:

Os excessivamente descuidados podem ser destruidos.
Os excessivamente cuidadosos podem ser capturados.
Os que se irritam rapidamente podem ser objeto de escarnio.
Os muito exigentes podem ser humilhados.
Os que tem excessivo apego podem ser hostilizados.

Geralmente, as Cinco Fraquezas sao um erro do lider.
Elas sao catastroficas para a execucao da Estrategia.

Se a Forca eh derrotada e o lider eh destruido,
Eh certamente por conta das Cinco Fraquezas.

Elas precisam ser cuidadosamente estudadas.


Desde que li isso pela primeira vez, fiquei com isso na cabeca. O que isso significa de verdade? Qual o sentido do grande ensinamento do mestre Sun-Tzu?

Me lembrei disso hoje na hora do almoco e fui perguntar para um colega chines como interpretar a passagem. Ele ouve atentamente, lembra da passagem no original em chines e pausa por alguns momentos preciosos. Finalmente, ele me olha e diz:

"What he means is that leaders should not fuck up."

Amem.

terça-feira, setembro 07, 2004

Um Sete de Setembro Fora da Patria

Ha dois meses, os Americanos comemoraram sua data nacional. Uma grande queima de fogos marcou o fim da festa a noite, ironicamente celebrada no estadio de futebol americano da Universidade. Claro que nao fui -- por questoes tecnicas (tinha muito trabalho a fazer) e por questoes morais (nao tinha nada o que fazer lah e patriotismo em tempos de guerra cheira a fascismo para mim).

Por questoes familiares e afetivas, costumava sempre comparecer a comemoracao mexicana do dia de independencia, celebrada na noite do dia 15 de setembro em todos os consulados mexicanos no mundo e na Praca Central da Cidade do Mexico (El Zocalo). Lah ia eu com meu pai, aproveitar a boca-livre do pais-irmao (meu pai dizia que pagou impostos tempo suficiente no Mexico para poder comer canapes).

Engracado era que nunca tive esse entusiasmo pela festa de independencia brasileira. Durante toda a minha infancia e adolescencia, "ir a festa" significava ir ver a parada militar, coisa que, apesar da historia familiar "militar", nunca tive vontade de fazer e nunca me forcaram. Ficar dormindo era a opcao e estrategia ideal, se possivel ateh bem tarde.

Morar fora gera sentimentos estranhos na gente. Penso no meu pais constantemente, mas nao de maneira ufanista, xenofobica. Tenho um carinho especial pela terra, pelas pessoas, pela vida. Morar fora obriga a pensar no que me faz ser brasileiro e eu gosto de pensar que eh porque eu compartilho algo tao interessante e unico para o mundo que eu soh poderia ser brasileiro. Se fosse estrangeiro, me tornaria brasileiro por escolha. E toda vez que desanimo ou penso nas tragedias alheias ou nos modelos dos outros, me vem a cabeca o distico do Barao do Rio Branco: "Ubique Patriae Memor".

Sempre com a patria na memoria.

domingo, setembro 05, 2004

Redescobrindo um Classico

Quando olhei no relogio jah era 3 da tarde e ainda nao tinha almocado. Sem pensar fui direto para o predio central da Universidade onde ha alguns lugares para comer e onde funciona a livraria central. Comi um sanduiche e, como todo obcecado, decidi ficar um tempo olhando os livros. Durante estas duas primeiras semanas de aulas a livraria promove a venda dos livros que estao sendo utilizados pelos professores, incluindo ahi livros usados. Como para mim estas sao as palavras magicas que movem o mundo, lah fui eu.

Entro na secao de classicos e comeco a folhear copias usadas (mas quase novas) dos livros mais pedidos pelos professores, que passam por "O Principe", "O Manifesto Comunista", "Leviathan", entre outros. Imediatamente (e acidentalmente) bato os olhos n'"A Iliada" de Homero. Opa, versao nova, livro tinindo, apenas 4 dolares. A capa vem com a horrivel referencia ao filme: "O livro que inspirou o filme 'Troia'!" Bom, tudo eh valido para vender os classicos para as novas geracoes.

Nao resisti. Apesar de ter lido o livro quando era moleque (devia ter uns 13, 14 anos) e ter achado que algumas partes eram legais ("especialmente quando as pessoas sao esfaqueadas por Aquiles"), nunca tinha realmente apreciado a beleza desse livro. Em uma traducao incrivel (nao sei grego, mas posso avaliar a fluencia do ingles), fiquei ateh umas 4 da manha acordado lendo passagens inteiras do livro sem conseguir parar. Soh cedi exausto quando percebi que nao podia mais continuar. Meus colegas historiadores certamente vao rir de mim ("obvio, a gente sempre disse!"), mas fazer o que? Rendo-me ao obvio.

O unico porem? Aquele filme-bomba aniquilou com a minha capacidade de visualizar Aquiles sem ser um surfista marombado dizendo babaquices, o Paris como aquele duende do Senhor dos Aneis e o Heitor como o Hulk. Que Zeus amaldicoe o cinema ruim!

Ah, e ainda continuo achando que as partes em que Aquiles esfaqueia os troianos sao incriveis.

sábado, setembro 04, 2004

Rumo à África

Amanhã viajo para a África do Sul. Participarei de um seminário em Johannesburg sobre cooperação entre as sociedades civis do Mercosul e do SADC, o bloco regional africano. O objetivo é formular uma alternativa (ou uma complementação, no meu ponto de vista) à aproximação diplomática realizada pelos governos.

Fui um dos organizadores da conferência, que contará com cerca de 40 pessoas, de vários países da América Latina e da África. Me deu bastante trabalho e algumas dores de cabeça, seja pelos detalhes logísticos, seja pelas disputas políticas. Nem todo mundo que trabalha em ONG é bonzinho. Para dizer o mínimo.

A delegação do Ibase é formada pelo diretor, por minha chefe e por mim. Os dois primeiros sairão antes do fim do evento, de modo que representarei o instituto numa reunião com as autoridades sul-africanas, em Pretória. Valendo-se do meu caráter duplo de jornalista e cientista político, o Ibase me encarregou também de fazer algumas reportagens e entrevistas, estou levando até câmera digital. Em breve teremos fotos no blog!

Para mim, a viagem é a realização de um sonho que nasceu durante a faculdade de jornalismo, a partir das conversas com meus amigos angolanos. Não sei como será a disponibilidade de Internet, se as conexões forem ruins, volto a escrever no dia 12, quando estiver de volta ao Brasil.

Tragedia Na Russia

Realmente eh muito chocante ver o aconteceu. Nao tenho muito a acrescentar a nao ser contar um pequeno dialogo mantido ontem com uma colega ucraniana, especialista em politica Russa e do Leste Europeu.

BB: "Voce acompanhou essa historia dos refens no colegio?"

Colega: "Claro. Horrivel. A situacao estah ficando pesada. Mas nao esperava nada de diferente do Putin. Quando anunciaram a situacao, jah sabia que ia ser um novo teatro de Moscou."

BB: "Mas e a situacao politica do Putin?"

Colega: "Olha Bruno, existem duas faccoes na politica russa atualmente."

BB: "Quais?"

Colega: "Uma delas quer que Putin aniquile completamente a Chechenia, nao deixe pedra sobre pedra e mate todos ao mesmo tempo. O que sobrar eh russo. Ah, e essa eh a corrente moderada."

BB: "Gulp. Entendi."

Olhei para o chao, agradeci pela explicacao e fui para a biblioteca.

Uma Digressao Sobre Furacoes

Acho que nunca vou me acostumar com eles. Imagina uma daquelas tempestades de verao no Rio, mas com o triplo da forca; a sua casa treme e as arvores parecem que vao voar a qualquer minuto. Agora imagina que voce estah completamente a merce da natureza -- nao ha nada que voce possa fazer -- torcendo para que tudo acabe o mais rapido possivel e desejando que as outras pessoas estejam protegidas. Eh mais ou menos isso.

Agora eh uma mulher: a Frances. Nao deve chegar com toda a forca por aqui na Carolina do Norte, mas eh sempre uma situacao surreal. De novo vou tentar ficar em casa, debaixo das cobertas, esperando que nao demore muito. Chamem-me de covarde, nao importa. Me lembro de uma vez no Mexico em que enfrentei um terremoto -- tambem foi uma das experiencias surreais da minha vida. Nao desejo a ninguem.

E sempre fiquei pensando: qual eh a dos nomes? Quem escolhe? Por que? Hoje no NYT tem uma materia assinada sobre isso. Eh mais romantico do que imaginava. E como dizia o filme, "entre a verdade e a lenda, publique-se a lenda."

sexta-feira, setembro 03, 2004

Mestres e Discípulos

Publiquei um artigo sobre o movimento indígena no Observatório Político Sul-Americano do Iuperj, coordenado pela Maria Regina Soares de Lima, uma das minhas grandes mentoras. Se não fosse por ela, talvez eu não me dedicasse às Relações Internacionais. Tudo começou com um ótimo curso sobre política externa dos EUA, seguido de um convite para que eu me tornasse seu assistente de pesquisa.

Cada conversa que tenho com ela é um aprendizado. O papo mais recente foi semana passada, pouco antes de uma aula sobre instituições internacionais. Ela sugeriu que eu me candidate a uma bolsa de pesquisa da Fundação Ford sobre as relações entre Brasil, Índia e África do Sul. Daqui a pouco almoçarei com uma amiga para discutir a possibilidade de prepararmos um projeto.

Nestes dias fiquei sabendo que outro de meus mentores, Wanderley Guilherme dos Santos, pode virar consultor do Ibase. Ele me apresentou aos clássicos da filosofia política, agora está aposentado do Iuperj, mas ocasionalmente nos esbarramos por aí. A última vez foi há quase um ano, no aeroporto de Brasília. Eu vinha do Senado, onde tinha ido apresentar uma pesquisa, e ele do Itamaraty, onde dera uma palestra. Me estimulou no trabalho, mas frisou que eu deveria prosseguir no doutorado.

A relação entre professores e alunos pode assumir formas patológicas, mas uma das melhores coisas que vivencio na academia é o carinho e o calor humano dos meus mestres. Talvez seja um traço medieval da universidade, que sobreviveu neste mundo moderno, marcado pela pressa e onde ninguém tem tempo para ensinar e interesse em servir de exemplo.

Para fechar, ontem eu discutia sobre o Mercosul com um colega do doutorado, bem mais velho, que me contou uma história fantástica sobre a União Européia: “Em 1965 eu trabalhava no setor siderúrgico e fomos enviados à Europa para conhecer a experiência da Comunidade do Carvão e do Aço. Um dia nos reunimos com o prefeito de Strasbourg e perguntei a ele qual a importância política da integração européia.”

“Ele me disse: ´Na semana que vem meu filho mais velho faz 21 anos. É o primeiro homem em seis gerações da minha família a não ter lutado numa guerra.´”. Ficamos em silêncio por um instante e quando elogiei a história, ele respondeu “Não é nada, apenas uma anedota de velho.”

quinta-feira, setembro 02, 2004

A "Wal-Martizacao" do Mundo

Ha algum tempo, o New York Times decidiu ativar sua metralhadora giratoria contra a rede de lojas de departamento Wal-Mart. Aqui nos EUA, a Wal-Mart eh onipresente, onipotente e onisciente. Eles sao de longe a maior empresa dos EUA e isso se traduz em numeros assombrosos. Sua movimentacao de dinheiro representa 2,3% do PIB americano (!) e a empresa emprega 1,5 milhao de pessoas (!!). Eh claro tambem que a empresa representa ao extremo o melhor e o pior do capitalismo.

Entrar em uma loja-armazem do Wal-Mart por aqui eh uma experiencia bizarra: acho que a comparacao seria uma super-Lojas Americanas misturando supermercado, loja de eletronicos, C&A, loja de brinquedos e loja de armas, entre muitas outras coisas. O tamanho da empresa eh tao grande que nao ha comparacao possivel: qualquer coisa que voce precise, voce vai encontrar mais barato no Wal-Mart.

Evidentemente, isso estah acabando com qualquer tipo de competicao de qualquer outro tipo de loja. De verdureiros a vendedores de bicicletas ou livros que tem suas lojas dependentes de comunidades pequenas, os negocios estao quebrando em uma velocidade assustadora. O Wal-Mart tambem responde a varios processos por total falta de respeito aos direitos trabalhistas dos empregados, que trabalham por salarios ridiculos e, geralmente, sem qualquer tipo de seguro de saude ou direito a ferias. Tambem sao proibidos de se sindicalizar. Seguindo os ventos do Nafta, o Wal-Mart jah eh bastante representativo no Mexico e estah comprando as maiores cadeias de supermercado mexicanas para se instalar.

O NYT constantemente publica artigos denunciando as condicoes de trabalho dos empregados do Wal-Mart e seus efeitos para a economia local. Qualquer desses artigos sempre eh recebido com uma chuva de cartas, favoraveis ou nao ao gigante corporativo. Alguns ateh mesmo acreditam que o Wal-Mart vai ser o caso decisivo para a redefinicao juridica (para o bem ou para o mal) das leis trabalhistas norte-americanas. Resta ver o que acontecerah nos EUA e evitar que os efeitos perversos cheguem ao Brasil.

quarta-feira, setembro 01, 2004

Anuncios Televisivos

Para quem se interessa por politica ou por historia da politica norte-americana, aqui vai uma dica interessante. Por conta da campanha presidencial, o American Museum of the Moving Image (a versao deles do Museu do Audiovisual) estah promovendo uma exposicao com a historia das propagandas televisivas dos candidatos a presidencia dos EUA, desde 1952. A exposicao virtual mostra todos os anuncios eleitorais de ambos os partidos (inclusive os independentes) -- basta clicar e assistir.

Eh interessantissimo ver como as campanhas na TV evoluiram. No inicio, eram apenas apendices do radio, com candidatos parados, closes e a mensagem simples. Com Kennedy, as coisas comecam a mudar e os marqueteiros comecam a descobrir como a imagem pode definir uma eleicao. Hoje, a TV eh central -- eh impensavel qualquer campanha sem ela. Por fim, tambem podemos ver claramente como as campanhas no Brasil foram influenciadas pelas campanhas norte-americanas. Vale a pena conferir.
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