quinta-feira, março 31, 2005

Caleidoscópio Africano

Há tempos conversamos no IBASE sobre a criação de um grupo de leitura – romances, teatro, poesia etc. Ontem foi decidido que o primeiro livro da iniciativa será “O Último Voo do Flamingo”, romance mais recente do moçambicano Mia Couto. Momento Paulo Coelho: às vezes o universo de fato conspira ao nosso favor e todos os (meus) caminhos levam à África.

Passei a semana pesquisando sobre Angola e Moçambique, with a little help from my friends, que são tão bons quanto música dos Beatles. As eleições presidenciais em Angola são realmente o ponto focal, que concentra todas as tensões. Uma questão me interessa em especial: o papel da imprensa. Os principais veículos de comunicação são estatais e, claro, pró-governo. A formação profissional é falha, sequer existem faculdades de jornalismo no país.

Penso na possibilidade de uma oficina de capacitação para repórteres, tendo em vista as eleições presidenciais. Fizemos bons eventos desse tipo no IBASE, em parceria com a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. Talvez pudéssemos nos concentrar na mídia alternativa, como rádios comunitárias. Me parece que seria um belo projeto de cooperação – trabalho a idéia com carinho.

Ainda não encontrei um gancho semelhante em Moçambique. O país é apresentado como uma história de sucesso na Àfrica, crescendo a 8% anuais desde 1996. A guerra civil acabou, a democracia caminha e os doadores internacionais estão contentes. Apesar disso, Moçambique continua a ser miserável, mesmo para os padrões africanos. Espero que o romance de Mia Couto possa me iluminar, a sensibilidade dos artistas com freqüência nos dá presentes assim.

Boa surpresa foi ter descoberto mais de 100 livros sobre África na biblioteca do IUPERJ, apesar do instituto não ter tradição em estudos nessa área. Separei meia dúzia de obras sobre a política contemporânea do continente. Aprendo bastante, pena que a maioria dos autores aborda pouco os países de língua portuguesa. A grande vedete é mesmo a África do Sul, pela força econômica e política.

Outro ponto de trabalho é me aprofundar nas regras das agências financiadoras. Os novos padrões estão mais rígidos e exigem objetivos bem definidos, que possam ser quantificados numericamente. É uma boa decisão, ajuda a combater o excesso de retórica que às vezes ataca movimentos sociais.

Não por acaso, a necessidade de transformar conceitos abstratos em indicadores estatísticos é uma das principais tendências das ciências sociais nos EUA, e por tabela no Brasil – foi o assunto de discussão na aula desta semana no IUPERJ. Prefiro palavras a números, mas sei que preciso manejá-los bem para dar conta das minhas tarefas profissionais.

quarta-feira, março 30, 2005

O Peso da Rotina

Aos amigos que acompanham o blog, gostaria de apresentar um pedido de desculpas de minha parte por estar escrevendo tao pouco e de maneira erratica. O peso da rotina se acumula, enquanto as coisas a fazer nao dao tregua. As vezes, o blog parece a ultima coisa a lembrar -- o que me deixa ainda mais culpado porque penso nele como o equivalente virtual dos meus amigos. Eh como se, ao sucumbir ao dia-a-dia rotineiro, estivesse esquecendo de todos.

Nao eh verdade. Mesmo. E continuo trabalhando laboriosamente em meu projeto de tese.

(Nota explicativa do editor: O sentimento de culpa eh algo muito comum nos doutorandos. Como geralmente a tese parece a Missao a ser cumprida, qualquer desvio dela em coisas prosaicas como descanso, cinema ou literatura, assemelha-se a uma "traicao" a causa, ou "pecado mortal". Alias, as alusoes aos motivos religiosos nao sao gratuitas, jah que as primeiras universidades europeias foram fundadas para se estudar religiao)

Procurei coragem diversas vezes para escrever sobre temas aridos como as nomeacoes de Bolton e de Wolfowitz para os postos que ocupam atualmente, a recente discussao na Suprema Corte a respeito dos programas P2P ou mesmo sobre a politica externa brasileira (tema muito caro para mim). Infelizmente, as poucas linhas escritas jah saiam com cheiro de algo velho e datado.

Mas nao esmoreco! Continuo firme e forte teclando diretemente da cidade de Montanha Fria, Carolina do Norte.

Um abraco,
BB

segunda-feira, março 28, 2005

Caminhos da África


Pôr do sol em Angola Posted by Hello

O projeto de cooperação entre movimentos sociais da América Latina e da África, pelo qual participei do seminário em Johannesburg em setembro, entrou numa nova fase. Havíamos submetido uma proposta de continuidade para uma agência finaciadora holandesa que basicamente respondeu dizendo "OK, estamos interessados, mas queremos modificações no projeto."

A principal delas é mudar o eixo da cooperação, deixando de lado a África do Sul e focando nos países africanos de língua portuguesa, mais especificamente Angola e Moçambique. Os holandeses se mostraram surpresos no participação secundária dessas nações numa proposta elaborada por brasileiros. O fato é que o projeto do IBASE foi muito influenciado pela política externa do Brasil, na qual a África do Sul é um interlocutor mais importante em função de seu desenvolvimento econômico e da capacidade de ação de seu Estado.

Minha chefe me encarregou de levar adiante as mudanças requisitadas por nossos financiadores, o que deve ser minha principal atividade nesta semana. Ao mesmo tempo, o diretor do IBASE me solicitou elaborar também um esboço de pesquisa sobre o Fórum Índia-Brasil-África do Sul, para outro dos projetos do instituto. Todos os caminhos levam à África.

De modo que passarei uns bons dias mergulhado nos assuntos africanos, tema pelo qual sou apaixonado. Em Recife tomei café da manhã com o diretor de uma ONG, que esteve recentemente em Angola tocando outro projeto de cooperação com movimentos locais. Pedi notícias do país e ele me contou que o clima político em Luanda está tenso, com a aproximação das eleições presidenciais - as pessoas temem que a disputa possa fazer voltar a guerra civil.

Comércio, conflitos, AIDS, direitos humanos e democracia... Minha cabeça está um caleidoscópio africano. Sugestões são bem-vindas.

sexta-feira, março 25, 2005

Hume e a Mulher do Tubo

David Hume, um filosofo escoces do seculo XVIII, escreveu sobre um paradoxo do conhecimento: por mais que observemos a repeticao de um mesmo fenomeno indefinidamente, nao podemos inferir que ele sempre acontecerah da mesma maneira. Na milhonesima primeira vez da repeticao do experimento, o fenomeno pode acontecer de maneira diferente ou mesmo nao acontecer. Moral da historia: a ciencia deve ser, por definicao, cetica; e por natureza, provisoria.

Me lembrei de Hume quando li sobre o episodio da mulher do tubo. Enquanto todos parecem ter alguma opiniao, as perguntas se acumulam. O juiz tem razao, o marido tem razao, os pais tem razao. A Suprema Corte tem razao, Bush tem razao. Descobrir quem tem a razao no caso parece ser a crux da questao. Enquanto isso, Fox, CNN e afins se divertem com o macabro e a tragedia pessoal da moca. Esqueceram ateh o Michael Jackson.

A sociedade norte-americana, acusada constantemente de ser um antro de fundamentalistas cristaos e de extremistas de direita, parece ter uma ideia bastante precisa sobre o caso. Ao inves da divisao 50-50% tradicional entre matutos fazendeiros e cosmopolitas gays, as pesquisas apontam que cerca de 65 a 80% da populacao acha que (1) o governo federal nao tem que se meter na questao e (2) o tubo nao deve ser reinserido na pobre mulher.

Paralelo a tudo isso, Bush anda perdendo muito apoio politico. Seu projeto de "reforma" (privatizacao) da Seguridade Social rachou o Partido Republicano e foi desprezado pela populacao. Os maiores beneficiarios da Seguridade Social estao no meio-oeste que o elegeu. Nao gostaram nada da ideia. As pesquisas de aprovacao a Bush despencaram. Serah que eh o inicio de uma mudanca seria?

Enquanto paro para respirar e contemplar a mudanca, leio que os cinemas IMAX do sul acabam de banir qualquer filme com mencao a "evolucao" para nao ofender a frequentadora familia crista. Um filme sobre moluscos teve a blasfema ideia de dizer que eles "evoluiram" depois de milhoes de anos vivendo em diferentes ambientes. Mais ainda: o filme foi feito perto das ilhas Galapagos, que como qualquer cristao decente sabe, sao um antro de satanismo, inaugurado pelo Capeta himself, tambem conhecido como Charlie D.

Bom, foi mesmo uma excecao humeana. Voltemos a programacao normal.

quarta-feira, março 23, 2005

Memórias do Desenvolvimento


Furtado com o presidente Goulart Posted by Hello

Encontrei na biblioteca do IUPERJ a obra autobiográfica de Celso Furtado. Na edição estão incluídos vários livros e textos, os mais interessantes são "A Fantasia Organizada" e "A Fantasia Desfeita".

Furtado foi um dos nomes mais expressivos da República de 1946, a geração que enfrentou o desafio do desenvolvimento econômico e da expansão da democracia, no díficil contexto do ínicio da Guerra Fria e da crise do populismo. O economista foi também um intelectual de primeiríssima linha que encarou o desafio de pensar nosso país de maneira autônoma e original.

"A Fantasia Organizada", cobre o período de 1945 a 1955 e é o melhor das memórias. É quase um romance de formação, a saga de um rapaz do interior da Paraíba que faz sua estréia no mundo ao servir como oficial da FEB na Segunda Guerra Mundial. Suas descrições da Itália e da França devastadas pelo conflito são muito boas – a edição inclui o belo livro de contos que Furtado escreveu sobre sua experiência na guerra, com trechos dignos de um Band of Brothers à brasileira.

Depois da guerra, o doutorado em Paris e as dores do parto da nova Europa - análise política e social das mais argutas que li. A volta para o Brasil conservador do governo Dutra é um anti-climax, e Furtado aproveitou uma oportunidade para se juntar a um recém-criado (e meio desacreditado) órgão da ONU, a Comissão Econômica para a América Latina. Ninguém levava muita fé na CEPAL e a narrativa de como a instituição se transforma no principal centro de políticas do desenvolvimento do mundo é primorosa, certamente usarei muitas dessas informações com meus alunos. Claro que a figura em destaque é a do economista argentino Raul Prebisch, que entrou na comissão quase por acaso.

O segundo livro, "A Fantasia Desfeita", é menos interessante, apesar de cobrir o período em que Furtado foi assessor de três presidentes - JK, Jânio e João Goulart - um pouco no BNDE, muito na SUDENE, que ele vê como sua principal obra. Me surpreende a boa relação que Furtado manteve com Jânio Quadros, a quem se refere com admiração, mas senti falta de uma análise mais detalhada dos conflitos que levaram ao golpe de 1964, que encerram o livro.

Ler Furtado neste início de século XXI é constatar que o debate sobre desenvolvimento se empobreceu muito. Os argumentos do governo dos EUA e das instituições de crédito internacional não mudaram muito em 50 anos, o que se alterou foi a capacidade do Estado em apresentar propostas e tocar projetos. Mas não acho que seja impossível a retomada dessas discussões, em particular pela via da integração da América do Sul, talvez o campo que mais avançou recentemente.

terça-feira, março 22, 2005

Sobrados e Mucambos


Vista do Alto da Sé de Olinda Posted by Hello

No fim de semana estive em Pernambuco, numa viagem de trabalho. Represento o IBASE na executiva do Fórum Nacional de Participação Popular, o que significa algumas reuniões ao longo de cada ano. Em geral nos encontramos no nordeste, porque a maioria das organizações do fórum é daquela região.

A reunião foi em Recife, mas aproveitei para visitar Olinda, que ainda não conhecia. Fiquei maravilhado com a riqueza arquitetônica da cidade, com seus sobrados e igrejas, e uma paisagem só comparável ao Caribe. Como sempre no nordeste, o contraste com a miséria é muito forte. Saindo da meia dúzia de ruas restauradas que formam o deslumbrante centro histórico, só se vê pobreza e degradação. A ausência de uma infra-estrutura razoável para o turismo também espanta. Não havia nenhum quiosque de informação e nem mesmo uma lanchonete onde se pudesse comer um sanduíche.

Também passeei um pouco por Recife. Já conhecia o centro histórico da outra vez em que estive na cidade, de modo que aproveitei o fato de estar hospedado em Boa Viagem para fazer longas caminhadas pela praia. A desigualdade é gritante mesmo para alguém habituado ao apartheid cotidiano do Rio de Janeiro. Os mucambos de Brasília Teimosa e Afogados fazem Rocinha e Vidigal parecerem bairros de classe média alta.

Minha reunião de trabalho foi apenas razoável. O objetivo era planejar um seminário nacional que construa uma agenda sobre participação da ótica das organizações da sociedade civil, mas esbarramos em vários obstáculos. Existe uma decepção consensual com o governo Lula. Só que menos acordo sobre o que fazer com relação a isso.

Em todo caso, a cabeça ferve. Minha leitura dos últimos foram as memórias do economista Celso Furtado, excelentes, das quais tratarei num próximo post. Creio que foi fundamental em sua formação ele ter nascido na Paraíba. No centro-sul, pode parecer que o desenvolvimento é apenas uma questão de aumentar a renda da população mais pobre. No nordeste, a gente sente na pele que o subdesenvolvimento é algo mais profundo e complexo, arraigado nas estruturas sociais e de dominação política.

sábado, março 19, 2005

Entre Piscadelas e Pontos Criticos

Malcolm Gladwell eh uma figura. Uma mistura de historiador, jornalista e cientista social, Gladwell parece ser a referencia basica atual da cultura pop. Seus artigos na revista New Yorker sao lidos e comentados com fervor, como se tudo que dissesse tivesse consquencias imediatas para toda a sociedade norte-americana.

E de certa maneira, isto pode ateh ser verdade. Ha algum tempo Gladwell nao sai das listas dos mais vendidos do NYT de nao-ficcao, primeiro com o seu livro "The Tipping Point" e, mais recentemente, com "Blink: The Power of Thinking Without Thinking". A primeira vista parece mais uma aposta dos "auto-ajuda", mas Gladwell eh um daqueles popularizadores da ciencia que adoramos ler e que traduzem teorias complexas e, geralmente, matematizadas da Ciencia Politica e da Sociologia para um ambiente popular. Ideias que cientistas sociais em geral tendem a admitir como usadas, parecem ganhar novo sentido no trabalho de Gladwell, que, de alguma maneira, traz algumas questoes importantes a tona e forca a sociedade a discuti-las.

"The Tipping Point" (livro escrito ha tres anos atras) parece ser um tentativa de popularizacao do trabalho do economista Thomas Schelling em "Micromotives and Macrobehavior" de 1978. Nele, Gladwell menciona que algumas mudancas na sociedade tendem a se parecer com um modelo de "ponto critico": tensoes vao se acumulando pouco a pouco ateh que atingem um "ponto critico" e, apenas um pequeno acontecimento parece desencadear uma mudanca estrutural profunda. Um exemplo disso eh o caso das revolucoes do leste europeu em 1989, que ninguem tinha ideia de que fossem possiveis ateh que acontecessem. O maior problema para os cientistas sociais eh que este tipo de modelo serve muito pouco para prever tendencias; funciona entretanto como um bom mecanismo de explicacao pos-facto.

Em "Blink", Gladwell refere-se aqueles segundos de reacao que temos a qualquer acontecimento. Esses primeiros segundos sao importantissimos, diz ele, porque sao eles que conduzem nosso processo de interpretacao "racional" da realidade. Eles sao determinantes dos "bias" que temos, nossos preconceitos e nossas idiossincrasias inconfessaveis. Para ele, quase tudo eh decidido na "piscadela", naquele precioso momento de reacao. Como nos guiamos por esteriotipos e papeis sociais, tentar eliminar nossos "bias" da piscadela parece ser impossivel, mas segundo Gladwell eh fundamental que uma sociedade tente discuti-los. Um exemplo de como isso funciona aplica-se aos casos de racismo, por exemplo, em que a primeira impressao (dada no caso pela cor da pele) pode tingir completamente nossa concepcao da realidade. Possiveis solucoes para dimimuir nossos julgamentos imediatos poderiam surgir de pequenas providencias: entrevistas de emprego sendo conduzidas sem qualquer contato fisico, o uso obrigatorio de uniformes em colegios ou ateh mesmo nao permitir que o juri veja o reu durante o julgamento.

Ideias impraticaveis ou provocacoes culturais? Pelo menos eh uma boa leitura.

sexta-feira, março 18, 2005

Desventuras Acadêmicas

Comecei minha última matéria no doutorado, um curso sobre 'Instituições, Ciclos Políticos e Desempenho Macroeconômico". É o único neste semestre que tem alguma relação com meu tema de pesquisa, além de ser à noite, o que me facilita muito a vida.

O professor iniciou a matéria mudando o dia da aula, porque coincide com o da disciplina obrigatória do doutorado. Três alunos responderam que então teriam que desistir do curso, contra apenas uma estudante que será beneficiada - só que é orientanda do professor. Detesto esse favoritismo acadêmico. Pelo menos podiam ter combinado antes e nos poupado do constrangimento.

Depois, ele anuncia que todos os alunos terão que apresentar os textos em Power Point, "porque é assim que se deve fazer em sala de aula". Um colega observa que esqueceram de avisar os cientistas sociais. Puro fetichismo tecnológico. O PP é útil para conferências ou apresentação de projetos, mas dificulta o diálogo com os alunos, porque o professor precisa se prender a um roteiro pré-fixado.

Após o curso sobre guerra que fiz com o Renato Lessa, é frustrante cair nessa visão estreita da vida acadêmica. Pena que o mestre está lecionando filosofia do século XVIII, distante demais da minha realidade. Ao menos há na turma cinco pessoas com interesse comum na Argentina, aprenderei com esse convívio. O professor também se mostrou receptivo à minha pesquisa, inclusive surgerindo que eu escreva sobre a política econômica do governo De La Rúa. Também me chamou a atenção para a importância das relações entre províncias e Buenos Aires no aumento da dívida pública e na explosão da crise.

Vejamos como a coisa corre. Se ficar muito ruim, de repente mudo para o curso do Lessa. A estrada para o conhecimento deveria ser sempre alegre e luminosa, mas às vezes é "long and winding".

George F. Kennan, 1904-2005

George Kennan morreu hoje. Tinha 101 anos. Para quem nao o conhece, o cara foi um dos artifices da chamada "politica de contencao" (ou "containment"), base da estrategia da politica externa norte-americana do pos-Segunda Guerra Mundial. O mais famoso diplomata americano, Kennan praticamente redefiniu o Departamento de Estado, tentando imprimir a "casa" uma feicao mais burocratizada.

Kennan era um dos "velhos realistas" da diplomacia norte-americana. Sabia russo fluentemente e servia na Embaixada Americana em Moscou quando escreveu sua mais famosa "obra": o "longo telegrama" enviado para Washington com uma analise da sociedade e da politica sovietica e a recomendacao do engajamento americano no combate mundial ao comunismo. Achava que a politica mundial deveria ser conduzida nao por democracias (que achava instaveis e sujeitas as flutuacoes da opiniao publica mediocre) mas por uma aristocracia, nos moldes europeus do final do seculo XIX. Alias, Kennan era claramente um homem do seculo XIX, nascido por acidente no seculo XX. Muitas vezes escreveu que o modelo mais suportavel de diplomacia deveria ser o ingles, de acordo com o Parlamentarismo, concentrador de poder do Legislativo e do Executivo em uma soh pessoa. Claro que nos EUA esse tipo de "esquisitice" passava ao longo de qualquer discussao politica seria.

Escreveu um dos livros classicos de RI e da politica externa norte-americana a partir de uma serie de palestras dadas na Universidade de Chicago chamado "American Diplomacy". Para quem tem interesse, eh um livro indispensavel. Kennan representava para a diplomacia norte-americana o maior contraste com outra de suas figuras emblematicas, Dean Acheson. Numa comparacao muito mal-feita, enquanto Kennan seria uma especie de Barao do Rio Branco, Acheson seria uma especie de Joaquim Nabuco da politica exterior do pos-guerra. O realista e o institucionalista.

Pequena trivia: Kennan tinha pavor de latino-americanos. A la Diogo Mainardi, dizia que apos uma visita a regiao no fim dos anos 40, nao conseguia ver nenhum atrativo, nem fisico nem sociologico em nenhum pais da regiao. Mais ainda, dizia que nunca tinha conhecido povo tao feio na sua vida. Ele e o Levi-Strauss, que tambem jah passou dos 100 anos e acho que ainda eh o ultimo estruturalista da antropologia ainda vivo.

Geeks

Falando em leituras, finalmente acabei de ler "Quicksilver" de Neal Stephenson. Depois de devorar com muita calma as 950 paginas, agora "so" faltam mais dois volumes (cerca de 2000 paginas mais...). Achei o livro fascinante e nao vejo a hora de comecar a ler os outros. Jah devo ter cansado os leitores deste blog com as minhas ruminacoes a respeito do sujeito, mas descobri uma entrevista interessantissima dele na internet.

Achei que valia a pena menciona-la, porque Stephenson tece alguns comentarios sobre politica, o futuro dos EUA como produtor de tecnologia e a possivel ameaca a hegemonia norte-americana na area. Como os colegas sabem, venho pensando jah ha algum tempo sobre esses temas, que na minha opiniao sao centrais para entender o processo de globalizacao e o novo arranjo da informacao no mundo contemporaneo.

Especificamente a respeito dos livros, perguntado sobre porque decidiu escrever sobre o seculo XVII, Stephenson diz:

"The medieval is still very much alive and well during this period. People are carrying swords around. Military units have archers. Saracens snatch people from European beaches and carry them off to slavery. There are Alchemists and Cabalists. Great countries are ruled by kings who ride into battle wearing armor. Much of the human landscape—the cities and architecture—are medieval. And yet the modern world is present right next to all of this in the form of calculus, joint-stock companies, international financial systems, etc. This can’t but be fascinating to a novelist."

Um trecho sobre os EUA:

"For much of the 20th century it was about science and technology.(...) If the emblematic figures of earlier eras were the pioneer with his Kentucky rifle, or the Gilded Age plutocrat, then for the era from, say, 1940 to 2000 it was the engineer, the geek, the scientist. (...) It is quite obvious to me that the U.S. is turning away from all of this. It has been the case for quite a while that the cultural left distrusted geeks and their works; the depiction of technical sorts in popular culture has been overwhelmingly negative for at least a generation now. More recently, the cultural right has apparently decided that it doesn’t care for some of what scientists have to say. So the technical class is caught in a pincer between these two wings of the so-called culture war. (...) But science is all about diligence, hard sustained work over long stretches of time, sweating the details, and abstract thinking, none of which is really being fostered by mainstream culture."

Apesar de um pouco longa, vale a pena ler a entrevista. Recomendo.

quarta-feira, março 16, 2005

Relendo um Mestre


Capa: Casa dos Mann em Lubeck Posted by Hello

Thomas Mann é um dos meus escritores favoritos. Releio seus romances como quem visita um amigo com quem tem muita conversa para colocar em dia. Semana passada mergulhei novamente em "Os Buddenbrook", que tinha lido pela primeira vez há uns 5 anos, talvez mais.

Foi o primeiro romance do autor, publicado quando tinha apenas 26 anos, e narra a decadência de uma rica estirpe de comerciantes de uma cidadezinha portuária alemã. É a história dos Mann, com poucas mudanças. Até mesmo os nomes próprios e os escândalos são os mesmos.

O romance atravessa quatro gerações e cobre todo o século XIX. É legal relê-lo depois de estudar a história da Alemanha, porque dá para pescar as referências aos eventos: as guerras contra Napoleão e contra a Áustria, a formação da União Aduaneira liderada pela Prússia, a revolução fracassada de 1848, o processo de unificação e a natureza autoritária do Estado que se forma sob Bismarck.

O centro dos Buddenbrook é a transformação de uma família de homens práticos, duros e espertos, em diletantes sensíveis, mas desajeitados. A caracterização dos personagens é excelente, com destaque para Thomas e Antoine (Tony), inspirados no pai e na tia do escritor. O primeiro representa o auge dos Buddenbrook, com seu tino comercial e sua ambição política. Mas ao mesmo tempo anuncia o declínio, com sua sofisticação cultural (e um certo pedantismo) que o colocam em conflito com os estreitos horizontes da cidadezinha. Havia sido o personagem que mais me impressionara na primeira vez que li o romance.

Nesta segunda, foi Tony. Algo fútil, orgulhosa da distinção dos Buddenbrook, mas no fundo boa gente, que sofre em dois casamentos infelizes e passa a vida saudosa de um amor de juventude por um estudante pobre, inebriado pelas idéias radicais de 1848. Essa paixão é narrada de forma muito bonita, em particular pelo uso magistral que Mann faz do Leitmotiv.

O escritor foi um grande amante da música e retirou essa técnica da ópera. No Leitmotiv, cada personagem é acompanhado por um tema - um tipo de roupa, um hábito, uma expressão de linguagem. Quando Tony diz nos momentos difíceis, "Hoje estamos sentados nas pedras", usando um código que tinha com o namorado de juventude, o leitor sorri, cúmplice.

Outra influência musical em Mann é o personagem Hanno, o último da linhagem. O tímido filho de Thomas consegue se expressar apenas através do piano - um prelúdio do que seria Adrian, o protagonista de "Dr. Fausto", um compositor que vende (ou acha que vende) a alma ao diabo, em troca de grandeza - metáfora para a Alemanha no século XX

terça-feira, março 15, 2005

Os Fazendeiros Felizes

Frequento um cafe perto da minha casa, onde tomo cafe-da-manha e, ocasionalmente, o espresso da tarde. Gosto de passar tempo por ali: o ambiente eh menos opressivo do que o da Biblioteca da Universidade (toda em estilo gotico) e possui conexao sem fio com a internet de graca.

Desde que o cafe abriu (em novembro do ano passado) passo por lah quase todos os dias, a caminho da Universidade ou voltando dela. O dono jah me conhece e geralmente nos cumprimentamos. Ontem, como estava muito frio e chovendo, havia poucas pessoas por lah e o dono resolveu conversar comigo.

O dono me contou que o sonho dele sempre foi abrir um cafe assim. Disse que a parte mais interessante eh que o lugar atrai todos os tipos de pessoas, especialmente por estar ao lado de uma Universidade. Papo vem e papo vai, comecamos a conversar sobre a rubiacea e sua producao. Comentei que, infelizmente, a qualidade do cafe parece ser inversamente proporcional ao nivel de desenvolvimento dos paises que o produzem. Dos cafes que jah provei, nao ha nada mais incrivel do que os da Guatemala, Etiopia e da Somalia. Logo atras, alguns cafes mexicanos, indonesios e colombianos sao tambem muito bons. Os nossos sao muito bons tambem, mas o grosso do que produzimos eh cafe de baixissima qualidade pronto para ser exportado para os EUA em massa, abaixando drasticamente os precos no mercado internacional. Ainda somos o maior produtor de cafe do mundo (de longe) e temos grande influencia nos precos.

Mas o mercado de cafe no mundo estah morrendo. O preco da saca de cafe nunca esteve tao baixo e a producao nunca esteve tao alta. Pequenos produtores estao indo a falencia e se suicidando na India, na Africa e na America Central. A maior parte da producao eh controlada por grandes corporacoes como Sara Lee, Nestle e Procter&Gamble. Para piorar, nos ultimos dois anos o Vietna decidiu plantar cafe ao inves de arroz e agora eh um dos cinco maiores produtores mundiais, o que ajudou muito pouco a manter os precos em niveis estaveis.

Varios movimentos de conscientizacao sao feitos por aqui para lidar com a queda de precos, a maioria tem a ver com a demanda. As associacoes de consumidores exigem cada vez mais que o cafe venha de pequenos produtores ou cooperativas ao inves de grandes planatacoes e que haja uma valorizacao do pequeno fazendeiro, revertendo parte dos lucros para projetos de educacao e saude nas regioes produtoras. O dono do cafe que frequento participa disso e se disse empolgado com os resultados na regiao produtora do cafe que ele compra, na Guatemala, que visitou no meio do ano passado, antes de abrir a loja.

Um amigo alemao me disse uma vez que soh comprava cafe de "fazendeiros felizes". Imagino que neste momento os unicos produtores de cafe felizes devem morar em Davos ou em Gstaad. Infelizmente.

Matriarca

Minha tia-avó Carmela era uma candidata improvável à matriarca dos Santoro. Durante muito tempo ela estava em segundo plano, ofuscada pela personalidade forte da minha avó. Mas com o passar dos anos e a morte dos outros irmãos, ela sobreviveu para ser o único elo da família com os "velhos tempos".

Não tenho certeza, mas acho que tia Carmela foi a primeira Santoro a nascer no Brasil, o que por si só a torna um símbolo para todos nós. Além disso, gerou uma vasta prole - quatro filhos e um número de netos e bisnetos. Quando nos reunimos para as festas, vê-los todos juntos dá uma sensação forte de estabilidade e continuidade (quatro gerações!), muito embora um lado de mim saiba que a atitude correta seria chamar a polícia e prender metade daqueles cretinos.

A tia destoa do resto da família pela aparência. Ao invés dos traços escuros do Mezzogiorno italiano, ela e os seus têm feições claras, com cabelos louros e olhos azuis ou verdes, característicos do norte do país. Coisa curiosa, pois mesmo o seu irmão gêmeo era bem moreno. Talvez seja um gene recessivo ou então minha bisavó andou de simpatias por algum compatriota setentrional. O fato é que formou o ramo mais bonito dos Santoro, duas de suas netas inclusive se tornaram modelos profissionais.

Como era tradicional nas mulheres de sua geração, tia Carmela teve pouca instrução formal e viveu para a casa e os filhos. Acrescente-se ao pacote um marido mulherengo e trapaceiro que aprontou tramas inacreditáveis, parte do folclore da família - como inventar uma concessão de petróleo na Bahia e perder alguns (plural) apartamentos para amantes. Mas a tia sobreviveu a tudo isso com um estilo e uma serenidade que são verdadeiramente fenomenais. O tal gene recessivo devia ser de um conde normando.

Dificilmente ela terá uma sucessora. Minha mãe é rígida demais para o cargo, minha tia está no extremo oposto. Minhas primas não têm estabilidade emocional nem para brincar de casinha, quanto mais para reger uma família tão complicada. Eu estou ocupado bancando o acadêmico arrogante, papel que me cai bem e que exerço com a dedicação de um assassino de romance policial inglês. Creio que sobrará para meu irmão. Já é o consultor jurídico dos nossos e tem tudo para ser o futuro Dom Santoro, instaurando um patriarcado.

Mas hoje celebraremos o aniversário de 80 e muitos anos da nossa matriarca. O futuro fica para depois.

segunda-feira, março 14, 2005

Apagar a Luz

As festas dos meus colegas no IUPERJ se transformaram num agradável hábito das noites de sexta. Com freqüência, há alguma comemoração acontecendo. Na mais recente, tivemos uma em homenagem a dois colegas que deixam o Rio por Brasília. Um irá trabalhar na Unesco e o outro no Itamaraty.

Voltei para casa no início da madrugada me perguntando se um dia seguirei para a Terra Prometida do Planalto Central. Às vezes me dá a sensação de que fico no Rio para apagar a luz. Depois de ter viajado um tanto, caiu muito minha consideração pela cidade. Não a comparo com as capitais européias, que estão em outro contexto sócio-econômico, mas o fato é que o Rio se destaca negativamente mesmo em contraste com cidades latino-americanas como Buenos Aires ou Santiago, muito mais limpas, seguras e organizadas (vide a pesquisa divulgada nesta segunda pelo Globo). E nem vou falar da crise dos hospitais municipais...

Se a sexta foi de despedidas, o sábado foi de encontros. Um dos meus estudantes no curso de política internacional mudou para a mesma turma de espanhol e se apresentou como meu aluno. Como ele é bem mais velho do que eu - quarenta e muitos - houve uma onda de espanto e incredulidade entre os colegas do Cervantes, até porque eu só havia me descrito como "periodista y politólogo" e tive que explicar que também dou aulas.

A professora estava um tanto preocupada com a convivência entre eu e meu aluno, perguntando se não ficaríamos constrangidos. Rimos, porque já havíamos brincado entre nós com o inusitado da situação. Garantimos a ela que não há problemas, na verdade está sendo muito divertido.

Aliás, o clima no Cervantes está muito bom, com brincadeiras e pessoas interessantes na turma. Estava mesmo na hora de eu dar um reforço no espanhol, tanto melhor que essa necessidade se transforme num prazer.

sexta-feira, março 11, 2005

Dilbertianas


O mundo mágico da avaliação Posted by Hello

Ontem começou no IBASE um processo de avaliação de funcionários. É o terceiro pelo qual passo na minha algo nômade vida profissional – os outros foram no Globo e na StarMedia. Uma das melhores coisas de ter trabalhado em grandes empresas brasileiras e estrangeiras é ficar vacinado contra o discurso de que essas organizações são eficientes, racionais e modernas.

Nos processos anteriores, preenchi inúmeros questionários de auto-avaliação que pareciam saídos de um corredor obscuro do Vaticano, cheios de lacunas onde eu deveria expor meus pecados e omissões. Tudo para meu bem, claro, pois o objetivo último era me tornar um profissional melhor. Aumentar minha “empregabilidade”. A Velha Igreja pelo menos me prometia o Paraíso, embora eu não queira ir para o mesmo lugar que o cardeal Ratzinger.

Também passei por métodos heterodoxos como subir em árvore, jogar cabra cega e disputar partidas de paintball, para estimular a cooperação em equipe. Bem, pelo menos me diverti, mesmo com os gerentes recusando o convite dos subordinados para fazer um confronto “chefes x empregados”.

Óbvio, ninguém gosta de ser avaliado e ter seus defeitos expostos, em especial quando está em jogo a situação no trabalho. Óbvio, todas as organizações tendem à inércia burocrática e muita gente prefere uma rotina tediosa ao risco de mudanças, mesmo que para melhor.

Ainda assim, o discurso padrão dos avaliadores é uma coletânea dos clichês da auto-ajuda empresarial, com uma pitada de sentimentalismo. Um faz de conta. Como disse Roberto Justus a um participante de “O Aprendiz”: “Ninguém é tão bonzinho assim”. Aliás, o marqueteiro do amor teve um desempenho surpreendente nesse ótimo programa. Aprendi bastante sobre administração de empresas nele – cada um tem os gurus que merece.

Estou curioso para ver como o processo se dará numa ONG. Será adaptado às particularidades do trabalho social ou seguirá os mesmos moldes do que vivi no jornal e numa empresa de internet? A melhor frase da apresentação de ontem foi dita pelo consultor contratado pelo instituto: “O que é bom para a organização é bom para os funcionários”. Ratzinger teria dado o selo da aprovação papal.

quinta-feira, março 10, 2005

"O" e o Espirito Irlandes

O que significa ser irlandes? Nao pretendo me meter nesta discussao. Tenho pra mim que nem os irlandeses sabem. Apesar de nao saberem o que "significa" ser irlandes, eles sabem muito bem "ser" irlandeses.

Desculpem os esteriotipos. Mas ser irlandes eh uma mistura meio alcoolica: leva alguns pints de Guiness, algumas ounces de melancolia e litros de individualidade interiorizada. Ser irlandes nao eh facil: uma historia milenar, celtas, saxoes, Igreja Catolica e britanicos. Nao eh pra qualquer um. De Bernard Shaw a James Joyce, de Oscar Wilde a Bono, a velocidade com que os irlandeses produzem figuras bizarras, tristes ou tragicas nao eh brincadeira.

Sempre tive uma admiracao incrivel pelos irlandeses. Sempre foram um misterio para mim -- a avo paterna que nunca conheci era Conn, descendente direta dessa ilha maluca e fascinante.

Por que estou falando da Irlanda? Eh bem prosaico. Esta semana liguei a TV depois do trabalho e, sem muita atencao, comeco a ouvir uma cancao pra la de melancolica, apenas com um violao e um cello. O cara diz que "nao consegue tirar os olhos da mulher amada" e que "a vida eh assim mesmo". Uma voz feminina angelical entra aos poucos, completando a musica e por alguns momentos eh como se o cara fosse morrer de saudade e tristeza. Fiquei completamente hipnotizado. Confesso: o velho BB tem um queda por musicas assim.

O cara se chama Damien Rice e a musica se chama "The Blower's Daughter". O disco se chama (cripticamente) "O", o qual fiz questao de comprar imediatamente. Descobri que a musica estah no filme "Closer", que ainda nao tive a oportunidade de assistir. Segundo minha parceira de conspiracao, o Globo publicou algo sobre Rice na edicao de ontem.

Concluindo: o cara eh irlandes pra caramba. O disco eh irlandes pra caramba. Seja lah o que isso signifique.

terça-feira, março 08, 2005

Das Bibliotecas

Sentado na biblioteca com o computador. Silencio completo. Cada som que faco com as teclas eh imediatamente absorvido pelas colunas de livros a minha frente. Eh como se o tempo estivesse suspenso, o mundo estivesse pausado. A luz eh fluorescente, branca, morta. Os livros me rodeiam -- milhares deles, milhares de cores, linguas, pensamentos. Um labirinto de ideias.

Penso em como eh dificil construir uma biblioteca. Talvez a biblioteca seja a maior invencao humana. Nao digo a construcao fisica de uma biblioteca; no fundo eh apenas um grande predio, igual a varios outros. O genio da formacao de uma biblioteca estah no seu conteudo. Nao ha nada mais vivo do que uma biblioteca; ao mesmo tempo nao ha nada mais morto.

A biblioteca representa o extremo da condicao humana. Mesmo que escolhessemos passar a vida apenas em uma biblioteca, ainda assim nao seria suficiente. O homem nao pode conter a biblioteca.

Entretanto ela eh tao fragil. O tempo pode ser implacavel, o frio, o calor, as maos, o fogo. A biblioteca nos lembra de que tudo pode ser passageiro, exceto nossas almas.

Borges tinha razao: a biblioteca eh a metafora perfeita do mundo em que vivemos.

A Maldição do 101

Você compraria um apartamento usado da família Santoro? Se você gosta de emoções fortes, não acredita no sobrenatural e é um pouco mané, esta é sua oportunidade.

Mas vamos ao começo. Há 60 anos, meu avô e meu bisavô construíram um edifício. Cinco andares, cinco apartamentos - um para cada membro da família. Moro no que pertenceu ao nonno, o 401. O primeiro andar era da tia Angélica, uma irmã solteirona do vovô. Os clãs italianos de antigamente não estavam completos sem uma figura desse tipo, ela ajudou a criar todas as crianças da família.

Tia Angélica morreu sem filhos e deixou o imóvel - um quatro quartos, meu avô tinha mania de grandeza - para os sobrinhos. Não sei ao certo quantos eram, até porque alguns, como minhas ilustres mãe e tia, desistiram da herança porque num momento de lucidez perceberam que os ganhos não valiam a chateação. O inventário se arrasta há mais de dez anos e parece que agora os herdeiros finalmente fecharam um acordo e colocarão o apartamento à venda, por módicos R$50 mil. Precisa de modernização.

A questão é que o 101 é amaldiçoado. O apartamento vira e mexe é alugado para algum primo pobre ou agregado da família e ninguém consegue morar nele por mais de dois anos. Casamentos acabam, pessoas perdem o emprego e pelo menos um ex-ocupante enlouqueceu. Aliás, esse último ponto também se aplica a vários moradores do resto do prédio, que como vocês sabem é habitado exclusivamente pela gens Santoro. Nem na velha Fuscaldo, a aldeia calabresa onde começou a saga familiar, éramos tão amontoados.

Alguém se arrisca?

domingo, março 06, 2005

Um Jogador


Bem-vindos a Roletemburgo Posted by Hello


Adoro a literatura russa. Ivan Karamazóv sonhando com o Grande Inquisidor e devolvendo a Deus seu bilhete de entrada na humanidade. O príncipe Andrei moribundo no campo de batalha em Austerlitz, olhando para o céu e descobrindo que a glória da guerra é ilusão. Ivan Ilitch se recusando a acreditar em morrer, porque a morte é algo abstrato, que acontece no geral, e nunca numa vida particular como a dele, que teve uma bola de borracha quando criança.

A maoria dos escritores russos foi traduzida no Brasil em segunda mão, a partir de versões em francês. Mas a Editora 34 lançou a coleção "Leste", só com traduções diretas do russo, sob responsabilidade de mestres do ofício como Paulo Bezerra e Boris Schnaiderman. Deste último, acabei de ler a tradução de "Um Jogador", de Dostoiévski.

É um romance curto narrado pelo jovem preceptor de uma família da aristocracia russa, que passa férias no fictício balneário alemão de Roletemburgo, uma cidade cosmopolita onde convivem nobres e altos burgueses de toda a Europa Ocidental, no ambiente de um hotel de luxo e de um cassino.

Em Roletemburgo, todas as relações humanas giram em torno do dinheiro. O centro do enredo são as paixões de um general russo por uma cortesã francesa e da enteada do militar, o vértice de um quadrilátero amoroso que envolve o narrador, um francês e um inglês. A melhor personagem é a avó do general, uma velha, excêntrica e milionária condessa que se vê presa de um súbito entusiasmo pelo jogo.

O próprio Dostoiévski era um obcecado pela roleta e pelo carteado e as descrições da paixão e do nervosismo dos jogadores são magnifícas, bem como o desprezo russo pelas mudanças sociais na Europa burguesa, racional e industrial - as sátiras aos alemães e franceses são especialmente cortantes, bem como a aproximação entre o lado irracional e místico do jogo e a alma nacional russa.

sexta-feira, março 04, 2005

Blogmania

Quando eu estava no primeiro período da UFF, mestre Alvito me ensinou que o conhecimento é artigo de luxo e que precisa de muito trabalho, árduo trabalho para domá-lo. Exigia de nos calouros (hoje somos mestres, doutores, diplomatas, etc..) que escrevessemos, escrevessemos, escrevessemos, toda semana. Resumos, resenhas, fichamentos se sucediam uns atrás dos outros, e ao final, eu entendi que só guardamos mesmo aquilo que lemos quando escrevemos sobre o assunto.

Melhor que ler e escrever é discutir. Grupos de estudo são excelente forma de memorizar, entender e tirar dúvidas. Compartilhar o conhecimento, dialeticamente, é o melhor modo de multiplicá-lo. E sem demagogia nenhuma, a maior parte do que aprendi na vida, aprendi depois que comecei a lecionar. Teaching is learning twice.

Já se vão dez anos dos tempos de calouro. Marcos Alvito não dá mais aula de História Antiga ( depois que virou antropólogo, joga rugby, estuda favelas, samba e futebol) . Eu não sou mais historiador, e, agora do outro lado, voltei para o primeiro período. Descobri que fichamentos, resumos e resenhas são ótimos se você é professor de Universidade Pública e só tem uma, no máximo duas turmas. Aí é mole passar trabalhinhos individuais toda semana. Se você tem 6, 8, 10, ou como eu, 16 turmas num semestre e ainda assim quiser seguir os sábios ensinamentos do mestre de Acari... Adeus domingos.

Mas se não o fazemos, os alunos não escrevem sobre o que lêem. Tá certo que a sala de aula deve ser um ambiente de discussão profícuo para a sedimentação do conhecimento, mas se não é obrigado, exigido, cobrado, aluno nenhum, nem os do mestrado, lêem o que é devido. O que fazer?

Quem me mostrou a solução, foi o sábio e cada vez mais pensador da educação, mestre BB, que sem saber criou um dos mais profícuos grupos de estudo da rede na forma deste blog do exílio. Aqui, pude lembrar-me das lições de História Antiga e perceber que escrevendo, assentamos o saber, e discutindo, levantamos dúvidas, damos forma a argumentos, e, em suma, aprendemos, aprendemos. Tenho aprendido muito com vocês (BB, Maurício e leitores).

Assim sendo, colocarei em prática sua idéia com os calouros de RI da PUC. A partir da próxima semana, eles deverão postar, semanalmente, seus trabalhos da disciplina de Formação do Sistema Internacional, em blogs. Eu 'corrigirei' as tarefas através de sugestões nos comentários de cada post. Para tanto terei a ajuda voluntária de monitores informais do 5o periodo (Dominique, Pablo e Danilo), além do que poderei fazê-lo de casa, da cama, do banheiro, online e sem precisar ficar carregando toneladas de papel todos os dias. A Amazônia agradece.

Todos os blogs são homenagens aos formadores do Sistema Internacional até o século XIX, e são um incentivo a mais aos alunos para competirem e discutirem entre si, trocando idéias e debatendo. Tudo isso de modo mais agradável e informal que os trabalhos acadêmicos austeros e sisudos aos quais estamos acostumados. Estou convencido que quanto mais alegre e interessante é a apresentação do saber, mais facilmente ele frutifica.

Para os que quiserem acompanhar minha mais nova (e entusiástica) experiência pedagógica, sejam bem vindos de volta ao segundo milênio e divirtam-se:

http://vestfalia.blogspot.com/
http://monroejames.blogspot.com/
http://congressodeviena.blogspot.com/
http://castlereagh.blogspot.com/
http://benitojuarez.blogspot.com/
http://bonapartenapoleao.blogspot.com/
http://reileopoldo2.blogspot.com/
http://rainhavitoria.blogspot.com/
http://metternich.blogspot.com/
http://cardealrichelieu.blogspot.com/
http://generalsanmartin.blogspot.com/
http://marxkarl.blogspot.com/
http://kaiserguilherme2.blogspot.com/

Manual das Pobres no BBB

Não tenho escrito sobre o Big Brother porque o programa ficou um tanto chato com a eliminação dos vilões. O público, no seu anseio por justiça, limou parte da diversão. Imaginem "Senhora do Destino" sem a Nazaré. Pois é. No último paredão Tatiana, um esteriótipo ambulante da loura marrenta, perdeu para Aline, que entrou no show pelo sorteio, após Marielza (alguém ainda lembra dela?) ter um derrame no ofurô.

A permanência de Aline me inspirou a elaborar regras de sobrevivência para as pobres que entram de gaiato no fantástico mundo da classe média modernex do BBB:

1 - Seja humilde. O Brasil é um país conformista. Os pobres merecem solidariedade e carinho paternalista, como ganhar roupas usadas e cobertor velho, mas só se souberem seu lugar.

2- Seja burra. Inteligência assusta e com freqüência se confunde com arrogância. Em nenhuma circunstância apareça com livros, a não ser talvez a Bíblia (ver item 4).

3 - Seja feia. Beleza ofende. Vai indispô-la com as donas de casa frustradas que compõem boa parte do eleitorado e os homens também votarão em você, porque têm pressa em ver seu ensaio na Playboy. Exceção: em apenas uma noite, durante a festa, apareça bonita. Isso vai dar esperanças a muita gente do outro lado da tela ("Eu também posso!").

4 - Seja religiosa, moderadamente, de preferência com gestos católicos, mais aceitos socialmente. Referências a santos gente boa, como S. Francisco de Assis, contam pontos. Deixe de fora a leva de nazi-fascistas beatificados por João Paulo II, como a turma da Opus Dei.

5 - Faça referência, de passagem, aos parentes que você vai ajudar se ganhar o prêmio. Inválidos e crianças em destaque.

6 - Leve umas empadinhas para vender aos colegas da casa ("É para me dar uma força, pessoal").

7- Mostre despreparo para lidar com os aparelhos e eletrodomésticos mais sofisticados.

8- Seja branca ou morena. Negras não vencem o Big Brother. Quem elas pensam que são?

9- De vez em quando chore com saudades da família e do seu barraco. Aproveite a oportunidade para dizer que lá é que você se sente feliz.

É isso. Deixo-vos com a frase da semana, dita terça-feira por um repórter do folhetim das 20h: "Sou jornalista, mas sou responsável!".

quarta-feira, março 02, 2005

Ensinando e Aprendendo

Ontem foi o ultimo encontro do Workshop sobre Ensino do qual participei. Depois de seis semanas, aqui vao alguns comentarios aleatorios sobre o tema e sobre a experiencia.

(1) Minhas expectativas ficaram bem aquem do esperado. Esperava discussoes serias a respeito da questao da aprendizagem/ensino, ganhei um monte de dicas de aplicacao rapida, mas sem muita conexao entre si. No fim, achei que o professor que administrou o workshop estava entediado (!) com tudo aquilo e ficou feliz que tivesse terminado. Acho que foi este o clima que ficou. Seis semanas nao sao suficientes para a importancia do tema. Teoria e pratica de ensino merecem, pelo menos, um semestre, curso completo, se nao mais.

(2) Sahi do workshop completemente convencido da necessidade, mais do que imediata, de implementar em nossos programas de doutorado um curso (ou serie de cursos) voltados para o ensino. Formacao de academicos sem preparacao para ensino?? Ridiculo. Especialmente quando no Brasil a maior parte do tempo de qualquer academico serio eh dedicada ao ensino para a graduacao ou para a pos. Para o ensino basico e medio, nem se fala. Sei que os alunos do doutorado iam chiar, dizer que nao tem tempo, etc. Isto eh um mito. Se realmente querem seguir carreira academica, tem que aceitar que o ensino eh grande parte do pacote. Nao estah satisfeito? Vai fazer MBA.

(3) Fiquei pensando no formato de um curso como este para as nossas necessidades como academicos de Ciencia Politica-Relacoes Internacionais. Seria muito legal promover uma serie de seminarios em que fosse possivel discutir entre os professores e alunos do doutorado questoes de ensino e aprendizagem. Eh impressionante a quantidade de tempo que gastamos dentro da sala de aula (como alunos ou professores) sem quase nunca discutirmos sobre ensino fora dela. O ensino funciona como se fosse uma especie de "magica" que simplesmente "cai do ceu". Ha sempre espaco para melhora e nos deveriamos ser os primeiros a admitir isso.

(4) No fim dessa experiencia, me senti um pouco como um enologo. Passei seis semanas experimentando diversos sabores, combinacoes, gostos e aromas. No fim, para quem tem gosto pelo ensino, dah vontade de sair, comprar algumas garrafas de vinho e beber, ora essa. Tenho vontade de dar aulas, nao como assistente de ensino (como se faz por aqui), mas com alunos e materia de verdade.

(5) Pergunta para os colegas conspiradores: quais sao as impressoes dos senhores? Serah que estou muito entusiasmado? Gostaria de criticas e comentarios a respeito, se possivel.

terça-feira, março 01, 2005

Cartas da Zona de Guerra


A face humana do conflito Posted by Hello

Meu irmão me recomendou e me emprestou o livro mais recente de Michael Moore, "Cartas da Zona de Guerra", que é uma coletânea de e-mails enviados a ele por soldados americanos no Iraque, no Afeganistão e em outros postos, incluindo veteranos na reserva e também parentes de militares na ativa.

As cartas são escritas por gente comum que caiu na maior furada de sua vida: a maioria dos remetentes é de jovens pobres, de pequenas cidades americanas, que se alistaram por 5 ou 6 anos nas Forças Armadas, ao sair do segundo grau sem perspectiva de bons empregos e em busca do crédito educacional que lhes possibilitaria cursar uma universidade.

Claro, sabiam que podiam ir para uma guerra, é parte do contrato. Mas é duro ver a face humana desse drama político, com jovens de 19 ou 20 anos que perderam amigos, ou mesmo um marido ou esposa - é impressionante como eles se casam cedo, será um padrão na população dos EUA ou algo exclusivo das Forças Armadas? As cartas dos familiares também são um testemunho doloroso da saudade, da solidão e do desamparo diante da falta de notícias e da frieza da burocracia do Departamento de Defesa.

O retrato que surge da guerra do Iraque é familiar ao noticiário: população hostil, com uma cultura muito diferente, que os jovens soldados não conseguem entender, o calor e a poeira, más condições de higiene etc. Aparece também a falta de equipamento adequado dos militares e o processo de "privatização da guerra", através da ação de companhias particulares de segurança. Os soldados se irritam com o fato de que seus colegas na iniciativa privada recebem até quatro vezes mais, além de evidentemente terem muito menos controle sobre suas atividades.

Impressiona no livro a força da sociedade civil americana, com dezenas de associações voluntárias para dar apoio aos militares no exterior, ou a seus parentes nos EUA. Há até uma organização, Military Families Speak Out, que reúne os opositores da guerra entre as famílias dos membros das Forças Armadas.
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