segunda-feira, outubro 31, 2005

Questão de Justiça

Na semana passada, ao escrever sobre a Operação Condor, fiz referência à péssima política que o governo Lula adotou para lidar com a questão dos crimes da ditadura militar. Nesta segunda o Globo publicou entrevista com Suzana Lisboa, uma ativista de direitos humanos que acaba de deixar a Comissão de Mortos e Desaparecidos. Ela critica a apatia do governo diante dos militares e a falta de respeito do presidente com os parentes das vítimas, que sequer foram recebidos no Planalto.

A inação do governo nesse campo surpreende - é de fato um retrocesso com relação aos atos de FHC. Quase todos os dirigentes do PT sofreram perseguição na ditadura, como membros de sindicatos, comunidades religiosas, movimentos estudantis etc. Na Argentina e no Chile, a ascensão ao poder de políticos oriundos da esquerda peronista ou do Partido Socialista levou a novas investigações sobre os crimes dos militares. A Suprema Corte argentina inclusive cancelou as leis de anistia , a Ponto Final e a Obediência Devida. No Chile, encontraram-se brechas legais para processar os acusados - por exemplo, considerando os "desaparecidos" como estando vivos e portanto o crime de seqüestro por parte da repressão ainda em curso.

A Lei de Anistia brasileira é uma concessão feita aos militares no contexto da transição negociada para a democracia, uma vez que aqui não houve o colapso do regime por uma derrota militar (Argentina) ou em plebiscito (Chile). Pelo contrário, há um monte de órfãos da ditadura, a própria esquerda quase chora de emoção louvando o governo Geisel. Quer dizer, não me parece haver o apoio político necessário para levar aos tribunais os criminosos.

Ainda assim, há muito o que poderia ser feito, a começar pela instalação de uma Comissão de Verdade e Reconciliação, nos moldes das que foram estabelecidas na África do Sul e em vários países latino-americanos. A abertura dos arquivos dos órgãos de repressão. O uso dos mecanismos do direito internacional para punir torturadores envolvidos na Condor e em outros crimes contra cidadãos estrangeiros. O uso do que os argentinos chamam de "escracho", a identificação pública e o protesto social como forma de punir torturadores. Instrumentos não faltam.

domingo, outubro 30, 2005

Nosso Homem em Havana


O próximo round da crise política Posted by Picasa

Tudo parecia resolvido na crise política, com a punição de meia dúzia de bodes expiatórios e do boi bandido Zé Dirceu. Mas a denúncia de que o governo cubano doou US$3 milhões para a campanha de Lula muda o jogo.

A oposição havia apostado na tática de poupar o presidente de ataques diretos, preferindo desgastá-lo pelas denúncias contra o PT. Deu errado. A popularidade de Lula caiu, mas continua alta. Os programas sociais como o Bolsa Famíla renderam uma forte base eleitoral ao presidente, que prossegue como o favorito para as eleições de 2006.

Mas os dólares cubanos são uma oportunidade e tanto para a oposição. A mesma denúncia reúne caixa 2 e influência estrangeira de uma ditadura comunista! Pode render impeachment e até o cancelamento do registro do PT. É o tipo de erro crasso bem verossímil de ter sido cometido pelo Diretório Nacional do partido.

Na Guerra Fria, os dólares de Fidel dariam um excelente roteiro para filme de espionagem. Nos dias de hoje, soa até meio ridículo. Se o mensalão ainda viesse da China, potência em ascensão, vá lá... Mas de Cuba? O PT sempre foi meio demodé. Havana deveria usar esse dinheiro para comprar desodorante e papel higiênico para sua população, fora o inusitado de financiar eleições em outros países e não realizá-las na ilha.

quinta-feira, outubro 27, 2005

Os Anos do Condor


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Nem toda cooperação internacional se dá por causas nobres e tem efeitos positivos. O jornalista americano John Dinges fez um excelente relato de uma integração regional perversa em seu livro "Os Anos do Condor - uma década de terrorismo internacional no Cone Sul". É o melhor trabalho que conheço sobre o tema.

Dinges conta como a Dina, o serviço secreto do governo Pinochet, articulou a cooperação entre seus equivalentes na América do Sul. Começou com o objetivo de reprimir os movimentos armados que efrentavam as ditaduras militares do continente. Logo se tornou um método para eliminar rivais políticos dos regimes autoritários, incluindo líderes democráticos e moderados no exílio.

A Operação Condor dividiu-se em três fases: 1) Troca de informações e montagem de banco de dados; 2) Prisões e assassinatos nos países sul-americanos; 3) Assassinatos fora do continente. As fases 1 e 2 correram sem maiores empecilhos. Mas a Condor naufragou após seu gesto mais audacioso: o atentado a bomba que matou em Washington o ex-chanceler e ministro da Defesa de Allende, Orlando Letellier. Após esse ato, os EUA e os países europeus pressionaram seus aliados sul-americanos para refrear as operações no exterior.

Como Dinges é americano, boa parte do livro é dedicada a analisar as reações que a Condor provocou no Departamento de Estado (à epoca, comandado por Kissinger) e na CIA (dirigida por Bush pai). As fontes são entrevistas e documentos secretos desclassificados recentemente, no governo Clinton. O que aparece é o apoio, ou ao menos a indiferença, dos altos escalões dos EUA à Condor, ao passo que muitos diplomatas, incluindo embaixadores, alertavam seus superiores para as atrocidades e sugeriam mudanças de rumo.

O livro se concentra no Chile - o subtítulo original é "How Pinochet and his allies brought terrorism to three continents" - e na Argentina, falando pouco do Brasil. Naquele momento nosso país já se encaminhava para a Abertura e Dinges diz que os militares brasileiros não participaram das operações da Condor na Europa e nos EUA, embora tenham colaborado na América do Sul.

A mim impressionou como o padrão de assassinar políticos que pudessem representar alternativas à ditadura se encaixa na morte, em 1976, de João Goulart, JK e Carlos Lacerda. Todos mortos com poucos meses de diferença, em circunstâncias suspeitas - acidente de carro, doenças súbitas. Dinges também notou os fatos e afirma que os casos precisam ser investigados.

Dinges dedica dois ótimos capítulos a tratar dos processos e julgamentos contra os crimes das ditaduras militares - excelente análise de jornalismo investigativo e dos novos recursos do direito internacional à disposição dos defensores de direitos humanos. Pena que o Brasil esteja em larga medida fora dessas boas novas. A política do governo Lula para esse campo é incrivelmente ruim, anos atrás do que está sendo feito no Chile e na Argentina.

quarta-feira, outubro 26, 2005

O Senhor das Armas



"Há mais de 550 milhões de armas de fogo circulando pelo mundo. Isto é, uma para cada 12 pessoas. A única pergunta: como armamos as outras 11?". Assim começa a autobiografia do traficante de armas Yuri Orlov (ótima interpretação de Nicolas Cage), que narra sua ascensão no ofício, das primeiras vendas a gangues no Brooklyn até se tornar um magnata no mundo turbulento do pós-Guerra Fria.

O roteiro do diretor Andrew Niccol (o mesmo de Show de Truman) é espertíssimo, cheio de diálogos rápidos e inteligentes. Destaco a primorosa sequência inicial, que mostra a trajetória de uma bala desde sua fabricação em algum país da Europa Oriental até estourar a cabeça de um adolescente na África. Yuri se retrata como um anti-herói: determinado, criativo, ousado mas consumido pelo desejo insaciável de riqueza e reconhecimento social, que acaba tragando todos os que circulam a sua volta.

As atividades de Yuri atravessam Alemanha, Líbano, Colômbia, Ucrânia, Libéria e Serra Leoa enfrentando a Interpol, traficantes rivais e clientes pouco confiáveis. O roteiro ressalta o quanto governos precisam de homens como Yuri, para fazer o serviço sujo de armar aliados indigestos, sem deixar impressões digitais. "O Jardineiro Fiel" vê o mundo em preto e branco, aqui estamos nas tonalidades do cinza.

Recomendo o filme a todo mundo com interesse em relações internacionais. Se você for meu aluno, entenda essa dica como um dever de casa, o roteiro parece uma aplicação prática das nossas discussões teóricas sobre a “fragmentação das ameaças” no pós-Guerra Fria.

terça-feira, outubro 25, 2005

Observatório Gloria Perez: de olho em América


Cenário ridículo: Tiao em quase-morte Posted by Picasa

Uma amiga foi renovar o passaporte para uma viagem aos EUA. Na Polícia Federal os agentes lhe contaram que aumentou muito o número de pobres pedindo o documento desde que a novela começou: "Eles chegam aqui dizendo que querem ir para a América, alguns vêm do interior e são tão pobres que nunca viram nem fotografia, ficam olhando os próprios retratos deslumbrados."

Como vocês sabem, não vejo mais a novela, revoltado com a baixa qualidade da mesma. Mas no capítulo de ontem fiquei impressionado. A débil mental da Sol quer voltar à América e uma coadjuvante qualquer lhe ensinava em detalhes uma rota alternativa, pela República Dominicana, para evitar o deserto mexicano. Deve ser lobby de quadrilha de coiotes.

Outra trama que prendeu minha atenção: o rapaz que é enteado do Jatobá teve um filho com outra coadjuvante do núcleo de Vila Isabel. E não é que o bom padrasto se ofereceu para cuidar da criança, enquanto os pais adolescentes seguem livres, leves e soltos, curtindo o baile funk? Belo exemplo para os telespectadores da mesma faixa etária (se não emigrarem antes pela rota dominicana). Para não falar do pobre bebê, que crescerá ouvindo os clichês do Jatobá e aquela música mala do Roberto Carlos.

Ao menos o Glauco foi preso, por fraude fiscal e lavagem de dinheiro. Com as operações recentes da Polícia Federal, é uma situação verossímil, inclusive porque ele foi solto poucos capítulos depois. Lurdinha o pressiona para devolver o dinheiro roubado. Tá bom. Vamos ver quem se arrepende primeiro: Glauco, Delúbio ou Dirceu. Maluf pai e filhos são hors concours.

Parece que o Tião monta hoje o Boi Bandido e passará por uma "experiência de quase-morte." Mais ou menos como o cérebro do espectador. Se for para tirar a subtrama espírita da novela, já está de ótimo tamanho. Não agüento mais o Chico Diaz bancando o Obi-Wan Kenobi de Boiadeiros.

segunda-feira, outubro 24, 2005

Medo, Desconfiança e Indiferença



A vitória do não no referendo do desarmamento foi avassaladora e atravessou todas as camadas sociais e regiões do país. Três sentimentos me parecem decisivos para esse resultado:

1 - Medo: o Brasil é inseguro e as pessoas acham que é melhor ter uma arma para se proteger, ou ao menos fazer com que os bandidos pensem nessa possibilidade antes de invadir uma casa.

2 - Desconfiança: o Estado não é capaz de garantir a segurança. Nessa perspectiva também não é possível confiar nos vizinhos ou na comunidade. O indívudo pode contar apenas consigo mesmo. Essa posição representa ainda o ceticismo quanto às razões do referendo ("O que eles [políticos] querem com a gente? O que estão aprontando?") e com certeza a frustração com o governo Lula influiu na vitória do não.

3 - Indiferença: Os dados sobre homicídios por armas de fogo foram bastante divulgados durante a campanha e uma boa parte da população sabe que a maioria ocorre por motivos fúteis em brigas entre amigos, conhecidos e parentes, acidentes com crianças etc. Mas essa não foi a questão do referendo. Sejamos francos: as pessoas não se importam com o que acontece com as outras, só com o que se passa em seu círculo íntimo. Daí vem um argumento que foi forte durante a campanha: "se os outros não sabem usar suas armas, problema deles, eu cuido da minha".

Poderia ser diferente? O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo e nenhum sistema social como este se sustenta sem a indiferença como um de seus pilares.

Uma amiga cientista política, educada em grande parte na França, resumiu bem o que sinto nesta manhã de segunda: "de repente, eu tenho a impressão de que existe um fosso entre os valores com os quais me identifico e os da maioria dos brasileiros." Os valores e a cultura mudam com o tempo e talvez um dia o Brasil seja diferente. Não hoje, infelizmente.

domingo, outubro 23, 2005

O Jardineiro Fiel


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Minhas expectativas para o filme de Fernando Meirelles eram altas: excelente diretor, elenco estrelar e baseado em romance do mestre de espionagem John Le Carré. Acabei me decepcionando um pouco: é um bom suspense político sobre a ação das grandes indústrias farmacêuticas da África, mas peca pela trama previsível e pelo maniqueísmo.

O protagonista é um pacato diplomata britânico no Quênia (Ralph Fiennes, ótimo) cuja vida muda radicalmente após o brutal assassinato de sua mulher, Tessa (Rachel Weisz), uma ativista envolvida em investigações sobre grandes empresas. Claro que o enredo se desenvolve de modo a revelar as ligações escusas entre o governo de Sua Majestade e as corporações transnacionais - pode chocar o público europeu ou americano, mas só se eles não lêem seus próprios jornais em casos como Enron. No Brasil, é lugar comum.

Embora essas coisas aconteçam a todo tempo, também há o outro lado da moeda. Conheço muita gente boa na área social do governo e imagino que existam pessoas semelhantes em outros países. O programa anti-AIDS brasileiro, por exemplo, fruto de um excelente trabalho conjunto entre o Ministério da Saúde e as organizações da sociedade civil. É um tipo de história que me parece bem mais interessante do que o conflito apresentado no filme.

Apesar das minhas implicâncias com o roteiro, justiça seja feita à direção de Meirelles: impôs um estilo próprio ao filme e transformou o Quênia num protagonista, mostrando com grande sensibilidade suas paisagens, seus povos e até suas favelas.

sexta-feira, outubro 21, 2005

Planície

Estamos com uma campanha no Ibase em homenagem aos 70 anos de nascimento de Betinho, fundador do instituto. Uma das atividades é uma série de visitas a escolas, tarefa que coube a um grupo de jovens pesquisadores, incluindo eu. Resolvemos romper com o padrão tradicional de palestra seguida de debate e fizemos parceria com o Centro do Teatro do Oprimido. Montamos uma dinâmica com exercícios teatrais preparada por Augusto Boal e a usamos para tentar discutir os problemas dos estudantes.

As visitas começaram nesta semana e ontem estive em uma escola na Baixada Fluminense, com uma turma do segundo ano do ensino médio. A experiência foi marcante, porque a apatia dos jovens virou nossos planos pelo avesso. Não é que estivessem desinteressados. Longe disso, dava para perceber pelos olhares e gestos a inquietação e a vontade de participar. Contudo, não conseguiam coragem para expressar suas idéias e sentimentos. Ao ponto em que suspendemos a dinâmica. Puxei um debate sobre os problemas que enfrentavam na escola, as expectativas para o vestibular.

A maioria das reclamações dizia respeito aos problemas com professores, falta de diálogo, dificuldades da infra-estrutura deficiente da escola. A conversa sobre o mundo lá fora não conseguiu engrenar. Melhorou um pouco quando me apresentei como professor universitário - passaram até a me chamar de "senhor", apesar dos meus protestos (detesto esse tratamento!). Contei alguns casos do cotidiano acadêmico que despertaram curiosidade, quiseram saber até o que eu ensino.

A professora da turma depois comentou conosco que era bobagem tentarmos algo com aqueles alunos, eles eram muito ruins e não adiantaria. Claro que com esse nível de estimulo, a auto-estima daqueles jovens está na lona. A experiência de ontem foi extrema, mas os mesmos problemas se repetiram em menor grau nas outras visitas.

Não se trata de pobreza. Lecionei três anos num pré-vestibular comunitário numa região tão ou mais carente do que a Baixada. O que faz a diferença são outros fatores: presença de grupos culturais, de organizações religiosas, movimento de moradores ou de estudantes. A participação em associações abre os horizontes, dá confiança, ensina a se relacionar com o mundo mais amplo, fora da esfera da família e amigos íntimos.

Fiquei com o sentimento que passo tempo demais na Montanha Mágica e na Torre de Marfim e que é preciso descer à planície e aprender com o país real. O fosso é grande, mas sei por experiência própria que ele pode ser transposto e que os ganhos são extraordinários.

A propósito, a escola que visitei fez um simulado do referendo. Claro que com aquele nível de sociabilidade e confiança mútua, a vitória foi do "não".

quinta-feira, outubro 20, 2005

Cultura do Medo



Será que vai ganhar o Não no referendo? É o que parece. No meu próprio círculo social - homens com nível universitário e renda acima de dez salários mínimos - o apoio ao não chega a 70%. Estou na minoria, sou quase um traidor de classe. Se descobrirem isso em Ipanema, nunca mais poderei freqüentar a Livraria da Travessa depois de caminhar na praia.

Existem muitas armas no Brasil, mas mesmo a estimativa mais pessimista fala em 15 milhões, bem abaixo dos cerca de 50% dos eleitores que se manifestam em prol do não. Ou seja, as pessoas não estão votando para manter armas, embora alguns queiram preservar essa possibilidade. Contudo, me parece que a razão principal para o apoio ao não é a força da cultura do medo e da desconfiança no Brasil. Não se trata apenas da preocupação com a segurança (de resto, bem sensata) mas também do descrédito com relação ao Estado e às instituições públicas, como atestam as pesquisas de opinião.

Muitas das pessoas com quem converso acreditam que o Estado não tem condições de implantar uma política de desarmamento, ou outras ações de segurança pública. Que a corrupção é endêmica e não tem jeito. Vários eleitores associaram o referendo ao governo Lula, embora a proposta venha dos tempos de FHC e seja de autoria de um parlamentar do PMDB, o senador Gerson Camata. Em todo caso, querem punir o presidente votando pelo não. A população apostou na esperança contra o medo em 2002 e recebeu em troca a frustração total das expectativas. Agora querem dar o troco.

Me parece que o tom da campanha do não é uma prévia do que será a campanha presidencial de 2006: um discurso amargo, ressentido, mexendo com o que um pitoresco político brasileiro chamaria de "instintos primitivos" dos eleitores. Há um mercado farto para esse discurso, como mostra o sucesso da propaganda do não.

quarta-feira, outubro 19, 2005

Nenhum Leblon Existe


No fim de semana conheci numa festa uma jornalista que prepara uma dissertação de mestrado sobre telenovelas. A conversa logo girou para uma lista que comecei a elaborar com BB – e que nunca terminamos – sobre as características do Brasil das novelas. Seguem alguns itens:

- Ninguém é funcionário público, a não ser nas tramas ambientadas no interior e/ou nas novelas de época.
- Todos os patrões se dão bem com as empregadas domésticas
- Todos os patrões sabem os nomes dos funcionários de suas empresas
- O país é 90% branco, e dos 10% restantes metade é uma família negra de classe média.
- Não existem favelas. O núcleo pobre mora em subúrbios made in Projac.
- A maioria das pessoas é dona de seu próprio negócio, tirando os coadjuvantes que trabalham nas empresas do núcleo rico.
- A economia brasileira é dominada por empresas familiares que parecem ser grandes, mas das quais a gente só vê meia dúzia de funcionários, incluindo a moça que serve o café. Não existem multinacionais. Não existem estatais.
- O Brasil tem expressivas minorias nacionais (italianos, árabes, ciganos) que passam os dias vestidas em trajes típicos, dançando ritmos folclóricos e falando português com sotaque. No caso dos portugueses, as categorias não se aplicam, mas entra em vigor a regra de que serão boas pessoas, para facilitar a entrada da novela no mercado lusitano.
- A classe média tem um padrão de vida de seriado da Sony, e toma um café da manhã digno do Copacabana Palace.
- O Leblon existe.

A quem possa interessar: a foto de mestre Manoel Carlos que ilustra este post foi retirada de um site... russo! O que são “Guerra Paz” e “Os Irmãos Karamazóvi” comparados a “Laços de Família” e “Mulheres Apaixonadas” !

segunda-feira, outubro 17, 2005

Por Ti, América



O seminário do qual participei nos últimos dias reuniu líderes de movimentos sociais de vários países da América Latina e da Europa. Um ponto que dividiu os participantes foi a avaliação do governo Chávez. Ficou claro que todos queríamos saber mais sobre o que se passa na Venezuela, ponto de partida para uma das melhores conversas que tive no evento, sobre o desconhecimento que os brasileiros temos com relação a nossos vizinhos de continente - falta de informação que às vezes reflete o desprezo por esses países, ou que pode levar a essa atitude.

Um amigo europeu disse não entender o porquê desse afastamento, comparando com o que acontece na Europa, onde relações intra-continentais são muito intensas. Ele chamou a atenção para que a unidade cultural e lingüística no Novo Mundo é bem maior do que no Velho, o que facilita muito a logística dos processo de integração. Afirmei que era preciso olhar para a história da América Latina: a dominação colonial que proibia o comércio entre brasileiros e hispano-americanos, a dependência externa que conduzia à montagem da infra-estrutura ligando minas/plantações ao portos - isto é, aos mercados nos EUA e na Europa - e não às capitais do continente.

E, claro, a submissão ideológica que sobrevaloriza tudo que vem do mundo desenvolvido, em detrimento da busca de soluções locais para nossos problemas. Podemos aprender muito com a política de direitos humanos da Argentina, com a seriedade da administração pública do Chile e da Costa Rica, com os mecanismos institucionais para a resolução de conflitos na América Central, com a mobilização dos povos indígenas da Bolívia e do Equador.

Concordamos que a situação melhorou. As universidades brasileiras começam a criar centros de pesquisa voltados para a América Latina, o ensino de espanhol cresce rapidamente, as viagens (pelo menos à Argentina e ao Chile) se tornam mais freqüentes... Sem dúvida permanecem muitos problemas, inclusive a falta de jornalistas brasileiros nos países hispano-americanos. A internet ajuda a suprir o vazio - uma boa dica é ler o Soy Loco por Ti, blog afinadíssimo com os temas dos Conspiradores e tocado do Recife pelo Luiz, irmão de armas no jornalismo.

Por uma feliz coincidência, o Centro Cultural do Banco do Brasil está justamente inaugurando uma exposição "Por Ti, América", sobre a arte da América antes da colonização européia - na foto, uma escultura azteca. Ela é parte de uma série de muito sucesso que o CCBB vem organizando e incluiu a mostra de arte africana e de arte pré-histórica brasileira. Junto com a exposição haverá um festival de cinema latino-americano contemporâneo. Ou seja: programa excelente para todos os que queremos aproximar o Brasil da Hispano-América.

Amanhã viajo novamente, desta vez para São Paulo (sim, estou trabalhando demais) mas volto ao blog na quarta.

quarta-feira, outubro 12, 2005

Negros, Estrangeiros


Agudás no Benin (foto: Milton Guran) Posted by Picasa

Um tema que me fascina e sobre o qual sempre gosto de saber mais é a história do ex-escravos brasileiros que retornaram à África. Eles estabeleceram prósperas comunidades de comerciantes e artesãos nos atuais Benin e Nigéria, às vezes se tornando grandes traficantes de escravos, como o célebre Francisco Félix de Souza, o Chachá. São conhecidos como "agudás" na língua local.

A biblioteca do Iuperj é minha pastora e nada me faltará. Encontrei um livro muito interessante sobre o tema, "Negros, Estrageiros" da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha. Na primeira parte ela analisa a situação dos ex-escravos no Brasil do século XIX, mostrando que os libertos eram vistos com desconfiança pela elite, que enxergava neles os líderes de potenciais rebeliões de escravos. Após as grandes revoltas da década de 1830, vários foram deportados para a África ou pressionados a deixar o Brasil.

Na segunda parte, escreve sobre a comunidade de descendentes de brasileiros na Nigéria, destacando a luta de poder - eles quase se tornaram a elite econômica do país, até serem desalojados pelos colonizadores ingleses, que assumiram controle do país no fim do século XIX.

Outro antropólogo, Milton Guran, também andou por lá e fez um belo livros de fotos sobre os agudás. A que ilustra este post é uma celebração a Nosso Senhor do Bomfim, no Benin, com uma dança que os descendentes de brasileiros chamam de samba.

Diplomatas brasileiros que serviram na Nigéria foram outros que se interessaram pelo tema. Antonio Olinto escreveu um romance muito elogiado (que infelizmente ainda não li) chamado "A Casa da Água", sobre uma família de ex-escravos brasileiros que migra para o país. A Water House existiu mesmo, creio que em Lagos, e ficou famosa pelo grande poço construído por artesãos brasileiros. Já o embaixador Alberto Costa e Silva, mestre dos africanistas pátrios, têm vários livros sobre o assunto, como a biografia do Chachá e os ensaios de "Um Rio Chamado Atlântico".

Uma colega blogueira, a Ana Lúcia, disponibilizou belíssimas imagens sobre a arte e a cultura que nasceram dessa rica relação África-Brasil, acrescidas dos relatos da própria Ana, que é historiadora da arte e compartilha com este que vos escreve o entusiasmo pelo continente onde a humanidade começou sua turbulenta jornada por esta terra.

Me despeço por alguns dias, porque estarei no interior do estado do Rio de Janeiro, para um seminário de trabalho. Volto às telas na próxima segunda-feira.

terça-feira, outubro 11, 2005

De Te Fabula Narratur



Assisti aos dois primeiros episódios de "Roma", a nova minissérie da HBO, e fiquei deslumbrado. Roteiro primoroso, misturando personagens históricos e fictícios, um excelente tratamento das questões políticas e a Cidade Eterna reconstituída como acredito que ela tenha sido: uma metrópole caótica, suja, colorida, selvagem como uma capital do terceiro mundo.

Os protagonistas da série são dois legionários romanos, o centurião (uma espécie de sargento) Lucius Vorenus, um cidadão-modelo da República, e o soldado Titus Pullo, fanfarrão, mulherengo e amante de brigas e confusões. Ambos são citados de passagem no livro de Júlio César sobre a guerra da Gália, como exemplos da disciplina romana: odiavam-se, mas sempre lutavam juntos. Os produtores da série aproveitaram o gancho e desenvolveram as personalidades numa amizade instável, dividida também pela conturbada política da época.

E, aliás, que período! Para mim, o mais fascinante da história de Roma: a República está em seus anos finais, rachada entre a apatia e a corrupção dos aristocratas no Senado e a ascensão vertiginosa de César, que apesar de nobre, cresce defendendo as causas da plebe, mas prepara também o caminho para o poder absoluto que seu sobrinho-neto Octavius consolidará como o primeiro imperador.

Uma poderosa República, cuja conquista de um império acabou destruindo os valores tradicionais de austeridade e sacrifício que a tornaram grande, com o aumento das desigualdades sociais e a política se tornando um jogo corrupto de compra de votos e populismo escrachado. Hummm.... Soa familiar? Para citar Ovídio, "De te fabula narratur" - a história que conto é sobre você. Roma sempre foi uma espécie de espelho para as ambições internacionais dos EUA, desde os tempos em que o público se identificava com os povos oprimidos pelo Império (Spartacus, Ben Hur, Quo Vadis?) até o momento em que passou a torcer pela superpotência (Gladiador). A nova minissérie é sobretudo a narrativa de como a construção do império destrói a ética da república.

segunda-feira, outubro 10, 2005

A Vida Sonhada das Ostras


Nós - até mesmo nós aqui - temos o poder, e esta é nossa responsabilidade.
Abraham Linconl

A campanha pró-armas impressiona pelo tom sombrio, de cultura do medo. Trata-se de assustar os eleitores para que optem pela manutenção de um status quo intolerável. Não é oferecida alternativa, nenhuma esperança de melhora.

Os defensores das armas pregam a desconfiança com relação ao Estado e aos outros cidadãos. A mensagem: não acredite no governo, na polícia, não espere ajuda de ninguém. Você precisa se armar para se proteger, só pode contar com você mesmo. Visão anti-política, que enxerga a sociedade como um aglomerado de indivíduos trancados em bunkers, com medo uns dos outros.

Essa utopia às avessas só existe nos comerciais do "não". Seres humanos não somos ostras. Somos animais políticos, condenados por nossos instintos gregários a viver juntos e procurar soluções coletivas para os problemas que nos afligem.

Votar sim ao desarmamento é apostar que somos capazes, através da política, de estabelecer padrões mínimos de convivência e civilidade, que refreiem o ódio assassino que toma 50 mil brasileiros todo ano.

Aposta que pode dar certo ou errado. Mas quem optar pelo "não" tem certeza do fracasso, pois fará a escolha para que a violência inaceitável do Brasil continue como está. Cabe a nós recusar a vida sonhada das ostras e assumir a disposição de agir como seres humanos e aceitar o desafio de melhorar este país para lá de imperfeito.

Este texto faz parte da blogagem coletiva sobre desarmamento do "Nós na Rede". Clique no link para ter acesso à lista completa dos participantes.

sexta-feira, outubro 07, 2005

A Retórica das Armas



O cientista político Albert Hirschman identificou em “The Rhetoric of Reaction” (edição brasileira: “A Retórica da Intransigência”) três pontos comuns ao discurso conservador oposto às grandes mudanças políticas: ameaça (a reforma trará perigo); futilidade (não irá adiantar) e perversidade (terá o efeito contrário). Foram usados para contrariar medidas que hoje julgamos banais, como o voto feminino. A retórica dos defensores do “não” no desarmamento segue a mesma estrutura.

1 – Ameaça: Proibir a venda de armas deixará o cidadão desprotegido diante dos bandidos. Eliminar o direito de portar armas é o primeiro passo na extinção de outros direitos.

Arma não protege ninguém. Dados dos sociólogos Gláucio Soares (Iuperj), Ignacio Cano (UERJ) e Julita Lemgruber (UCAM), especialistas em segurança pública: “Em apenas 2% dos assaltos a residências que possuíam armas elas foram usadas contra os assaltantes. Pior do que isso: cada vez que uma arma de fogo caseira é utilizada contra um invasor, outras 22 matam ou vitimam, intencional ou acidentalmente, os moradores ou visitantes legítimos da casa. Compramos armas pensando em defender a casa contra assaltantes, mas é muito mais provável que ela seja usada contra alguém da própria casa.”

Quanto ao segundo ponto, é argumento de proprietário de escravos para se opôr à Abolição (“Querem mexer no meu direito de propriedade! O próximo passo será o comunismo!”). Na maioria das democracias desenvolvidas, a posse de armas é muito difícil ou impossível – pensem no Japão e na Inglaterra. Direitos são vida, liberdade, educação, saúde. Possuir armas é decisão política que varia conforme as sociedades.

2 – Futilidade: a lei não será cumprida, quem tiver armas não irá se desafazer delas.

Quer dizer que é melhor nem tentar e ficar reclamando da vida? Em 2004 começou uma campanha voluntária para entrega de armas – em um ano, mais de 400 mil foram entregues à polícia e ao Exército. Quando ao incentivo se somar a força da lei, a tendência é que a cooperação aumente. Mesmo pessoas que não gostem do Estatuto preferirão obedecer a ficar ilegais, até pela pressão de mães, esposas, filhos etc.


3- Perversidade: proibir a venda de armas apenas aumentará o comércio clandestino e o suborno a policiais e militares.

Sim, existe essa possibilidade. Mas o tráfico de armas e a corrupção das autoridades já são tão gigantescos que é difícil acreditar que as perdas superem os ganhos advindos da probição de venda de armas. Luiz Garcia, em seu artigo desta sexta, coloca a questão essencial:

O resultado da consulta popular não vai reduzir os arsenais de AK-47s nos redutos do tráfico de drogas. Esse é outro problema, gravíssimo, e para o qual não se conhece solução duradoura (...) Mas o plebiscito servirá para tirar a arma de nossas casas e das casas de nossos vizinhos. Para impedir que uma briga conjugal termine em morte; para não deixar que nossos filhos descubram o brinquedo novo, com conseqüências que estão todos os dias no jornal; e para impedir que divergências sobre questões de trânsito e de condomínio acabem em sangue. Como toda hora acontece.

quinta-feira, outubro 06, 2005

Cabeça de Porco



Grande livro na praça: “Cabeça de Porco”, obra coletiva do produtor cultural Celso Athayde, do compositor e cantor MV Bill e do antropólogo Luís Eduardo Soares. Reunião da sensibilidade e do pensamento da favela e do asfalto – casamento urgente e necessário.

O livro é um conjunto de textos, cada um assinado por um dos autores. Athayde e MV Bill começaram uma pesquisa sobre os jovens que se envolvem com o tráfico de drogas, e entrevistaram várias pessoas nas favelas e periferias de todas as regiões do Brasil. Soares tocava uma pesquisa semelhante. Resolveram unir esforços: ganho para eles e para os leitores.

Athayde e Bill narram suas aventuras durante as entrevistas, que incluíram perseguições da polícia, fugas e situações de risco com os bandidos. Os dois também rememoram episódios marcantes de suas vidas – os textos sobre a descoberta do racismo são particularmente brilhantes. Soares faz análises teóricas a partir do material das entrevistas e de suas próprias pesquisas, identificando os padrões que se repetem em várias histórias.

O livro é muito bom, mas dois casos são verdadeiras obras-primas: a história da menina que recortava notícias de jornal sobre violência, até perder o irmão para as drogas e a narrativa de Athayde sobre como um jovem tímido chamado Alex Pereira virou o compositor e cantor MV Bill. Ambas renderiam filmes interessantíssimos, que espero que sejam realizados algum dia.

Soares foi professor do Iuperj, onde estudo. Não cheguei a ser seu aluno, mas o ouvi no instituto e li outros de seus livros. Mantém neste trabalho as intepretações anteriores, ressaltando o quanto o crime pode ser, antes de mais nada, uma maneira de “adolescentes invisíveis” conquistarem respeito numa sociedade em que parece não haver lugar para eles. Me impressionaram mais as contribuições de Athayde e MV Bill, mas como mencionei anteriormente, o casamento com a reflexão acadêmica é muito bem-vindo.

Cabeça de porco é uma gíria para cortiço e para uma situação difícil, beco sem saída. Não foi o que o livro me passou. Fico antes com a impressão de uma realidade trágica, sim, mas também de uma incrível capacidade de resistência, vitalidade e vontade de mudança. O tempo em que lecionei num pré-vestibular comunitário me convenceu, para a vida toda, do enorme potencial dos jovens das favelas. Talvez um dia a gente consiga juntar os cacos e construir uma nação.

quarta-feira, outubro 05, 2005

Estudos Estratégicos


Ontem passei o dia no V Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Gostei do que ouvi. Aprendi bastante sobre Guerra do Golfo, política brasileira de defesa nacional e as dificuldades enfrentadas pelas Forças Armadas.

Sabia, claro, que elas passam por sérias restrições orçamentárias, como aliás todas as esferas do funcionalismo público. Mas não tinha noção da extensão dos problemas. Foi um tanto constrangedor ver diversos oficiais superiores, coronéis e generais, desabafando emocionados sobre o estado de penúria de suas forças e dos problemas em tocar adiante pesquisas científicas e tecnológicas.

Houve muitas críticas à elite política, acusada de considerar que as questões de defesa não se aplicam a países em desenvolvimento. Creio que é uma crítica precisa em muitos pontos. Por outro lado, há um interesse em aproximar militares e acadêmicos que têm se revelado muito frutífero.

Outra coisa que me chamou a atenção foi que os civis em geral se mostraram muito mais radicais do que os militares. Enquanto os almirantes previam que o projeto do submarino nuclear deverá levar talvez 20 anos para ficar pronto, pacatos professores universitários exigiam pelo menos 15 deles na esquadra, de imediato.

Hoje em dia o estudo de relações internacionais relaciona a segurança a outras áreas que não a militar, abrangendo meio ambiente, economia, saúde etc. As Forças Armadas também estão sensíveis a essa abordagem e o programa do Encontro abarca vários desses aspectos.

Pena que dificilmente conseguirei ir nos outros dias, por causa da minha agenda de trabalho, queria ter ouvido o general que comandou a missão da ONU no Haiti. Lamentei também a ausência do embaixador Rubens Ricúpero, talvez o melhor analista brasileiro de RI. Ele falaria sobre globalização, mas não compareceu ao Encontro.

segunda-feira, outubro 03, 2005

Os Outros


Entre as muitas conversas que tive sobre desarmamento nos últimos dias, a que mais me surpreendeu foi de um amigo que participou de uma dinâmica de motivação numa grande empresa. No jogo, ele e os colegas estavam em duas espaçonaves que chegavam à Lua. Precisavam sair delas para fazer uma missão e tinham que escolher as prioridades numa lista de 15 itens, que incluía lanterna, comida, água, oxigênio, revólver etc.

Meu amigo fez sua lista e deixou a arma em último lugar. Para sua surpresa, ele foi um dos poucos que agiram assim. Quase todos escolheram o revólver como prioridade. "Mas o que deu em vocês? Estamos na Lua!", ele perguntou. "É, mas não dá para confiar nos outros. Pode ser que a outra tripulação queira roubar nossa comida e água."

Sem entrar no mérito de lançar a campanha do desarmamento na Lua (agora que os chineses e americanos querem ir para lá, pode até ser útil) o episódio é um redução ao absurdo do argumento da "cultura do medo" - a de que é necessário portar armas para se defender num mundo hostil. Sem dúvida o Brasil é um país inseguro, com polícias corruptas, violentas e ineficientes. Suponho que na Lua seja um pouco melhor, mas nunca se sabe.

Em outro dos debates que participei, no Orkut, um rapaz disse que deviam era desarmar "os morros, aquela raça". As classes perigosas continuam a ter a mesma cor do que no Império. Daí para os editoriais do Globo dizendo que é hora de "perder o medo" de discutir remoção de favelas, é menos do que um passo.

O ponto curioso é que o debate sobre combate ao crime organizado tomou conta da campanha do desarmamento, embora 90% dos homicídios sejam cometidos pelos cidadãos comuns, os tais que morremos de medo dos bandidos. Nessa disputa de "nós x eles" nós somos muito mais perigosos do que eles. Mas esse é um pensamento muito subversivo. Melhor continuar com o mito da mortandade provocada só por ladrões, traficantes, assassinos. De preferência jovens, negros e favelados. Os Outros. Sartre já ensinava que o Inferno são eles.

domingo, outubro 02, 2005

Atirando em Cachorros



Os filmes sobre Ruanda têm lotado os cinemas do festival e "Shooting Dogs" (ainda sem título em português) não é exceção. Das três produções que vi recentemente sobre o genocídio contra os tutsis, esta é sem dúvida a mais sombria, perturbadora e provocadora.

Tal como em "Hotel Ruanda" e "Apertando a Mão do Diabo", o ponto de vista adotado é o dos heróis, pessoas extraordinárias que tentam fazer algo para lidar com a tragédia. Inspirado em fatos reais, "Shooting Dogs" retrata a luta de um padre e um professor britânicos, que tocam uma escola técnica transformada em campo de refugiados e que abriga também uma pequena guarnição belga da ONU.

Em essência, é uma situação semelhante a de Hotel Ruanda, só que mais tensa. O padre e o professor não têm os contatos e a influência política do gerente do hotel. O capitão belga que comanda as tropas de paz, embora queira ajudar, não está disposto a se afastar um mílimetro das suas ordens, que acabam forçando as tropas a abandonar a escola, deixando-a à mercê das milícias hutus. Os dois britânicos se vêem num dilema: fugir com os europeus ou ficar com seus alunos e paroquianos, enfrentando a morte certa?

O filme foi produzido pela BBC, com roteiro de um ex-correspondente em Ruanda. Não por acaso, uma das melhores cenas é a repórter da emissora fazendo mea culpa ao comparar sua experiência na África com a que viveu na Bósnia - no genocídio ocorrido na Europa, ela se envolvera emocionalmente. Em Ruanda, sequer chorou. Eram negros e pobres que morriam, não brancos europeus. Para um brasileiro, esse distanciamento não existe. Kigali, a capital do país, se parece muito com a periferia de qualquer grande cidade do Brasil.

Mais de 2 mil pessoas foram mortas na escola e o filme foi quase todo rodado com sobreviventes do genocídio, cujas histórias são narradas brevemente nos créditos finais. Os bastidores foram narrados numa matéria da BBC.

O título do filme se refere a uma cena onde os soldados da força de paz decidem disparar nos cachorros que devoravam os cadáveres dos mortos no genocídio. O padre replica com ironia: "Eles atiraram em vocês? Pensei que o mandato da ONU só autorizasse o uso da força em auto-defesa."

sábado, outubro 01, 2005

A Dignidade dos Ninguéns



Ontem o Festival do Rio exibiu pela primeira vez no Brasil "A Dignidade dos Ninguéns", de Fernando Solanas. O documentário é o segundo da tetralogia sobre a crise argentina, que começou com "Memória do Saqueio", um panorama do caminho percorrido pelo país rumo ao abismo. "A Dignidade" retrata os movimentos sociais da Argentina contemporânea, contando histórias de vida de pessoas anônimas que revelam uma extraordinária capacidade de mobilização, resistência ou simplesmente - e isso não é pouco - vontade de sobreviver.

Biografias como Martin, um motoboy que sonha ser escritor e foi baleado na cabeça nas grandes manifestações de dezembro de 2001, que derrubaram De La Rúa. Foi salvo pela solidariedade de Toba, um ativista anti-ditadura que se recusou "a deixar o Inimigo levar mais um". Toba é professor numa escola profissionalizante e mantém um refeitório comunitário para as crianças do paupérrimo bairro onde vive.

Boa parte do filme fala sobre os integrantes do movimento piquetero, que congrega os desempregados da Argentina e atua sobretudo através de ação direta, com bloqueios a estradas e ruas. São pessoas que tiveram um bom padrão de vida, com empregos estáveis e a rede de proteção social do peronismo, e perderam tudo: "La Argentina no es más la Argentina", diz uma delas.

A antiga condição do país como o mais rico da América Latina ainda serve como referência para os movimentos sociais. De fato, muito permanece: o assassinato de dois piqueteros pela polícia, numa manifestação, apressou o fim do governo Duhalde. Alguém imagina a morte de dois desempregados tendo impacto semelhante no Brasil?

Outro exemplo que me impressionou foi o das pequenas proprietárias rurais que se mobilizam para impedir os leilões das terras das companheiras, vítimas de juros extorsivos que transformam empréstimos de 20 mil pesos em 100 mil. Elas interrompem as audiências judiciais cantando o hino nacional argentino e fazendo barulho e têm tido um sucesso extraordinário.

Solanas também dá uma pincelada no movimento das fábricas recuperadas, instituições semi-falidas cujo controle foi assumido (às vezes na marra) pelos próprios trabalhadores, que encaram o desafio de tocá-las adiante.

O filme foca principalmente no período 2002-2003 e é imprescindível para se entender o que acontece atualmente na Argentina. Os graus de pobreza extrema mostrados na tela são inéditos para nosso vizinhos do sul, embora familiares no Brasil. Solanas observa que os novos movimentos sociais não conseguiram formular um modelo político -econômico alternativo - os políticos tradicionais do PJ e da UCR continuam no poder - mas que alteraram a disputa de forças em jogo.

Estou na expectativa para o próximo filme da série - imagino que será sobre o governo Kirchner e as transformações extraordinárias que o presidente promove na Argentina. Por ora, fica um caloroso abraço para Solanas. O cineasta estava presente à sessão e foi aplaudido de pé pelas 400 ou 500 pessoas que lotávamos o Estação Unibanco. Dignidade é um valor escasso no Brasil contemporâneo e os argentinos têm muita dela para nos emprestar.
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