A Retórica das Armas
O cientista político Albert Hirschman identificou em “The Rhetoric of Reaction” (edição brasileira: “A Retórica da Intransigência”) três pontos comuns ao discurso conservador oposto às grandes mudanças políticas: ameaça (a reforma trará perigo); futilidade (não irá adiantar) e perversidade (terá o efeito contrário). Foram usados para contrariar medidas que hoje julgamos banais, como o voto feminino. A retórica dos defensores do “não” no desarmamento segue a mesma estrutura.
1 – Ameaça: Proibir a venda de armas deixará o cidadão desprotegido diante dos bandidos. Eliminar o direito de portar armas é o primeiro passo na extinção de outros direitos.
Arma não protege ninguém. Dados dos sociólogos Gláucio Soares (Iuperj), Ignacio Cano (UERJ) e Julita Lemgruber (UCAM), especialistas em segurança pública: “Em apenas 2% dos assaltos a residências que possuíam armas elas foram usadas contra os assaltantes. Pior do que isso: cada vez que uma arma de fogo caseira é utilizada contra um invasor, outras 22 matam ou vitimam, intencional ou acidentalmente, os moradores ou visitantes legítimos da casa. Compramos armas pensando em defender a casa contra assaltantes, mas é muito mais provável que ela seja usada contra alguém da própria casa.”
Quanto ao segundo ponto, é argumento de proprietário de escravos para se opôr à Abolição (“Querem mexer no meu direito de propriedade! O próximo passo será o comunismo!”). Na maioria das democracias desenvolvidas, a posse de armas é muito difícil ou impossível – pensem no Japão e na Inglaterra. Direitos são vida, liberdade, educação, saúde. Possuir armas é decisão política que varia conforme as sociedades.
2 – Futilidade: a lei não será cumprida, quem tiver armas não irá se desafazer delas.
Quer dizer que é melhor nem tentar e ficar reclamando da vida? Em 2004 começou uma campanha voluntária para entrega de armas – em um ano, mais de 400 mil foram entregues à polícia e ao Exército. Quando ao incentivo se somar a força da lei, a tendência é que a cooperação aumente. Mesmo pessoas que não gostem do Estatuto preferirão obedecer a ficar ilegais, até pela pressão de mães, esposas, filhos etc.
3- Perversidade: proibir a venda de armas apenas aumentará o comércio clandestino e o suborno a policiais e militares.
Sim, existe essa possibilidade. Mas o tráfico de armas e a corrupção das autoridades já são tão gigantescos que é difícil acreditar que as perdas superem os ganhos advindos da probição de venda de armas. Luiz Garcia, em seu artigo desta sexta, coloca a questão essencial:
O resultado da consulta popular não vai reduzir os arsenais de AK-47s nos redutos do tráfico de drogas. Esse é outro problema, gravíssimo, e para o qual não se conhece solução duradoura (...) Mas o plebiscito servirá para tirar a arma de nossas casas e das casas de nossos vizinhos. Para impedir que uma briga conjugal termine em morte; para não deixar que nossos filhos descubram o brinquedo novo, com conseqüências que estão todos os dias no jornal; e para impedir que divergências sobre questões de trânsito e de condomínio acabem em sangue. Como toda hora acontece.
6 Comentarios:
Super-obrigada pelo texto, Maurício. Me deu mais subsídios para pensar, pois confesso que uma pergunta que está me martelando é sobre a clandestinidade se tornando mais ainda status-quo.
beijos!
Moro nos EUA, onde é facílimo comprar armas. Uma amiga minha tem um filho de 9 anos, e sempre que ele é convidado pela primeira vez para visitar algum amiguinho, ela pergunta à mãe se a família tem arma em casa. Se tiver, ela não deixa o garoto ir.
Não há dúvida de que ter armas aumenta a probabilidade de que ela será usada por um motivo fútil, ou disparada acidentalmente.
Mauricio,
Agora estou mesmo convencida que tenho de ler Hirschman
beijos
Mauricio,
Ainda esteva em dúvida, mas já inclinada pelo SIM. Com a leitura do teu texto, acabei por me decidir. Meu marido é policial, temos arma em casa, já tivemos que socorrer, sem conseguir salvar, o filho de um colega dele que usou a arma do pai para se suicidar. Sei que se a pessoa busca esta "saída", acaba encontrando um meio de realizar o intento, mas se não houvesse a arma, tudo se tornaria mais difícil. Vou tomar a liberdade de publicar teu texto no meu blog, como já fiz com o do Mangabeira...sou coladora compulsiva, professor, pode me pôr de castigo(risos)...Abraço!
Sabedoria pop que tocou inda agorinha na TV e lembrei de vocês:
"it's hard to be a man when there's a gun in your hands".
Beijão!
Caras,
o fato de que as mulheres são muito mais favoráveis ao desarmamento do que os homens (ao menos no meu círculo de amizades) me convence de duas coisas:
1- Vocês são a mais importante força civilizatória do planeta.
2- A construção da masculinidade no Brasil está ligada a alguns esteriótipos bastante perigosos, incluindo o uso de armas.
Também conheço vários casos de "arma em casa, perigo constante". Ainda não presenciei uma só situação em que elas tivessem funcionado para autodefesa.
Bjs
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