A Dignidade dos Ninguéns
Ontem o Festival do Rio exibiu pela primeira vez no Brasil "A Dignidade dos Ninguéns", de Fernando Solanas. O documentário é o segundo da tetralogia sobre a crise argentina, que começou com "Memória do Saqueio", um panorama do caminho percorrido pelo país rumo ao abismo. "A Dignidade" retrata os movimentos sociais da Argentina contemporânea, contando histórias de vida de pessoas anônimas que revelam uma extraordinária capacidade de mobilização, resistência ou simplesmente - e isso não é pouco - vontade de sobreviver.
Biografias como Martin, um motoboy que sonha ser escritor e foi baleado na cabeça nas grandes manifestações de dezembro de 2001, que derrubaram De La Rúa. Foi salvo pela solidariedade de Toba, um ativista anti-ditadura que se recusou "a deixar o Inimigo levar mais um". Toba é professor numa escola profissionalizante e mantém um refeitório comunitário para as crianças do paupérrimo bairro onde vive.
Boa parte do filme fala sobre os integrantes do movimento piquetero, que congrega os desempregados da Argentina e atua sobretudo através de ação direta, com bloqueios a estradas e ruas. São pessoas que tiveram um bom padrão de vida, com empregos estáveis e a rede de proteção social do peronismo, e perderam tudo: "La Argentina no es más la Argentina", diz uma delas.
A antiga condição do país como o mais rico da América Latina ainda serve como referência para os movimentos sociais. De fato, muito permanece: o assassinato de dois piqueteros pela polícia, numa manifestação, apressou o fim do governo Duhalde. Alguém imagina a morte de dois desempregados tendo impacto semelhante no Brasil?
Outro exemplo que me impressionou foi o das pequenas proprietárias rurais que se mobilizam para impedir os leilões das terras das companheiras, vítimas de juros extorsivos que transformam empréstimos de 20 mil pesos em 100 mil. Elas interrompem as audiências judiciais cantando o hino nacional argentino e fazendo barulho e têm tido um sucesso extraordinário.
Solanas também dá uma pincelada no movimento das fábricas recuperadas, instituições semi-falidas cujo controle foi assumido (às vezes na marra) pelos próprios trabalhadores, que encaram o desafio de tocá-las adiante.
O filme foca principalmente no período 2002-2003 e é imprescindível para se entender o que acontece atualmente na Argentina. Os graus de pobreza extrema mostrados na tela são inéditos para nosso vizinhos do sul, embora familiares no Brasil. Solanas observa que os novos movimentos sociais não conseguiram formular um modelo político -econômico alternativo - os políticos tradicionais do PJ e da UCR continuam no poder - mas que alteraram a disputa de forças em jogo.
Estou na expectativa para o próximo filme da série - imagino que será sobre o governo Kirchner e as transformações extraordinárias que o presidente promove na Argentina. Por ora, fica um caloroso abraço para Solanas. O cineasta estava presente à sessão e foi aplaudido de pé pelas 400 ou 500 pessoas que lotávamos o Estação Unibanco. Dignidade é um valor escasso no Brasil contemporâneo e os argentinos têm muita dela para nos emprestar.
3 Comentarios:
que maravilha. Que inveja de não poder ir ver... Mas, enfim, tenho de ficar por este lado do mundo, e esperar que alguma mostra traga esses filmes a Portugal...
O filme deve ser fantástico mesmo. Quando começo a pensar nessa capacidade de organização da sociedade civil argentina, o pensamento seguinte é: "Puxa, tão pertinho da gente... Bem que a gente podia aprender com eles..." Mas nos falta educação, infelizmente... Quem sabe um dia?
Cara Belém,
acredito que logo o filme chegue a Portugal. Ele foi exibido no Festival de Veneza com grande sucesso e deve ter boa distribuição na Europa.
Julia, o que mais me chama a atenção na política argentina é a força da sociedade civil, como um espaço autônomo diante do Estado. Claro, outra História, muito diferente do Brasil. Mas acho que existe uma certa tendência de aproximação, de compreensão mútua.
Abraços
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