Atrizes ótimas a escrava Lucrécia e Maria do Rosário em "Quanto Vale ou e por quilo?"
“Não me surpreendo com a raça humana. Não julgo impossível sequer que em 200, cem ou mesmo 50 anos, voltemos a ter escravidão ou algo pior. A história não anda necessariamente sempre para frente.” Com palavras mais ou menos como essas, e sem nenhuma pena, ou raiva, minha orientadora, colocou no devido lugar o scholar que tinha acabado de dar uma palestra para os acadêmicos colonizados que ouviam seu discurso setentrional, por definição superior, e vinha nos ensinar o que havia mudado no mundo pós-guerra fria. Não lembro o nome do famoso medalhão, mas lembro das cruas palavras realistas da mestra e passei a admirá-la mais.
Lembrei destas palavras quando vi o trailer de “Quanto vale ou é por quilo?” julgando que veria uma peça de ficção que mostrasse a volta da escravidão no Brasil de hoje. Algo como uma crítica ácida à desigualdade, que retratasse que a escravidão pelo menos não era hipócrita. Não vi nada disso. O trailer me fez ir ver o filme, mas o filme é péssimo.
Teoricamente deveria ser uma comparação da sociedade escravista da colônia com a desigualdade social de hoje. O mercado de pessoas passou de escravos para miseráveis. Os compradores de senhores viraram ONGs. Pretensamente acusatório e com o objetivo de chocar, o filme tem um discurso muito conservador. A mensagem que passa é: Não podemos fazer nada! Não tem nenhum personagem principal cativante no filme, a não ser a Miryam Pires, velhinha que vira ‘laranja’ do dono da ONG. Todos os demais são escroques. Ou burros. Ou tão vociferantemente raivosos que não atraem nenhuma simpatia, mas medo. Viram todos criminosos em algum ponto.
“Quanto vale” não se decide se é documentário ou ficção. Isso trás implicações morais a meu ver. A passagem que a meu ver é a mais abjeta mostra velhinhos muito debilitados, babando, sendo deixados a urinar, em um asilo com péssimas condições. Não fica claro, mas me parece óbvio que é a única cena do filme que não foi feita por atores, mas retratava realmente pessoas que tiveram sua dor ‘real’usada de modo anti-ético numa ficção. E o pior é que nada tem a ver com a história. A cena é plenamente dispensável e até exótica ao argumento.
Outro pecado mortal. Ao reconstituir com figurino vagabundo (que provavelmente sobrou de alguma novela da Manchete), cenas da escravidão do final do século XVIII, o filme sempre dá crédito ao Arquivo Nacional. Retirado do ANRJ, 4º oficio de notas. Caixa X, lote Y. Só que em pelo menos dois casos, a preguiça de pesquisador não chegou a fazer o responsável pelo roteiro sentar seu traseiro nas cadeiras duras no ANRJ. O Primeiro caso, foi retirado inteiramente do ótimo livro “Crônicas históricas do Rio Colônial” escrito por Nireu Cavalcanti, professor de arquitetura da UFF. As palavras que Nireu usa em seu livro ao recontar casos que ELE pesquisou no arquivo nacional são ‘plagiadas’, sem o devido crédito, na voz do narrador do filme. Coisas que não poderiam sair de nenhuma fonte histórica judiciária, como os pensamentos dos personagens, que Nireu especula em seu livro e o filme copia e ainda copia mal.
Ainda mais descarada é a referência explícita feita à história do conto de “Pai contra Mãe” de Machado de Assis. Como é cópia literária, esta é a única reconstituição de época que não termina com citação ao Arquivo nacional, mas como o resto do filme sempre cita o AN, o cineasta passa a idéia de que esta história que inspira o filme também é verídica.
O filme esculhamba completamente a ação das entidades sociais. Seu discurso coloca todas as ongs no mesmo saco, disputando uma fatia a mais do mercado da miséria. Em determinado momento aparece uma conta esdrúxula. O que se gasta com ‘solidariedade’, salários, aluguéis, publicidade, das estimadas 10 mil entidades envolvidas em assistência é 100 milhões de dólares por ano. O filme diz abertamente que isso daria um apartamento de quarto e sala para cada uma das estimadas 10 mil crianças de rua do Brasil. As estimativas, certamente não saíram do livro do Nireu, que é um profissional sério e não faz afirmativas levianas.
Cenas absurdas que reificam o preconceito, mostra crianças faveladas, invadindo e destruindo numa baderna um centro de informática 10 segundos após sua inauguração ou ou ativistas sociais que protestando contra a corrupção são rapidamente subornados pelo corrupto. Preço da propina: convite para um coquetel no Teatro Municipal que eles ‘bestializados’ não conheciam.
Pior. O filme incita a violência. Diante da corrupção (ou imbecilidade) completa daqueles que querem ajudar (isto é, o movimento social), só o que resta é seqüestrar e matar ou mutilar todos os corruptos. Pretensamente é ficção. Se fosse um documentário (ou se assumisse como um) poderíamos abrir um processo por incitação a prática de crimes, pois o filme dá uma aula de seqüestro, inclusive sobre o que fazer para acelerar a negociação com a família. Alias, como o diretor é um inseguro indeciso, ele não soube escolher qual final ia por e colocou dois. Assim, após ser morta, a ‘honesta’ do filme ressuscita e conclama o assassino a abrir uma central de seqüestros ‘não apenas pela grana, mas para fazer os corruptos sofrerem...’
No fundo, o que o filme diz é que a culpa da classe média e alta leva ao impulso solidário. As ongs nada mais são do que empresas capitalistas (inúteis e corruptas) que fazem desta culpa seu filão e disputam fatias de mercado para comprar e vender ‘ajuda ao próximo’. O ativismo engajado é assassinado e a escravidão, pretenso tema do filme, é rapidamente esquecido pelo espectador, que sai do cinema quase um liberal ou pior, um criminoso.