segunda-feira, julho 31, 2006

O Massacre de Qana


 

Todos sabiam que cedo ou tarde isto aconteceria nesta guerra. Israel bombardeou um prédio onde refugiados libaneses se escondiam e o ataque resultou na morte de cerca de 60 civis, a maioria de crianças. O massacre ocorreu dias após um dia de fogo israelense, aéreo e de artilharia, contra instalações da ONU no Líbano, que mataram funcionários internacionais. Ironicamente, o prédio das Nações Unidas em Beirute foi depredado por uma multidão que acusava a organização de passividade diante da morte de inocentes.

O Hezbolá não é um exército que vai ao campo de batalha enfrentar as forças armadas de um país inimigo. É um grupo que atua por terrorismo ou ações de guerrilha e que se oculta em meio à população civil. Combatê-lo pela força militar significa aceitar a morte de inocentes, que irá ocorrer fatalmente, por melhor que seja a qualidade das informações ou a precisão do armamento. Evidentemente, o Hezbolá não tem escrúpulos quanto a atingir civis israelenses. Pelo contrário, são seu alvo primordial. Mas o grupo conta com a reação de Israel para criar um clima de comoção internacional e se apresentar à opinião pública como o Davi que luta contra o Golias opressor.

A reação quase unânime da comunidade internacional é pela decretação de um cessar-fogo e por uma força de paz internacional para a fronteira entre Líbano e Israel. Essa opção significará derrota moral para as forças armadas israelenses. E enquanto tiverem apoio dos EUA, continuarão com sua campanha de bombardeios. Mas num clima de crescente isolamento.

De Israel, a jornalista brasileira Daniela Kresch dá seu testemunho: "Quem achava que era fácil e rápido - é só o exército jogar umas bombinhas que ele destrói o Hezbollah -, já engole as palavras. O tempo voltou. Estamos nos aproximando a passos rápidos de 1982."

Em momentos de barbárie como esta, sempre retorno aos clássicos. Picasso e Guernica – está lá tudo que precisa ser dito (ou mostrado) a respeito dos ataques a civis. O bombardeio nazista à cidade espanhola inaugurou a era do terrorismo de Estado pela via aérea.

Penso também em Homero. Na trégua humanitária que encerra a Ilíada, para que possam ocorrer os funerais de Heitor, domador de cavalos, depois que o arrogante Aquiles se arrepende de haver ultrajado as leis da guerra e arrasta o cadáver do troiano diante dos olhos do pai de seu inimigo, o velho rei Príamo.

Faz falta um Ulisses no Oriente Médio. Os combatentes estão mais para a ira de Aquiles.

sábado, julho 29, 2006

Problemas no Front


 

Os analistas militares avaliam que os resultados da guerra são negativos para as Forças Armadas de Israel. Após duas semanas de bombardeios intensos ao Líbano e ocupação da zona fronteiriça do país, o Hezbolá continua ativo, disparando cerca de 100 foguetes por dia contra os israelenses. O jornalista Eitan Haber, do Yediot Aharonot levantou a questão: “Não é o momento nem o lugar, pois estamos no meio de uma luta séria, mas quando tudo isso acabar as FDI [Forças de Defesa Israelenses] terão que dar uma boa olhada em si mesmas.”

As perdas do Exército e da Força Aérea estão maiores do que o esperado, particularmente na acirrada batalha pela cidade de Bint Jbeil, um dos principais centros de apoio ao Hezbolá. O gabinete israelense debate o quão profunda deve ser a ocupação terrestre e mais 30 mil reservists foram convocados. Nem o primeiro-ministro Olmert e nem o ministro da Defesa Amir Peretz têm experiência de liderança em guerra. O chefe do Estado-Maior, general Dan Halutz, foi internado e está temporariamente afastado das funções. Aparentemente, teve uma crise de estresse.

A última vez que os militares israelenses lutaram contra outras forças armadas nacionais foi na Guerra do Yom Kippur (1973, contra Síria e Egito). Nos últimos 30 anos os conflitos foram contra mílicias, grupos terroristas e guerrilheiros no Líbano, na Cisjordânia e em Gaza: OLP, Amal, Hezbolá, Hamas etc.

Tenho pensado muito na palestra do historiador israelense Martin van Creveld a que assisti em junho na Escola de Guerra Naval, no Rio de Janeiro. Creveld disse na ocasião que Israel não tinha como vencer a guerra contra os árabes e que quando um Exército enfrenta um inimigo muito mais fraco, como os palestinos, está de antemão condenado à derrota, pois mesmo suas vitórias militares serão vistas pela opinião pública como desastres políticos, opressão e abuso de poder. Basta lembrar dos soldados israelenses quebrando os braços dos adolescentes palestinos que lhes atiravam pedras durante a primeira Intifada.

Falhou a conferência de Roma, que tentou negociar um cessar-fogo. Não é surpresa para ninguém que uma negociação que exclui os principais interessados – Israel, Síria e Irã – fracasse.

O impasse no campo de batalha pode empurrar Israel para negociar um cessar-fogo e uma missão da ONU na fronteira. Mas isso quase com certeza seria visto como uma vitória do Hezbolá. Vamos ver como será recebida a proposta Bush-Blair, apesar do desgaste crescente da liderança de ambos.

A outra possibilidade, mais assustadora, é a entrada da Síria na guerra.

Como bem escreveu a The Economist em seu editorial: “Esta é uma guerra que ningém pode vencer.” E que vai ser difícil de terminar.

quarta-feira, julho 26, 2006

Nacionalismo, proibido para menores


 

Há duas semanas o embaixador Alberto da Costa e Silva deu palestra em que acusou “a teoria das nacionalidades, essa invenção dos intelectuais alemães” de criar a ilusão de que é possível e desejável ter um Estado etnicamente homogêno, que seja o instrumento por excelência da representação política de um povo.

Poucos Estados do mundo tem esse nível de homogeneidade. Talvez nenhum. O nacionalismo muitas vezes começa com a (re)descoberta de costumes comuns – contos de fada, canções camponesas, revalorização de um idioma, etc - e termina em massacres e genocídio em busca de um ideal de “pureza” (com muitas aspas, por favor) inatingível.

Por quase dois mil anos os judeus tentaram a assimilação nas sociedades européias e americanas, sonho sepultado em Auschwitz. Theodor Herzl pensou pela primeira vez em recriar o Estado judeu ao cobrir como jornalista os ataques anti-semitas durante o Caso Dreyfus, na conturbada França do início do século XX. Se nem no país da Revolução e do secularismo os judeus poderiam estar em paz, então onde?

A partilha da Palestina pela ONU, em 1948, nunca foi respeitada por nenhum dos lados em guerra. Como diria Garrincha, faltou combinar com os russos. Ou no caso, os árabes. Pagaram a conta dos crimes cometidos por alemães, franceses, poloneses, italianos, húngaros e quantos mais contribuíram para o genocídio na Europa. O movimento sionista dizia “uma terra sem povo para um povo sem terra.” Claro que tamanho desrespeito aos palestinos ia acabar mal. Os árabes tampouco criaram o Estado para eles, seu território foi dividido entre Egito e Jordânia. E Israel apoderou-se pela força de mais espaço do que lhe davam os tratados.

Quase 60 anos se passaram desde então, com seis guerras árabe-israelenses (contando o atual conflito como a sexta), duas revoltas palestinas nos territórios ocupados da Cisjordânia e Gaza e um sem número de ataques terroristas e operações clandestinas.

No fim de semana, conheci um casal de jornalistas que estudaram em Israel e tivemos uma excelente conversa sobre o país. Lá pelas tantas eles me perguntaram como eu imaginava o futuro do Oriente Médio.

“Sendo razoavelmente otimista, acho que em 200 ou 300 anos os historiadores olharão para esta época mais ou menos como vemos as guerras religiosas entre católicos e protestantes”, respondi.

“Pode ser, mas lembre-se que a tecnologia que os católicos e protestantes usavam para se autodestruir era bem menos avançada do que as armas atuais”, lembrou o rapaz.

Mas há reações contra a guerra em ambos os lados do conflito.

Em Israel, grupos pacifistas e ativistas de esquerda protestam contra o governo. A resposta dos compatriotas costuma ser agressiva, mas concordo com o jornalista Gideon Levy, que diz preferir o ódio à indiferença: “Assim, pelo menos se cria uma discussão na sociedade, e a violência das reações indica rachaduras no consenso. As pessoas começam a ter dúvidas se realmente estão com a razão, pois quem tem segurança de suas posições não grita, é capaz de falar calmamente."

No Líbano, o testemunho de um homem que trabalha num centro de assistência humanitária e precisa lidar com as tensões e conflitos entre os vários grupos religiosos que atende. Ele narra a seguinte discussão:

“Quanto os sírios estão te pagando, seu idiota!!!? Volte para onde você pode votar, seu filho da puta”
“Não tanto quanto os americanos te pagam, seu canalha”
“Foda-se o Hezbolá”
“Não, foda-se você”

Escreveu: “Está cada vez mais assustador e comum esbarrar em cenas como essa, todos os dias. Você só precisa andar pela rua e escutar.”

Na foto, crianças israelenses escrevem mensagens em mísseis que serão disparados no Líbano. Elas haviam saído de bunkers onde se escondiam dos ataques do Hezbolá.

terça-feira, julho 25, 2006

O Velho Gringo


 

Em 1913 o jornalista e escritor americano Ambrose Bierce despediu-se dos amigos e anunciou que iria ao México buscar uma morte digna diante de um pelotão de fuzilamento, que lhe parecia alternativa melhor que ser devorado por doenças, decrepitude ou falecer após cair da escada. Nunca mais foi visto. Do hiato histórico, Carlos Fuentes inventou o romance “O Velho Gringo”.

Fuentes, um dos mestres da literatura mexicana (tradição riquíssima que nos deu Octavio Paz e Juan Rulfo), imagina Bierce juntando-se aos guerrilheiros do general Tomás Arroyo, que combatem ao lado de Pancho Villa na Revolução que incendeia o país. O velho gringo se aproxima também de Harriet, uma americana que chegara ao México para ser preceptora dos filhos de uma família de latifundiários. O trio tem um convívio intenso e tumultuado, à medida que as lutas políticas os colocam diante daquilo que gostariam de esquecer ou vingar em seus próprios passados.

As descrições dos ambientes e das pessoas são soberbas, o único autor que conheço capaz de rivalizar com Fuentes nesse aspecto é Balzac. Há trechos antológicos no romance, como a cena em que o bando maltrapilho de guerrilheiros invade uma fazenda e se vê estupefato diante do salão de espelhos da casa grande. A sensualidade, outra marca de Fuentes, também está presente o tempo todo.

Fuentes é filho de diplomata e exerceu o ofício por alguns anos, passou boa parte da juventude entre América Latina e Europa. Talvez por isso sua obra seja tão impregnada pela busca da identidade nacional mexicana – da qual a Revolução é um elemento essencial. Neste romance em particular, o eterno confronto com os EUA é muito forte (“Estamos prisioneiros do negócio de matar eternamente as pessoas com outra cor de pele. O México é a prova do que pudemos ser”, diz Bierce), bem como o jogo da fronteira, metáfora para o limiar das mudanças de identidade possíveis a uma pessoa (“Há uma fronteira que só nos atrevemos a cruzar de noite – dissera o velho gringo -: a fronteira das nossas diferenças dos demais, dos nossos combates com nós mesmos”).

O livro é ambientado nos desertos do norte do México e a paisagem agreste da região é quase um personagem, presença que lembra os faroestes clássicos, de quem o romance também toma como empréstimo temas como vingança, honra e a masculinidade provada a sangue frio e pelas armas.

“O Velho Gringo” foi publicado em 1985. Ironicamente, menos de uma década depois o norte do México iniciou uma profunda transformação, tornando-se a área preferencial para a instalação das maquilladoras, que montam produtos a serem exportados para os EUA valendo-se do tratado de livre comércio entre os dois países. Também é o território que os candidatos a emigrantes devem cruzar para chegar aos Estados Unidos.

Fronteiras, migrações, identidades. O velho gringo teria sorrido e dito algo espirituoso e sarcástico, entre um e outro gole de uísque.

segunda-feira, julho 24, 2006

Lições de Timor Leste


 

"Queimado, Queimado, mas agora nosso – Timor Leste, das cinzas à liberdade”, da jornalista Rosely Foganes, é um dos melhores livros brasileiros sobre relações internacionais. Na realidade, não conheço nada tão bom mesmo lá fora, o que mais se compara pela qualidade e estilo é “Genocídio – a retórica americana em questão”, da jornalista irlandesa Samantha Power.

O Timor Leste foi colônia de Portugal até 1974. Quando os portugueses se retiraram, a Indonésia invadiu a nação e a ocupou por 25 anos. Um terço da população timorense morreu e o meio ambiente foi devastado por incêndios e napalm. Em 1999, houve um plebiscito, mediado pela ONU, com ampla vitória para a independência. Em represália, antes de sair do país a Indonésia incendiou as principais cidades e massacrou os timorenses.

Foi nesse quadro que a ONU chegou ao Timor instalando uma administração transitória sob comando do brasileiro Sérgio Vieira de Mello (foto). Rosely acompanhou a história do nascimento da jovem nação como repórter da Rádio Eldorado. O livro começa pouco após o massacre de 1999 e vai até o fim de 2001, traçando um panorama excelente das missões de paz das Nações Unidas, em pelo menos três pontos:

1)Os desafios da ONU, que pela primeira vez criou as instituições de um Estado, e as lições extraídas do processo para a administração outros territórios em crise. O cotidiano dos funcionários, as relações com a população, o comportamento variando do idealismo e da busca de aventura ao burocratismo apático.

2) O papel dos atores não-governamentais nas relações internacionais, em particular a ação da imprensa, das ONGs e dos missionários religiosos na proteção dos direitos humanos. O que motiva essas pessoas, a capacidade de adaptação e improvisação, o vício na adrenalina. As redes de solidariedade que se formam, a visão estratégica desses grupos (por vezes mais ampla que a dos Estados).

3) A especificidade da atuação do Brasil em missões de paz – dos militares, diplomatas, funcionários do MEC, etc - com a ênfase brasileira na cooperação social e no uso do esporte e da música como maneiras de aproximar as diferenças e resolver conflitos. Inclusive a subestimada influência internacional que pode ter a língua portuguesa.

A história de Timor Leste é um épico moderno da luta de um povo pela liberdade e pela manutenção de suas culturas e tradições. É emocionante sob qualquer ponto de vista, mas tem um apelo especial para nós, brasileiros, que muito compartilhamos com os timorenses. O livro tem páginas das mais bonitas que já li sobre a ação do Brasil no exterior, em especial no contato humano, do dia a dia.
Rosely montou um ótimo site, Timor Crocodilo Voador com notícias e links sobre nosso jovem país-irmão da língua portuguesa. Visita recomendada.

A missão do Timor foi encerrada prematuramente e o país voltou aos conflitos, que envolvem disputas étnicas e controle sobre recursos naturais. Mas os anos iniciais da ação da ONU oferecem lições que podem ser úteis para um esforço de paz no Líbano.

sábado, julho 22, 2006

Deus e o Diabo na Terra do Cedro


 

De todos os atores envolvidos no conflito atual, o Hezbolá talvez seja o menos conhecido dos analistas. Daí a importância do artigo de Fred Haliday, professor de relações internacionais na London School of Economics, que narra seu encontro com líderes do grupo em Beirute, em 2004.

Haliday sintetiza os principais fatos da história do Hezbolá. O grupo foi criado a partir da junção de diversas associações xiitas no Líbano, influenciadas pela:

1) Revolução Islâmica no Irã (1979), conduzida por xiitas.
2) Resistência à invasão israelense do Líbano (1982-2000)
3) Reação à discriminação e maus-tratos que sofreram de outros grupos no Líbano, em particular das elites cristãs e sunitas libanesas, e dos palestinos da OLP que montaram bases no sul do país, para atacar Israel.

O Hezbolá foi responsável por alguns dos piores atentados terroristas no Oriente Médio, como o ataque ao quartel dos fuzileiros navais dos EUA em Beirute, que levou ao fracasso da força de paz no Líbano. O grupo também cometeu atrocidades no exterior, como as bombas em associações judaicas de Buenos Aires. Tem ligações profundas com Irã e Síria, de quem recebe armas, dinheiro e treinamento.

O Conselho de Relações Exteriores dos EUA estima que o Hezbolá tenha assassinado 800 pessoas ao longo de 25 anos. Israel matou cerca de 350 em duas semanas de bombardeio ao Líbano.

À semelhança do Hamas, o Hezbolá também criou uma rede de assistência social com escolas e hospitais. Ao se lançar na política pardiária, conquistou um pouco menos de 20% do parlamento e tem dois ministros no gabinete que governa o Líbano. (foto: o secretário-geral do grupo, Hassan Nasrallah).

As questões: qual o grau de apoio ao Hezbolá entre a população libanesa, particularmente entre os cristãos e sunitas? Essas pessoas irão culpar o grupo pelos ataques de Israel ou irão se aliar diante do inimigo comum? Anteriormente, Israel conquistou aliados no caleidoscópio libanês, em particular entre as milícias cristãs.

Também existe a possibilidade de que o Hezbolá se fragmente em diversas facções, algumas recuando para Síria e Irã, outras continuando os ataques a Israel. Esse tem sido o padrão na Palestina (onde existem mais de 10 grupos armados atuantes). Houve o mesmo no Iraque, com o colapso do Partido Baath em mais de 40 organizações. Claro que é muito mais difícil chegar a qualquer acordo com tantos movimentos diferentes.

Israel tem afirmado que não é possível negociar com terroristas, que atuam de forma cruel e desumana. Antes do ataque do Hezbolá aos fuzileiros, o recorde de violência em atentados era a destruição do Hotel Rei Davi, a sede do poder militar britânico na Palestina. O grupo responsável era de ativistas judeus pró-independência: o Irgun, que também tentou assassinar líderes estrangeiros, como o primeiro-ministro alemão Konrad Adenauer. Com a criação do Estado de Israel, o Irgun foi dissolvido e seus militantes entraram para o Exército.

O líder do Irgun, Menachem Begin, fez carreira política e foi eleito primeiro-ministro. No governo, assinou o importante acordo de paz com o Egito, ganhou o Nobel da Paz e depois ordenou a invasão do Líbano em 1982. Morreu isolado do mundo e em depressão, atormentado por seus fantasmas.

quinta-feira, julho 20, 2006

Guerra por Procuração


 

O conflito atual no Libano é uma “guerra por procuração” que opõe Israel e EUA contra Irã e Síria. Mas ela travada em grande medida no território libanês por grupos terroristas (principalmente o Hezbolá), operações de espionagem e contra-insurgência, milícias de vários tipos.

Segundo a imprensa, os EUA deram a Israel mais uma semana para continuar seus ataques ao Líbano. Não houve declaração oficial confirmando, mas é verossímil. O governo Bush busca dois objetivos: conter seus inimigos na região e ao mesmo tempo impedir que a guerra se espalhe para os países vizinhos. Claro que Tony Blair apoiou a decisão, mas com oposição interna considerável dos liberais-democratas e dos próprios trabalhistas.

A França lançou a idéia de criar corredores humanitários para evacuar civis e uma missão de paz da ONU na fronteira Líbano-Israel, semelhante àquela que funcionou na península do Sinai (1956-1967) e que garantiu o cessar-fogo entre Israel e Egito durante anos. Mas também é preciso lembrar que houve uma missão de paz no Líbano dos anos 80, que fracassou e deixou o país após ser alvo de vários ataques terroristas.

O artigo mais extremista que li nesta semana foi o do político americano Newt Gingrich, que foi um dos principais líderes da oposição republicana a Clinton. Ele afirma que a Terceira Guerra Mundial começou e que o conflito contra o Hezbolá-Síria-Irã é parte de um choque de civilizações. O trecho mais interessante é sua rejeição à proposta de paz:

“O cessar-fogo pedido pelo recente e mal-assessorado comunicado do G-8 faria simplesmente o oposto. Iria simplesmente permitir aos terroristas organizar-se e preparar-se para a nova rodada de matança e derramamento de sangue.”

Como escrevi anteriormente: há muitas pessoas querendo a guerra. E querendo-a agora, antes que o Irão obtenha suas armas nucleares e antes que Bush deixe a presidência dos EUA.

A Alta-Comissária de Direitos Humanos da ONU falou sobre a “possibilidade” de crimes de guerra cometidos em Israel, no Líbano e em Gaza. De fato, todos descumprem resoluções do Conselho de Segurança, que exigem a saída dos territórios ocupados na Palestina e na Síria e o desarmamento do Hezbolá.

Para os impactos na opinião pública islâmica, cito o cientista político Muqtedar Khan, do Brookins Institute: “Enquanto isso, muçulmanos de todo o mundo assistem a uma potência nuclear apoiada, armada e financiada pelos EUA bombardear e matar dezenas de civis, destruir a economia e a infraestrutura da Palestina e do Líbano, seqüestrar dezenas de líderes palestinos eleitos, atacar suas casas e tudo o que os EUA fazem é fornecer escudo político a Israel no Conselho de Segurança e no cenário mundial. A Al Qaeda deve estar com falta de formulários de inscrição.”

Em resumo: a reação internacional aponta para a continuação da guerra, ao menos pelos próximos dias, com risco de expansão do conflito. O que poderia ocorrer de pior é a invasão terrestre do Líbano e/ou a entrada da Síria no combate.

quarta-feira, julho 19, 2006

Beirute: fim do sonho


 

Houve um sonho em Beirute. O de uma cidade cosmopolita, aberta ao mundo, na qual diversas religiões conviviam e o comércio florescia. A Paris do Oriente Médio, como era conhecida. Entreposto entre o mundo árabe e o Ocidente, refúgio para a vanguarda política e intelectual árabe, perseguida pelas ditaduras da região.

Como tantos Estados do Oriente Médio, o Líbano foi criado com base nos arranjos da França e da Inglaterra após derrotarem o Império Otomano na Primeira Guerra Mundial. A comunidade cristã de Beirute, que mantinha laços tradicionais com os franceses, foi contemplada com um território que incluía as zonas agrícolas do sul, habitadas por muçulmanos xiitas, além de minorias sunitas, drusas etc.

A demografia explodiu o frágil equilíbrio político do Líbano. Os xiitas tinham mais filhos do que os outros grupos sociais. As disputas pelo poder dentro do país foram um imã irresístível para o envolvimento das nações vizinhas. Ao longo dos 15 anos de guerra civil, passaram pelo país tropas da Síria, Israel, EUA, a Organização pela Libertação da Palestina e sabe-se lá quantos agentes secretos e grupos terroristas.

Seguiram-se 15 anos de reconstrução e paz precária, sob a tensão permanente das tropas sírias e israelenses, do Hezbolá e das milícias. A glória do passado não voltou, mas uma parte de Beirute foi reconstruída e o turismo ajudou a recuperar a economia, com visitantes chegando dos países árabes e do próprio Brasil, onde vivem cerca de 6 milhões de descendentes de libaneses.

Mesmo esse sonho modesto acabou. Bairros inteiros de Beirute foram destruídos. Os danos à infraestrutura estão calculados em US$2 bilhões. A indústria de turismo, evidentemente, ficará em colapso por muito tempo. A política no Oriente Médio é um tributo à estupidez humana, mas mesmo nesse contexto o conflito atual se destaca pela barbárie e pela carnificina sem sentido.

Na blogosfera, libaneses e israelenses discutem. Algumas opiniões:

Zadig Voltaire:

“Irã, Síria, Hezbolá e Israel estão transformando o Líbano num campo de matança. Meu belo país está em chamas devido à ideologias malucas. Meu Líbano de alegria está sendo devorado por monstros humanos. Meu gentil Líbano está sendo dilacerado em nome da religião... “

Carmia (Haifa, Israel):
"Eu estava assistindo ao noticiário sobre os mísseis que caíram em Nazaré e mataram duas crianças quando meu namorado ligou daquela área, em seu caminho de volta do trabalho. Ele viu seu segundo míssil em um dia - acertou o posto de gasolina onde ele abastece... Ele está ficando nervoso porque os foguetes começaram a cair em sua cidade e também no município no qual ele trabalho, e pensa seriamente em deixar o norte, por enquanto."

Anton Efendi (EUA):
“Esses Estados árabes sabem o que está em jogo e percebem que não é nada menos que um golpe. É um golpe no Líbano, um golpe nos territórios palestinos e um golpe na região também, e a Síria é o centro de tudo... Em todo caso, não há retorno ao status quo ante. O Hezbolá foi exposto e tomou-se a decisão de eliminar sua ameaça militar... Mas um elemento crucial nisso tudo é a neutralização de Assad [presidente da Síria]”.

Depoimento de libanesa no blog MsLevantine (EUA):
“Quando a guerra civil libanesa de 15 anos acabou em 1990, todos esperávamos que a nação tivesse finalmente se transformado de um sinônimo de violência urbana na “Ibiza” do Oriente Médio. Beirute estava atraindo hordas de turistas, seus terrenos se valorizavam rapidamente e os cidadãos se felicitavam com a idéia da riqueza longamente desejada.”

West Bank Mama (mulher em assentamento israelense na Cisjordânia):

“Não gosto de Ehud Olmert. Não votei nele na última eleição e discordo de quase tudo do que ele defende politicamente. Sou membro de uma comunidade que ficou amargamente desiludida em agosto do ano passado, quando o desengajamento do Gush Katif [assentamentos isralenses em Gaza] foi implementado – e posso sofrer pessoalmente se ele quiser implementar outro plano semelhante na Judéia e Samaria [Cisjordânia]. Mas fiquei muito contente com seu discurso no Knesset [parlamento] na noite passada.”

terça-feira, julho 18, 2006

Líbano: entrando no turbilhão


 

Em 1982, militantes da OLP utilizavam o sul do Líbano para atacar Israel. Naquela ocasião os libaneses estavam divididos por uma sangrenta guerra civil e nenhum grupo tinha controle de todo o território. Os israelenses se aliaram a milícias cristãs e invadiram o Líbano, tentando reunificar o país sob controle de seus novos amigos. Ao ocupar metade de Beirute, o exército de Israel cercou os campos de refugiados palestinos de Sabra e Chatila. As milícias cristãs entraram e executaram milhares de pessoas, no pior massacre dos conflitos do Oriente Médio.

O escândalo internacional e a oposição interna fizeram Israel recuar, embora suas tropas continuassem a ocupar o sul do Líbano por mais 18 anos, até 2000. Ao longo desse período, as milícias xiitas foram em grande medida substituídas por um novo grupo, mais radical, melhor armado e organizado, com apoio do Irã e da Síria. O Partido de Deus. Em árabe: Hezbolá.

O nome do ministro da Defesa de Israel que planejou a invasão do Líbano? General Ariel Sharon. Renunciou à pasta após Sabra e Chatila, mas recebeu outro posto ministerial.

Os ataques recentes do Hezbolá surpreenderam Israel pelo alcance e poder de fogo das armas, diz Paul Rogers, um de meus analistas internacionais preferidos. Ele afirma que os mísseis usados pelo grupo destruíram tanques e navios de guerra israelenses cujos mecanismos de defesa supostamente os protegeriam desse tipo de agressão.

Os bombardeios de Israel ao Líbano já mataram mais de 230, e estão concentrados na infraestrutura: estradas, aeroportos, usinas elétricas. Levando em conta que o país passou metade dos últimos 30 anos em guerra civil, não deve haver tanta coisa assim para destruir. Segundo a imprensa, um milhão de pessoas deixou o Líbano, apesar das dificuldades – a estrada para a Síria, principal rota de fuga, está sob ataque. A opinião pública em Israel manifesta alto índice de aprovação ao primeiro-ministro Olmert. Ele livrou-se até de uma investigação sobre corrupção. Nada como uma boa guerra.

Israel aposta que a escalada militar irá isolar o Hezbolá da população libanesa e que a liderança do país aceitará um acordo de paz. O maior obstáculo é que o governo do Líbano não controla todo seu território: partes do sul e vários subúrbios de Beirute estão sob domínio do Hezbolá, que tem apoio dos xiitas (o grupo majoritário do país) e que recebe armas e dinheiro da Síria (que mantinha tropas no Líbano até 2005) e do Irã. Há risco concreto de retorno da guerra civil libanesa no caso de ataque do governo ao Hezbolá.

O jornal libanês publicado, em língua inglesa, o Daily Star, deu editorial sobre as ameaças da guerra: “As ações de Israel em Gaza e no Líbano estão criando uma nova geração de militantes que não se deterão diante de nada para levar a vingança contra os EUA e Israel. Se o padrão atual se mantiver, a próxima geração de militantes irá sobrepujar seus predecessores, assim como o Hezbolá, o Hamas e a Al-Qaeda sobrepujaram a Frente Popular para a Libertação da Palestina e a Organização para a Libertação da Palestina.”

Na coluna direita do blog, coloquei links para sites de notícias e de análises internacionais, para quem quiser acompanhar a crise no Oriente Médio em detalhes.

segunda-feira, julho 17, 2006

A Ação Afirmativa das Leis


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Reproduzo abaixo um artigo meu que foi publicado nesta segunda no jornal "Correio Braziliense". Faz parte de uma pesquisa que preparo sobre política externa brasileira e combate ao racismo.

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A AÇÃO AFIRMATIVA DAS LEIS


A controvérsia sobre a implementação de cotas raciais pelo governo brasileiro trouxe as desigualdades étnicas para o centro do debate político. Nesse contexto, é oportuno lembrar que a Constituição Cidadã de 1988 e os acordos internacionais de direitos humanos dos quais o país é signatário implicam o compromisso com políticas de ação afirmativa e combate ao racismo. Tais medidas também são adotadas por países que à semelhança do Brasil são democracias multiétnicas com graves problemas de inclusão social, como Estados Unidos, Índia e África do Sul.

Nos anos 50 o senador Afonso Arinos propôs a lei 1390/51, que tornou o racismo contravenção penal, tipificando-o como a recusa de entidades públicas ou privadas atenderem uma pessoa por causa da cor da pele. O político afirmou que a lei teve, porém, eficácia mais sociológica do que jurídica , contribuindo para a conscientização da sociedade brasileira sobre o problema do racismo.

Na década seguinte entrou em vigor a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (CERD), ratificada pelo Brasil em 1968. Foram os anos do movimento pelos direitos civis nos EUA, da luta contra o apartheid na África do Sul e da descolonização afro-asiática. A CERD tem como referência acordos anteriores, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a convenção contra discriminação no emprego, da Organização Internacional do Trabalho (1956). Além de proibir práticas racistas, o artigo segundo da CERD estabelece o compromisso dos Estados em implementar medidas especiais e concretas para garantir que os grupos discriminados tenham acesso aos direitos humanos.

A ação afirmativa ganhou força em tratados posteriores de direitos humanos, como a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW, de 1979) e a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (1989), que trata do racismo contra os povos indígenas. O Brasil é signatário de ambas.

A Constituição Cidadã de 1988 guia-se pelos mesmos princípios de valorização da dignidade humana, ao estabelecer como objetivos da República a construção de uma sociedade justa e solidária, com o combate às desigualdades, incluindo as que se originam da intolerância racial. A legislação anti-discriminação foi aprimorada, sobretudo pela leis 7716/89 e 9459/97, que tornaram o racismo crime inafiançável e imprescrítivel e acrescentaram em sua definição as agressões que podem ocorrer por razões religiosas ou de origem regional. Foi aumentada a pena para o crime de injúria, quando este envolve ataques raciais.

À igualdade formal, a Carta Magna acrescentou a preocupação com a igualdade material. É a consciência de que não basta proibir a discriminação, é preciso promover a inclusão de grupos sociais marginalizados através de políticas de ação afirmativa. Medidas com esse objetivo foram adotadas visando à proteção das mulheres (por exemplo, permitindo-lhes aposentar-se mais cedo do que os homens, visto que com freqüência têm dupla jornada de trabalho por cuidarem da casa e da família), e da população negra e indígena. O tratamento diferenciado também se estende às pessoas portadoras de deficiência física, que contam inclusive com cotas nos concursos públicos.

A discriminação racial está na origem do Brasil. O legado brutal dessa prática levou o país a ser uma das sociedades mais desiguais do planeta. Tais características são incompatíveis com a construção de uma nação moderna, dinâmica e democrática. A Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos apontam o caminho para a superação das injustiças que caracterizam a história brasileira. Para tanto, é preciso que a opinião pública reconheça a importância da ação do Estado para corrigir a herança de desigualdades sociais e raciais. E deste ponto de partida, passar ao próximo passo: o debate sobre quais as políticas públicas mais adequadas para atingir o objetivo da criação de um país solidário e integrado.

domingo, julho 16, 2006

Rumo à Guerra no Oriente Médio


 

No Oriente Médio, “paz” é condição que inclui atentados terroristas, ataques guerrilheiros, operações de forças especiais e outros atos de violência. Em suposta represália ao seqüestro de dois militares, Israel re-ocupou Gaza e bombardeou o Líbano em grande escala, inclusive a capital, Beirute. A captura de seus soldados é apenas pretexto. Os israelenses buscam a guerra e a querem agora, enquanto o equilíbrio de poder lhes favorece, com Bush no poder nos EUA e o Irã ainda sem armas nucleares.

Quando os Estados Unidos invadiram o Iraque, abriram a caixa de Pandora para a ação de diversos grupos terroristas, em especial Hezbolá e Hamas, que conquistaram mais apoio de populações assustadas e enraivecidas pelas atrocidades dos americanos. Ambas as organizações surgiram como resistência à ocupação israelense, respectivamente no sul do Líbano (1982-2000) e em Gaza (1967-2005). Ambas também estão organizadas como partidos à frente de governos ou ministérios na Palestina e no Líbano.

A política de Israel sob Sharon foi isolar Arafat e retirar-se de Gaza, para concentrar esforços e recursos na Cisjordânia, muito mais importante. A decisão foi controversa e o velho general sofreu um derrame, retirando-se da vida pública. O novo premiê, Ohmert, não é líder militar. Falta-lhe o prestígio de Sharon e está muito mais suscetível às pressões da linha dura para ataques de larga escala ao Hamas e ao Hezbolá, visando à substituição dos governos hostis na Palestina, Líbano e Síria. O projeto tem afinidades eletivas com as ambições dos Estados Unidos na região. Resta saber se terá o mesmo destino da Cruzada empreendida contra o Iraque.

quarta-feira, julho 12, 2006

Cartas a um Jovem Escritor


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O livro que comento esta semana foi lançado há poucos dias e é do peruano Mario Vargas Llosa, um dos meus autores favoritos. Chama-se “Cartas a um Jovem Escritor”, um pequeno conjunto de ensaios sobre literatura em forma de conselhos a um aprendiz de romancista.

Os bibliófilos devem ter pensado nas “Cartas a um Jovem Poeta”, de Rainer Maria Rilke, mas aquelas foram escritas a um destinatário real, um rapaz em dúvida entre seguir carreira militar ou dedicar-se à poesia. Vargas Llosa apenas se vale da forma epistolar para abordar o tema, mas não se dirige a um interlocutor específico.

Curiosamente, como no livro de Rilke, a melhor carta é a primeira, que trata da vocação literária, que Vargas Llosa identifica com a rebeldia, com “a rejeição e crítica à vida e ao mundo real”. É antes um sentimento íntimo do que a oposição à ordem social vigente, embora possa assumir também esse aspecto. Além disso, diz Vargas Llosa, a ficção deixa nos leitores a sensação de mal-estar, de desconforto com relação às coisas, pois ficam com “uma sensibilidade muito mais aguçada diante de suas limitações e imperfeições.”

Na segunda carta, o escritor peruano fala do romancista como um ser que se autoconsome num “striptease às avessas”, partindo de suas experiências pessoais mas transfigurando-as em matéria ficcional, na vida que poderia ter sido. O autor autêntico é o que passou pelo processo de “aceitar seus próprios demônios e servi-los na medida do possível.”

As cartas restantes são mais técnicas e se dedicam aos diversos aspectos da arte narrativa do romance: como organizar tempo, espaço e coesão interna, o uso de várias vozes para contar uma história, as tramas paralelas etc. Além de estupendo romancista, Vargas Llosa é doutor em Letras e autor de ensaios sobre escritores célebres. Seus exemplos favoritos vem da seara hispano-americana (Cortazar, Garcia Márquez, Borges, Juan Rulfo, Carlos Fuentes, Alejo Carpentier) ou da tradição realista americana e francesa (Faulkner, Melville, Henry James, Flaubert). Há observações muito boas, como esta: “A literatura é puro artifício, mas a boa literatura é capaz de ocultar tal fato, enquanto a medíocre o delata”.

Da teoria à prática, o romance mais recente de Vargas Llosa, “Travessuras da Menina Má” já foi lançado na Europa e deve sair em português em setembro. È uma história de amor ambientada em vários países, entre os anos 60 e o presente. A crítica o saudou como excelente. Me resta aguardá-lo!

terça-feira, julho 11, 2006

Buenos Aires 100Km



“Buenos Aires 100 Km” é mais um bom filme que nos chega da Argentina. Sem ter pretensões a obra-prima, é uma história bem contada sobre a transição da infância para a adolescência numa cidadezinha de província.

Tudo se passa em torno de um grupo de amigos que se reúnem para jogar futebol, andar de bicicleta e tomar sorvete vendo a vida passar, meio abestalhada. Dois fatos quebram a rotina: a chegada de uma moça de Buenos Aires por quem um deles se apaixona e um ciclo de boatos que acabará por atingir os meninos, transformando para sempre a relação entre eles.

Cada um dos garotos tem seus pequenos dramas, mas o que ganha destaque é Estéban, que parece ser o alter ego do roteirista: um menino sensível, que vive simultaneamente o primeiro amor e as pontadas iniciais da vocação literária, para desgosto da família de pequenos comerciantes que sonha em vê-lo terminar a escola técnica e se tornar arquiteto.

A nostalgia é um dos grandes temas da arte – “Mas onde estão as neves d´outrora?”, perguntava-se um poeta medieval francês num momento difícil de uma vida atribulada. No entanto poucos países têm tanto saudosismo no centro de sua cultura quanto a Argentina. Talvez só Portugal.

“Buenos Aires 100 Km” tem esse clima nostálgico, de uma melancolia doce, da “grande dor das cousas que passaram”, como quer Camões. O futuro aparece nos planos dos personagens de sair do “pueblito de mierda” e vencerem os cem quilômetros que os separam da capital argentina e de uma vida mais rica e interessante. Mas esse dia nunca chega e um dos diálogos mais simples e tocantes do filme é justamente o da moça que se recusa a levar adiante a saudade, porque “o que acabou, acabou”.

A frase não é lá muito típica da Argentina, mas quem sabe reflita o novo estado de espírito de um país que se reinventa, aos trancos e barrancos.

domingo, julho 09, 2006

A Lição do Mestre


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O destaque do segundo dia da conferência foi a palestra sobre África do embaixador Alberto da Costa e Silva. João Daniel diz que é o intelectual mais completo do Brasil e concordo com ele: quantos pensadores são capazes de dissertar com igual brilho e elegância sobre o processo de formação dos Estados africanos, os impactos do tráfico negreiro nas Américas, as métricas dos poetas românticos e a gênese do frevo e do jogo do bicho? Além disso, o embaixador morou em Portugal, Brasil e Nigéria – as três matrizes que formaram nossa cultura e povo. E é um apaixonado por nosso país, coisa não tão comum no que diz respeito à elite pátria.

Em sua palestra, Costa e Silva falou dos problemas de instabilidade política enfrentados pela África, destacando como o “continente da esperança e da utopia” de seus tempos de jovem diplomata nos anos 50 transformou-se numa terra de desalento. Mas afirmou otimismo diante do extraordinário espírito inventivo dos africanos, ressaltando que as dificuldades pelas quais passam também foram obstáculo para muitos outros países.

O embaixador está aposentado e criticou as posições oficiais do Brasil com relação à África, dizendo que é preciso abandonar a “mentalidade fenícia” de equiparar diplomacia a saldos no comércio exterior. O continente africano é um interesse estratégico brasileiro, que requer atenção constante e “a política externa é sobretudo política”. Foi ovacionado.

Defendeu em especial a concessão de bolsas de estudos a universitários africanos, para formar uma elite dirigente com laços fortes no que diz respeito ao Brasil.

Os diplomatas da ativa apressaram-se em enumerar as ações brasileiras na África. De fato, não são poucas. O comércio cresce, bem como cooperação nas áreas militar, de saúde, educação e agricultura. A Embrapa acabou de inaugurar uma agência em Gana, para realizar parcerias agrícolas com países da África Ocidental. E o presidente Lula já esteve várias vezes no continente (ainda que cometendo as gafes costumeiras).

Um tema que surgiu no debate com a platéia foi a necessidade de rever certos aspectos da história brasileira, dando crédito às contribuições técnicas e econômicas dos africanos para a economia do país, como no desenvolvimento da mineração, da fundição e da própria maneira de criar o gado, que segue os padrões da África Ocidental e não os de Portugal.

Ir à África para reencontrar e reinterpretar o Brasil. Eis aí um belo programa de pesquisa para os acadêmicos brasileiros.

quinta-feira, julho 06, 2006

Um Adeus às Armas?



Passei esta quinta no Palácio do Itamaraty, no Rio de Janeiro, no dia inicial da “I Conferência sobre Política Externa e Política Internacional – O Brasil no mundo que vem aí”. O objetivo do evento é expor as posições do Ministério das Relações Exteriores à comunidade acadêmica brasileira. Investimento grande: convidaram umas 150 pessoas, em geral coordenadores de cursos de relações internacionais, de todo o país. Em cada mesa de debates, diplomatas e professores universitários. Estava presente toda a direção do Itamaraty.

O ministro Celso Amorim falou por cerca de uma hora, numa palestra que teve um certo sabor de despedida. Há rumores de que ele não permanecerá no cargo num eventual segundo mandato de Lula e em vários momentos seu tom era o de alguém que fazia o balanço de uma tarefa difícil, destacando o que foi obtido e o que fica para depois. Não era o estilo de quem tem pela frente mais quatro anos. Mencionou até o desejo de voltar a se dedicar à toeria das relações internacionais.

Amorim se queixou dos problemas no relacionamento com a imprensa e com a política interna. Penso mesmo que a conferência é um esforço de relações públicas do Itamaraty para melhorar o diálogo com os formadores de opinião. Infelizmente, o nível das palestras e dos debates foi apenas razoável, com exceção de duas ótimas falas: a do diplomata Roberto Azevedo, sobre OMC, e a do professor Luis Salomão, que tratou de política energética.

O debate sobre minha área de especialização, a América Latina, os palestrantes exprimiram a opinião de que há países com os quais o Brasil não tem nada a ganhar (os que assinaram tratados de livre comércio com os EUA) e os que são aliados (os que não o fizeram). Essa visão fecha possibilidades importantes de cooperação: 1) Com o México, que tem mencionado o desejo de tornar-se membro associado do Mercosul; 2) Com as nações da América Central, que estão num ambicioso programa de obras de infraestrutura em torno do Canal do Panamá, da qual participam empresas brasileiras; 3) Com o Chile, cujas elites empresariais estão nadando em dinheiro por conta da alta do cobre, e buscam opções de investimento. 4) Além disso, a dicotomia não explica porque um país do “bem”, a Bolívia, impôs a pior derrota da política externa brasileira em vários anos.

Na sexta-feira, os debates prosseguem com mesas sobre países e regiões: EUA, China, Índia, África, Europa e Oriente Médio. Vejamos o que sai daí.

Uma ótima conseqüência da conferência foi encontrar toda comunidade de relações internacionais do Rio: colegas de doutorado, de docência na universidade, alunos, ex-orientandos, a turma toda. É um povo muito divertido, que faz o trabalho acadêmico ser alegre e leve. Como deve ser.

quarta-feira, julho 05, 2006

A Casa da Água



Ao longo do século XIX, muitos ex-escravos e seus descendentes saíram do Brasil e foram para África, nos territórios que hoje fazem parte da Nigéria, Benin, Gana, Costa do Marfim. São conhecidos em geral como agudás e sua saga é analisada por talentos do quilate de Gilberto Freyre, Pierre Verger e Alberto da Costa e Silva. Mas somente agora li o extraordinário romance “A Casa da Água”, de Antônio Olinto, que conta a história através da ascensão de uma família brasileira no continente africana , numa trama
épica que atravessa 60 anos.

O enredo começa com a decisão de uma ex-escrava, Catarina, de retornar à Nigéria, levando a filha e os netos. Uma das crianças, Mariana, é a personagem central do romance, mulher de personalidade forte e gênio empreendedor que cresce entre as culturas brasileira e africanas e se torna uma rica comerciante com negócios nas colônias européias do Golfo do Benin, ambiente em que se misturam inglês, francês, português, iorubá e outros idiomas e tradições.

Os filhos de Mariana afastam-se dos costumes brasileiros e fazem estudos universitários na Inglaterra e na França, formando a geração de africanos instruídos que tem o papel decisivo na luta pela independência de seus países, a partir dos anos 50.

Mariana é o centro de uma teia de mulheres que conduzem o destino de uma família onde os homens estão em larga medida ausentes, ou são sobrepujados pela energia e determinação das parentes femininas.

O título do romance refere-se a uma famosa construção na cidade nigeriana de Lagos, uma casa com poço artesiano feito por brasileiros. No livro, é a partir da venda da água extraída do poço que Mariana inicia sua fortuna. De fato, boa parte dos ex-escravos que voltaram à África haviam aprendido ofícios no Brasil e eram conhecidos por sua perícia profissional como marceneiros, alfaiates, mestres de obra etc. Formaram o embrião de uma burguesia mercantil, até serem desalojados pelos colonizadores europeus que fatiaram o continente no fim do século XIX.

Olinto serviu como adido cultural do Brasil na Nigéria, nos anos 60, e lá conheceu os agudás que inspiraram sua obra-prima. O carinho e o interesse do autor pela África são evidentes no calor humano de seu belíssimo livro. É o primeiro de uma triologia completada por “O Rei do Keto” e “O Trono de Vidro”, que irei caçar pelas livrarias.

segunda-feira, julho 03, 2006

Eu, Você e Todos Nós



Miranda July é uma jovem cineasta e artista americana cujo “Eu, Você e Todos Nós” ganhou o Câmera d´Or (prêmio aos diretores estreantes) em Cannes e também foi laureado na Meca dos independentes, o Festival de Sundance. Não é para menos: trata-se de uma excelente comédia romântica, divertida, poética e sensível.

O que detona a trama é a paquera entre Christine (interpretada pela própria diretora, também autora do roteiro), uma aspirante à artista que trabalha como motorista para idosos, e Richard, um vendedor de sapatos recém-divorciado. Ao redor dos dois gravita uma fauna de personagens deliciosamente excêntricos, que incluem os dois filhos de Richard, seus vizinhos, um colega de loja, a diretora de um museu e um adorável casal de namorados bem velhinhos atendidos por Christine.

Todos eles viverão histórias de amor algo bizarras, mas de beleza intensa, extraindo poesia do cotidiano – por exemplo, a seqüência com o peixe na autoestrada, a caminhada de Christine e de Richard (cuja foto ilustra o post), o enxoval da vizinha, o flerte entre duas adolescentes e um dos vendedores da loja e a exposição de fotos.

“Eu, Você e Todos Nós” entrou em cartaz com alguns elogios da crítica especializada, mas pouco destaque, e está naquele micro-circuito das salas de arte. Injustiça: ao lado de “A Lula e a Baleia”, é o que vi de melhor no gênero de comédia romântica – léguas adiante de Woody Allen e das tramas novelescas dos filmes brasileiros.

domingo, julho 02, 2006

Alegorias da Derrota


A derrota da seleção brasileira também reflete alguns dos problemas da vida política do Brasil:

1) A organização coletiva não funciona e as esperanças são depositadas em líderes carismáticos, que com seu talento individual teriam condições de mudar o jogo. Às vezes dá certo. Em outros momentos, o suposto Messias tem problemas: está acima do peso, bebe demais, é corrupto, por aí vai.

2) As autoridades agem de maneira arrogante, não aceitam críticas e se eximem da responsabilidade por seus atos.

3) A imprensa, em vez de exercer seu papel de fiscalizar e noticiar imparcialmente, age como torcida organizada, tentando levantar a bola do Messias. Quando, por descuido, critica a Autoridade, logo se apressa em pedir desculpas.

4) A torcida está mais para platéia passiva do que para o 12º participante. Que diferença dos torcedores franceses, gritando, cantando a Marselhesa, protestando.... Nos estádios e fora dele, bem sabe o presidente Chirac.

5) O sucesso em campo é baseado numa retórica abstrata, que pode entusiasmar num primeiro momento mas mostra-se vazia de conteúdo nas primeiras dificuldades. Quadrado Mágico, Fome Zero, Pacto Social.

6) O horizonte da liderança é a mediocridade. Falta ousadia e criatividade. O "futebol de resultados" de Parreira é o equivalente à política econômica ortodoxa de Lula. Uma e outras são recessivas e deprimentes.

sábado, julho 01, 2006

Mexico: incerteza, violência e mobilização



Reproduzo reportagem que escrevi sobre as eleições no México e que foi publicada no site do Ibase:

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O começo da rebelião zapatista no México, em 1994, pode ser considerado o início da onda de contestação ao neoliberalismo na América Latina. Doze anos depois, a população mexicana se prepara para eleger um novo presidente no dia 2 de julho, mas num cenário de violência e forte presença do autoritarismo na política.

Não há segundo turno no sistema eleitoral do país e as pesquisas de opinião dão empate técnico para os candidatos Andrés López Obrador (ex-prefeito da cidade do México e líder do Partido da Revolução Democrática/PRD, de centro-esquerda) e Felipe Calderón (um dos líderes do Partido Autonomista Nacional/PAN, agremiação conservadora do presidente Vicente Fox).

O Partido Revolucionário Institucional (PRI), que governou o México por 70 anos, amarga o terceiro lugar na disputa presidencial, mas continua a ter o maior número de governos estaduais e de parlamentares no Congresso.

López Obrador ganhou fama como prefeito ao implantar uma série de políticas sociais de distribuição de renda e prestação de serviços comunitários, como saúde. A maioria de seu apoio político está na capital e nos estados do sul, os mais pobres.

Seu rival, Calderón, destacou-se como deputado, líder partidário, ministro e dirigente de bancos públicos. Advogado pós-graduado em Harvard, foi um dos negociadores do Nafta e tem apelo nos estados do norte, nos quais estão instaladas as maquiladoras, indústrias que montam os produtos a serem exportados aos EUA e ao Canadá.

“A outra campanha”

A campanha eleitoral está marcada por discussões de baixo nível, acusações mútuas de corrupção e desrespeito à democracia. Nesse contexto, o Exército Zapatista de Libertação Nacional optou por não apoiar qualquer candidato e iniciou uma série de marchas e protestos sociais pelo interior do México, numa iniciativa batizada de “A outra campanha”.

A iniciativa ocorre no formato de caravanas e sessões de diálogo em pequenas cidades mexicanas, com atenção especial às áreas indígenas. As pessoas discutem seus problemas e o subcomandante Marcos, agora rebatizado como “Delegado Zero”, discursa, expondo as posições políticas do zapatismo.

“A outra campanha” tem obtido pouco espaço na grande imprensa mexicana, com exceção do jornal progressista La Jornada. Mas a mídia alternativa difunde pela Internet e por rádios os principais acontecimentos das marchas.

Violência e barbárie

O clima tenso das eleições mexicanas estourou em diversos conflitos por todo o país. Em abril, uma greve no setor de mineração e siderurgia no estado de Michoacán terminou na invasão policial que matou duas pessoas e deixou mais de 80 feridas.

O pior ocorreu em maio, na cidade de San Salvador de Atenco, a poucos quilômetros da capital. O confronto começou quando a prefeitura anunciou um plano para reformar o mercado municipal, mas a proposta incluía expulsar pessoas pobres que tradicionalmente utilizavam o local para vender flores. No lugar do centro popular, seria construído um shopping center.

A questão transformou-se numa luta que mobilizou movimentos sociais de Atenco, que praticamente ocuparam o centro da cidade durante dias. Negociações avançaram e uma solução pacífica parecia à vista. Contudo, 400 policiais ocuparam de surpresa o mercado municipal e iniciaram uma feroz repressão contra manifestantes, matando um rapaz de 14 anos e prendendo cerca de 300 pessoas, muitas das quais foram espancadas e humilhadas.

A barbárie continuou após a detenção: um grupo de mulheres foi vedada e sofreu abusos sexuais e estupros por parte da polícia. Ativistas estrangeiras, do Chile e da Espanha, foram deportadas por participarem do protesto.

O prefeito de Atenco, Nazario Gutiérrez, pertence ao Partido da Revolução Democrática, mas a repressão se deu em parceria com tropas policiais do governo federal do PAN. A grande imprensa, sobretudo as televisões Azteca e Televisa, afirmaram que a culpa da violência era dos movimentos sociais e do zapatismo. Marcos reagiu suspendendo “A outra campanha” e declarando alerta vermelho no início de uma série de mobilizações e protestos contra a violência governamental em Atenco.

Mas continuaram os choques entre a população e as autoridades. Em junho, na cidade de Oaxaca, no sul do país, 40 mil professores(as) que protestavam durante uma greve foram atacados pela polícia.

Novamente, a repressão foi brutal: pelo menos quatro manifestantes morreram, incluindo uma criança. O número é incerto, pois a polícia é acusada de ter roubado corpos para evitar denúncias do massacre. O governador estadual, Ulisses Ruiz, pertence ao PRI e nega as acusações. Um protesto de cerca de 100 mil pessoas pediu a renúncia de Ruiz.

Chama a atenção o fato de que a onda de violência das autoridades mexicanas tenha sido desencadeada por acontecimentos normais em qualquer democracia: greves, passeatas, protestos sociais. Também é preocupante que a repressão tenha envolvido políticos dos três principais partidos e de todas as esferas de governo (federal, estadual, municipal).

Na disputa acirrada entre López Obrador e Calderón, o próximo presidente provavelmente será eleito com pequena margem de votos, o que pode agravar ainda mais as dificuldades das autoridades do Estado para manter um bom relacionamento com a oposição e os movimentos sociais.
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