domingo, abril 30, 2006

Taxas Globais

Ontem à noite eu estava numa festa de jornalistas sendo apresentado como alguém que abandonou a profissão pela seara da ciência política. Não é bem assim, protestei, ainda escrevo "jornalista" no espaço apropriado nas fichas de hotel e na declaração de imposto de renda. Além disso, tenho escrito bastante para jornais.

Para fechar o ciclo de posts sobre o Fórum Social Brasileiro, vai o link para meu artigo "De Recife a Nairóbi", publicado no Jornal do Brasil, onde falo da importância do FSB e o ligo aos fóruns que ocorrem em outros países.

Abaixo, reproduzo meu artigo sobre a questão da criação de taxas globais contra a pobreza, que saiu no site do Ibase. Nessa iniciativa, o Brasil tem papel-chave. OK, também odeio pagar impostos, mas a proposta é interessante. Deve ser um dos temas da minha aula na próxima semana.

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Taxas globais: nova arma contra a pobreza


A Associação Brasileira de ONGs, a Fundação Friedrich Ebert e a Attac realizaram no Fórum Social Brasileiro o painel de debates Taxas globais: uma fonte de financiamento para combater a pobreza? Parte do seminário Financiamento para o Desenvolvimento, o evento reuniu diplomatas e representantes da sociedade civil da América do Sul e da Europa.

O espírito do encontro foi resumido por Peter Wahl, da ONG alemã Weed: "O filósofo Schopenhauer dizia que toda boa idéia passa por uma fase em que é considerada loucura, outra em que é tida como inviável e um estágio em que é implementada. No que diz respeito às taxas globais, estamos entre o segundo e o terceiro momento".

O diplomata chileno Alexis Guardia analisou o contexto histórico, mostrando que as discussões sobre taxas globais nasceram da constatação de que a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento (AOD) havia caído muito nos anos 1990. Faltavam US$ 50 bilhões para que os países pobres fossem capazes de alcançar as Metas do Milênio, o conjunto de objetivos sociais definidos na ONU em 2000. Diante da incapacidade de elevar a AOD aos valores necessários, ONGs, acadêmicos(as) e governos propuseram fontes alternativas para financiar o desenvolvimento.

Guardia listou iniciativas como taxar globalmente transações financeiras internacionais, emissão de gases poluentes como o dióxido de carbono, comércio de armas e passagens aéreas. O diplomata também mencionou mecanismos alternativos, como medidas para facilitar remessas de dinheiro de imigrantes a seus países de origem, incentivos às doações privadas e até a proposta britânica de lançar títulos financeiros para custear projetos sociais no mundo em desenvolvimento. Segundo Guardia, "os problemas técnicos com relação a essas iniciativas foram resolvidos, a questão agora é política".

As maiores dificuldades enfrentadas pelos defensores das taxas globais dizem respeito aos interesses econômicos que seriam prejudicados com sua adoção. As empresas do mercado financeiro são as mais resistentes, alegando que tentativas de aumentar os custos das transações econômicas resultariam na fuga de investidores e na diminuição dos recursos disponíveis ao desenvolvimento. As ONGs que apóiam as taxas afirmam que elas teriam efeito regulatório, desestimulando especulação em operações de câmbio, derivativos e outros instrumentos financeiros.

O diplomata brasileiro Alan Coelho de Séllos apresentou a iniciativa do governo Lula de taxar as passagens aéreas internacionais e utilizar o dinheiro para o combate à Aids. A proposta entrará em vigor ainda em 2006 e conta com o apoio do Chile e da França. Séllos destacou que a idéia nasceu da Ação Internacional contra a Fome e a Pobreza, proposta pelo presidente Lula à Assembléia Geral da ONU.

"Vamos aproveitar as estruturas existentes, sem criar uma burocracia nova", afirma Séllos. A taxa será cobrada no momento em que as pessoas comprarem passagens para os países que fazem parte da iniciativa. Trata-se, na realidade, de um acréscimo sobre os tributos aeroportuários já em vigor. O dinheiro será repassado ao Fundo Global de Combate à Aids, Tuberculose e Malária, da Organização Mundial da Saúde. O diplomata brasileiro ressaltou que a prioridade será enfrentar a "transmissão vertical" da Aids, da mãe para as crianças.

Além disso, o Brasil deverá contribuir com US$ 12 milhões para a recém-criada Central Internacional de Distribuição de Medicamentos, que visa ao abastecimento dos países mais pobres do mundo. A Presidência enviou projeto de lei ao Congresso pedindo autorização para a transferência dos recursos, que sairão diretamente do orçamento do governo federal.

Peter Wahl comentou as análises dos dois diplomatas e chamou a atenção para a importância dos temas tributários na história moderna, destacando seu papel decisivo na eclosão da guerra de independência dos EUA (recusa em pagar impostos ao rei da Inglaterra sem ter representação no parlamento) e na Revolução Francesa (nobreza e Igreja isentos de impostos, sustentados pela população plebéia).

Para Wahl, o neoliberalismo é responsável pela "refeudalização" dos impostos, realizando cortes tributários para grandes empresas e pessoas ricas e jogando a carga sobre os grupos mais pobres – o mesmo tipo de conflito que levou às grandes contestações sociais do passado.

"As taxas globais são inovadoras porque antes toda a tributação era no âmbito do Estado nacional. Além disso, elas podem oferecer soluções como suprir a ONU com uma fonte de financiamento que torne a organização imune da chantagem exercida pelos EUA", destacou Wahl, lembrando que os Estados Unidos são os principais mantenedores financeiros das Nações Unidas e se valem desse poder de pressão para impor seus interesses.

sábado, abril 29, 2006

A Lula e a Baleia



Noah Baumbach. Anote o nome, se você gosta de cinema. Seu “A Lula e a Baleia” é um dos filmes mais interessantes que entraram em cartaz neste ano, um drama sobre relacionamentos, com toques de comédia, que supera inclusive muito da produção recente de mestres do gênero, como Woody Allen.

O enredo, semi-autobiográfico, fala sobre a separação de um casal de intelectuais de Nova York, e o impacto do acontecimento nos dois filhos adolescentes. O marido é um escritor que fez furor na juventude, mas atravessa um período de ostracismo. Quando a mulher desponta como uma autora de sucesso, o casamento (que já não ia bem) desaba. O filho mais velho fica do lado do pai, o caçula apóia a mãe.

O filme consegue ser doce, amargo, triste e alegre ao contar como a família tenta lidar com a situação. A mãe buscando esportistas que são o oposto do ex-marido, o pai envolvendo-se com uma de suas alunas, o filho mais velho assumindo sem perceber muitas das atitudes arrogantes de intelectuais (ô raça!) e o caçula entrando num surto de erotismo preoce.

Belo filme. Aguardo o próximo do sr. Baumbach.

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Outra boa pedida em cartaz é “Não é você, sou eu”, raro exemplar de comédia romântica argentina que chega aos cinemas brasileiros. Um casal planeja emigrar para os EUA. A mulher vai na frente, enquanto o homem se desfaz do apartamento, vende o carro e deixa o emprego. Mas quando a esposa se apaixona por outro homem em Miami, ele precisa aprender a recomeçar.

O protagonista é um excelente ator que eu não conhecia, Diego Peretti, com um narigão que só não é maior do que seu talento para a comédia. O inteligente roteiro consegue escapar da maioria dos clichês do gênero, na realidade extrai seu humor justamente da tentativa fracassada do personagem principal viver segundo esses clichês.

Há toques deliciosamente portenhos, como as ótimas seqüências de psicanálise (uma mania nacional argentina) e o título - só no país de Cortazar e Maradona se usa “vos” em vez de “tu”, para irritação dos hispanohablantes dos outros cantos do mundo.

“Esse é só uma comédia romântica, não tem nada de política!”, disse a amiga que recomendou o filme. Sei não. A mensagem da história: é necessário parar de idealizar o passado, que no fundo nem era tão bom, e enfrentar de peito aberto as possibilidades do presente. Recomeçar. Não é uma excelente descrição do espírito “Argentina, Ano Zero” que sucede a grande crise de 2001?

quinta-feira, abril 27, 2006

Les Gringos Sont Arrivés



Há uma guerra sendo travada em Santa Teresa. Quem passa pelas tranqüilas ruas do meu bairro talvez não perceba, mas as facções rivais começam a se armar e trocam insultos e processos judiciais.

Isso porque os franceses (e outros estrangeiros, em menor número) invadiram Santa Teresa. Estão por toda parte. Compraram casarões antigos e os transformaram em ateliês. Vieram como hóspedes nas pensões do tipo "cama e café". Engajaram-se em projetos sociais. E, acima de tudo, iniciam um invesitmento milionário, comprando um velho hotel que será transformado num cinco estrelas.

Pertenço ao grupo pró-gaulês. Minha casa está no epicentro da Petite France em Santa Teresa. O hotel comprado fica a dois minutos do meu apartamento e estou feliz com a segurança 24 h que a rede hoteleira irá instalar. Na minha rua também tenho vizinhos franceses, simpáticos e gente boa. Sempre é legal saber que pessoas acham seu bairro tão bonito que atravessam o Oceano para vir morar nele.

Mas há muita gente ressentida com a chegada dos novos moradores. Reclamam que o preço dos restaurantes aumentou muito (é verdade, os valores do cardápio do Sobrenatural fazem jus ao nome do lugar). Os aluguéis também podem subir. Queixam-se de que só escutam línguas estrangeiras nas ruas do bairro. Reclamam de que as obras e empreendimentos imobiliários vão descaracterizar a tradição arquitetônica de Santa. Ou é simplesmente a desconfiança diante do Outro, do estranho, do estrangeiro. Testemunhei brigas homéricas - engraçadíssimas - dentro dos ônibus que cortam o bairro.

Há sempre alguém que começa a atacar os estrangeiros e recebe uma saraivada de críticas em troca. Os confrontos me fazem lembrar comentáirios do diplomata e escritor britânico Harold Nicolson, para quem o aumento do turismo, das viagens de
negócios e de outras formas de contato pessoal internacional não
contribuiriam necessariamente para o entedimento entre os povos. O sujeito é maltratado por um garçom em Berlim e volta à Inglaterra odiando os alemães, escreveu Nicolson. Estou descobrindo que muitos dos meus vizinhos são tão xenófobos quanto Jean Marie Le Pen - felizmente, um francês que não dá as caras por Santa.

Até a associação de moradores caiu nessa. Está correndo um abaixo-assinado que mistura problemas do bondinho e de outros meios de transporte até a questão do hotel dos franceses. Tudo misturado no mesmo documento. Complicado.

Alors, que venham os franceses. Não duvido que a combinação de grana e tradições cívicas que trouxerem na bagagem irão sacudir a poeira do bairro e ajudar a fazer de Santa Teresa um lugar melhor, mais rico em diversidade humana, com mais atividades culturais.

terça-feira, abril 25, 2006

A Arma da Casa



Descobrir uma escritora é um duplo prazer: a satisfação imediata de ler um bom livro e a alegria antecipada pelos tesouros que nos aguardam no resto da obra da autora. “A Arma da Casa” me apresentou a Nadine Gordimer, um dos dois prêmios Nobel de literatura da África do Sul.

Harald e Cláudia são um pacato casal de classe média alta: executivo de uma firma de seguros e médica. A tranqüilidade familiar vem abaixo quando Duncan, o filho único, se torna réu confesso num processo por assassinato. O enredo poderia ser um excelente suspense de tribunal. É mais do que isso: um retrato dos turbulentos primeiros anos do governo Mandela.

O casal de protagonistas não aprovava o apartheid, mas jamais esboçou um ato de oposição ao regime. A família se julgava um modelo de amor, progressismo e respeito às leis. O crime cometido pelo filho rasga o véu de silêncio e hipocrisia que ocultara tantas coisas naquela casa. E naquela sociedade.

Os pais são forçados a defrontar-se com os novos tempos, simbolizando no advogado de Duncan, Hamilton – negro, ex-militante contra o apartheid, que estudou Direito na Inglaterra enquanto estava exilado. De volta à África do Sul, vira uma estrela dos tribunais. A seqüência em que Harald e Claudia vão a uma festa da casa do advogado é brilhante, com a mistura, proximidades e tensões entre a velha elite branca e classe média negra em ascensão.

“A Arma da Casa” é uma obra-prima, uma junção perfeita do drama familiar com o contexto social da África do Sul, no qual a violência está sempre à espreita. A cultura do medo é decisiva para o desfecho da trama e faz pensar muito nas semelhanças com a realidade brasileira.

segunda-feira, abril 24, 2006

Turismo e Direitos Humanos

Semanas atrás, li no Guardian um interessante artigo sobre turismo e direitos humanos. Fiquei surpreso com a reação indignada de muitos leitores, afirmando que uma coisa nada tinha a ver com a outra. Entrei no debate chamando a atenção para como o comportamento dos viajantes pode ser marcado por relações de violência e degradação com as comunidades que visitam. Citei expressamente o turismo sexual, que tantos danos tem causado ao nordeste brasileiro.

Uma das melhores oficinas das quais participei no Fórum Social foi exatamente sobre turismo sexual, tráfico de mulheres e imigração, organizada pelo Coletivo Mulher Vida, ONG pernambucana que faz excelente trabalho nesse campo. O evento foi tocado por um grupo de mulheres muito jovens, algumas adolescentes e fiquei muito impressionado pela dedicação e coragem dessa equipe.

Houve uma ótima troca de experiências e informações e ouvi histórias impressionantes, principalmente sobre a situação em Fortaleza, mas também Natal, Salvador e Recife. Quanto ao Rio, os dados apontam para um cenário mais confuso, o turista não vem para minha cidade especificamente em busca de sexo, é mais difícil lidar com o tema por aqui.

Outro problema sério é que muitas das mulheres envolvidas rechaçam as inicativas contra o turismo sexual, alegando que querem tirar seu sustento de vida e que elas ganham mais nessa atividade do que se trabalhassem como domésticas ou faxineiras. Mas o dinheiro vem a preço alto, envolve violência, degradação, uso de drogas. Muitas das mulheres e meninas envolvidas nesse tipo de prostituição (creio que em qualquer tipo) foram estupradas na infância ou vem de famílias desestruturadas por alcoolismo e miséria.

Quero tratar do tema em algum dos projetos nos quais estou engajado, mas ainda não sei exatamente como. Preciso de mais informações.

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O Fórum foi encerrado com uma plenária de movimentos sociais. A maioria se manifestou de maneira favorável a Lula, defendendo-o com veemência, chamando-o de "companheiro" e até se oferecendo para ajudar na campanha à reeleição. Ingenuidade e falta de informação? Acho que não. A maioria dos líderes sociais presentes vem de um histórico de pobreza, perseguição e violência. Agora tem, entre trancos e barrancos, um presidente que passou pelo mesmo e que se mostra mais simpático a suas demandas, além de não tratá-los como um caso de polícia.

Nessas circunstâncias, sua posição pró-Lula faz sentido. Mas não pude evitar o pensamento de que os criadores do mensalão sabiam disso e que devem estar comemorando o sucesso de sua estratégia de corrupção, em meio a garrafas de Romanée-Conti e das meninas de Jeany Mary Corner.

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Após o Fórum, passamos uma tarde maravilhosa em Olinda. É um lugar especial, mágico mesmo. Vontade de ficar para sempre em meio àquelas ladeiras, sobrados de paredes amarelas e ateliês de pintura.

sábado, abril 22, 2006

Fragmentos do Fórum

A oficina sobre integração regional que organizei rendeu uma boa discussão, levantando temas como o papel da Igreja no Mercosul e a importância de fortalecer as relações culturais entre os países do bloco. Tanto os palestrantes quanto a platéia foram muito críticos às decisões recentes do governo, principalmente no que toca às grandes obras de infra-estrutura e à falta de participação social nas instituições do Mercosul.

Agora à tarde vou a um debate organizado pela Federação dos Petroleiros, sobre a integração energética da América do Sul. O tema me é caro: acredito que petróleo e gás podem ter papel semelhante ao que carvão e gás tiveram no processo regional da Europa. Depois escrevei uma reportagem a respeito das duas oficinas, dando um panorama geral dos debates sobre integração.

Há pouco estive num excelente seminário sobre financiamento internacional para o desenvolvimento, com diplomatas e representantes de ONGs da Alemanha, França, Brasil e Chile. A discussão principal foi sobre a criação de impostos globais sobre serviços financeiros, passagens aéreas, emissão de poluentes, comércio de armas e outras propostas semelhantes. Os sinais são de que algo será criado em breve, possivelmente para alocar recursos para o combate à AIDS.

Outro bom evento foi o lançamento dos novos comerciais da campanha Diálogo contra o Racismo. Duas amigas estão neles, que entrarão no ar em maio. A oficina foi emocionante, com relatos de histórias de discriminação e humilhação, mas também de resistência e mudança. Há unanimidade sobre como o país avançou no combate ao racismo ao longo da última década.

O Fórum está superando minhas expectativas, com debates interessantes e uma boa presença de movimentos sociais. Há um contraste entre os militantes de base e os ativistas de classe média ou funcionários de governos ou ONGs. Estou aprendendo bastante. Muitas divergências com relação ao governo Lula, claro, isso era esperado.

As atividades terminam na manhã de domingo e só volto na segunda. Terei um dia livre para passear, o pessoal está combinando uma visita à Olinda, cidade que adoro.

sexta-feira, abril 21, 2006

Fórum Social Brasileiro

Chegamos ao Recife na tarde de quarta-feira, um dia antes do início do Fórum Social Brasileiro (FSB). Com tempo livre, aproveitamos para ir à praia e ao Recife Antigo, bater papo, comer frutos do mar. Muitas conversas sobre a história do Fórum Social Mundial, como o processo foi muito além do que qualquer um imaginava.

Ontem passei a tarde na plenária do Fórum Nacional de Participação Popular, do qual fui um dos coordenadores até poucos meses atrás. A pauta era o planejamento das atividades para 2006, as dificuldades trazidas pela crise política, propostas de reformas. Comentamos o quanto a população está distante das análises dos movimentos sociais e das ONGs. Uma das participantes contou a história do motorista de táxi que não parava de criticar a "baderna" no Recife (os grandes protestos de novembro de 2005) e acusava o MST de ser proprietário de várias empresas. O motorista do meu táxi nem sabia que o FSB se reuniria no Recife.

Pouco depois fomos para a Marcha de Abertura do FSB, que me surpreendeu pelo grande tamanho. Infelizmente, terminou mal. A polícia aproveitou para atacar manifestantes do MST e feriu dois deles à bala. Pernambuco é o estado brasileiro campeão em violência no campo e ontem tivemos uma amostra disso. Houve tumultos e correria.

Também não gostei dos discursos que ouvi. Um deles dizia que os movimentos sociais estão com Lula e irão defender sua reeleição. Por quem esse cara fala? Não por mim. Mas não resta dúvida de que o presidente tem muito apoio. Um grupo de ativistas da reforma urbana gritava "povo na rua, Lula continua". Nós, militantes de classe média, é que estamos contra o presidente.

Escrevo do campus da Universidade Federal de Pernambuco, onde ocorrem os debates do FSB. Pretendia assistir a uma oficina sobre direitos humanos na OEA, mas ela foi cancelada. Devo dar um pulo no evento sobre a campanha global contra a pobreza. À tarde, é a oficina que organizo, sobre o papel do Brasil na integração da América Latina.

terça-feira, abril 18, 2006

Definitivamente Cortázar



“As pessoas que gostam de literatura ficam com Borges, as que amam literatura preferem Cortázar”, decretou meu amigo Fred Leal em observação certeira. Por conta do meu interesse pela Argentina, muitos acham que sou fã dos labirintos e tigres borgeanos. Gosto, mas não entra na minha lista de favoritos. Ao passo que Júlio Cortázar está cada vez mais encastelado nela. Nesta semana li seu primeiro romance, “Os Prêmios” e adorei.

O livro começa com um grupo de pessoas ganhando um cruzeiro de volta ao mundo numa loteria turística. São de classes sociais diferentes e idades diversas, formando um painel da Argentina. Há o empresário liberal que reclama o tempo todo da intervenção do Estado, o professor conservador que louva os heróis históricos, como San Martin e Belgrano (e tem dificuldade em explicar aos alunos a mediocridade contemporânea), uma família com um filho adolescente e inquieto, um grupo de intelectuais portenhos de ambos os sexos, meio vanguardistas, meio diletantes.

Cortázar écélebre por seus contos fantásticos, onde o inusitado entra quase sem ser percebido, numa ligeira distorção do cotidiano. Em “Os Prêmios” isso ocorre quando a viagem de navio começa a ser perturbada por acontecimentos bizarros. Por que os passageiros não podem chegar até a popa? Por que o capitão nunca é visto? Qual será o itinerário da jornada? É verdade que há uma epidemia de tifo a bordo?

A convivência entre tipos humanos diversos num espaço confinado vira um Big Brother onde acontece de tudo: casos amorosos lícitos e ilícitos, tensões sociais entre os personagens de classe média e os pobres, conflitos entre os passageiros e a tripulação. Em certos momentos lembra “A Montanha Mágica”, obra-prima de Thomas Mann. Mas se na Europa a História termina em tragédia, na América Latina (como comentamos em post anterior) as coisas degeneram em farsa. Mesmo que trágica.

Como diz o grande escritor uruguaio Mário Benedetti, Cortázar é um narrador que necessita de leitores cúmplices. E “Os Prêmios”, com sua viagem frustrada de volta ao mundo, é uma alegoria para a Argentina, que julgava ter direito a um prêmio glorioso e terminou mal: “considerando a ésta como un país que tenía un destino y se quedó sin él, un país de frustración –como tantos otros de América Latina– tripulado por tímidos o indiferentes o conformistas o, en el mejor de los casos, por improvisados rebeldes que van al sacrificio.”

O romance foi publicado em 1960 e é o retrato das tensões latentes que explodiriam nos anos seguintes: a revolução sexual ainda esboçada, mas não concretizada, os primórdios do movimento hippie (há um personagem astrólogo, meio delirante, muito interessante) e a busca por justiça através da violência, que só poderia resultar no sacrifício estúpido de uma geração pelas mãos sangrentas da guerrilha, do terrorismo e da repressão.

Ao mesmo tempo, Cortázar é implacável na descrição da classe média argentina: conformista, pronta a ceder diante das autoridades para manter seus pequenos privilégios, mesmo que isso signifique compactuar com a mentira e com uma ordem social injusta.

E para não dizer que não falei de flores, que tal essa frase do romance: “Não me queixo de que a felicidade seja curta, Paulinha. A transição da felicidade para o hábito é uma das melhores armas da morte.”

Ah, sim, antes que alguém pergunte: ainda não li "O Jogo da Amarelinha". Pretendo fazê-lo em espanhol, em um café da Plaza Júlio Cortázar, no bairro de Palermo, Buenos Aires.



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Sigo amanhã para o Recife, para participar do Fórum Social Brasileiro. Fico
uma semana em Pernambuco, os próximos posts serão de algum cyber café em
Boa Viagem. Abraços!

segunda-feira, abril 17, 2006

O Labirinto Peruano



Há uma onda de transformações e conflitos sociais em curso na América Latina, que ganha visibilidade com as eleições presidenciais que acontecem este ano em quase todos os principais países do continente. No momento, esses fatos se concentram no Peru, onde a disputa pelo poder é particularmente turbulenta.

O candidato mais votado no primeiro turno foi Ollanta Humala, militar que tentou um golpe contra o ex-presidente Fujimori. Foi preso, mas anistiado pelo presidente Toledo. Virou símbolo da oposição radical ao sistema político, com um discurso intensamente nacionalista. Há semelhanças com Chávez, que segundo denúncias financia Humala.

Se Chávez já é um sujeito complicado, seu aliado peruano é ainda mais. O pai de Humala é fundador de um movimento ultra-nacionalista (alguns dizem xenófobo) voltado contra estrangeiros (americanos, chilenos) e judeus. O irmão, também militar, tentou um golpe contra Toledo. Está preso e da cadeia ameaça guerra civil se o irmão perder as eleições. A mãe dos rapazes declarou que o país precisa restaurar a moralidade com fuzilamentos públicos de corruptos e homossexuais, não necessariamente nessa ordem.

A votação ocorreu no dia 9 de abril, mas a apuração lenta ainda não indicou quem irá disputar o segundo turno contra Humala. O ex-presidente Alan García tem uma ligeira vantagem para a candidata Lourdes Flores. García é sociólogo e membro do Apra, um dos mais importantes partidos da esquerda latino-americana. Mas fez um péssimo governo que terminou em hiperinflação, corrupção e o Sendero Luminoso no auge do terror. Flores é uma solteirona conservadora que mora com os pais e defende a Opus Dei. Pobre Peru. Labirinto sem saída, cheio de minotauros.

Os jornalistas, acadêmicos e diplomatas ficam surpresos com o fato de que o bom crescimento do PIB peruano nos últimos anos (cerca de 4%, 5%) não tenha se refletido em maior apoio ao presidente Toledo, cuja popularidade anda em incríveis 2%. Óbvio ululante: é um modelo de desenvolvimento concentrador de renda, em setores ligados à mineração e ao agronegócio. Os lucros não alcançam a maioria da população, que em realidade pode estar pior devido à degradação ambiental, aumento da informalidade etc. Num quadro de desconfiança generalizada dos políticos, os eleitores tendem a escolher candidatos que se apresentem como desafiantes do sistema, outsiders sem compromissos. Foi assim com Fujimori, Humala segue o mesmo caminho.

Por que a esquerda peruana não conseguiu formular alternativas, à exemplo do que ocorreu na Bolívia e no Equador? A pergunta é difícil, creio que a resposta passa pelo estrago que o terrorismo do Sendero Luminoso e do Tupac Amaru provocou nas lideranças populares do país. Muitos foram mortos, torturados ou exilados na guerra suja de vinte anos. Destruição de toda uma geração, que deixou a população assustada e disposta a topar qualquer homem forte que combata a violência. Humala participou da repressão ao Sendero e é acusado de torturas e assasinatos do tempo que comandou uma base militar na Amazônia.

O Brasil tem muitos interesses no Peru: acordo de livre comércio, via de escoação do agronegócio ao Oceano Pacífico, várias empreiteiras em grandes obras no país, exploração das reservas de gás em Camisea, necessidade de combate conjunto ao narcotráfico. O contexto é o de defesa da estabilidade. Humala representa um perigo, exarcebando tensões sociais dentro do país e com vizinhos como o Chile.

sábado, abril 15, 2006

Malhação de Judas: PT e Governo Lula



Cinco Teses:

1. O PT acabou como projeto de reforma social. Não se trata de algumas maçãs podres: toda a liderança partidária foi destruída. O PT não é maior do que a crise. O PT é a crise. Reduziu-se a deputados dançando pela impunidade ou agredindo colegas que se negaram a encobrir os atos ilegais dos correligionários. Continua vivo como força eleitoral, embora provavelmente sofra perdas nas eleições estaduais. Vai virar um novo PMDB, máquina clientelista saudosa do passado de ideais.

2. O governo Lula abandou qualquer objetivo de transformação da sociedade brasileira e fez a opção pela estabilidade, traduzida em acordos com as forças que podem garanti-la: mercado financeiro, agronegócio, partidos conservadores. O objetivo era manter o poder, e eventualmente descolar um Land Rover, um mensalão, uma festinha com prostitutas.

3. Apesar da decepção com a corrupção e a política econômica, os movimentos sociais mantiveram o apoio ao governo (ou pelo menos o silêncio diante da crise), seja pela falta de alternativas de mudança, seja pela cooptação via verbas e cargos oficiais. Mas a relação com Lula ficou mais difícil.

4. Dada a situação do PT, a estratégia eleitoral de Lula será afastar-se ainda mais do partido e da sociedade organizada, buscando a vitória em apelos diretos ao povo, numa retórica populista de se afirmar como um homem simples, vítima das elites e traído pela cúpula do PT. Discurso forte para eleitores com nível primário incompleto, 70% do total de votantes no Brasil.

5. Lula será reeleito, salvo se: 1) Aparecerem provas de que embolsou dinheiro da corrupção. 2) A economia entrar em séria crise até outubro. Ambas as hipóteses são pouco prováveis. Mas seu segundo mandato será pior. Terá menos apoio político, desprezo da classe média e dos formadores de opinião e um cenário econômico turbulento por conta da iminente ação militar dos EUA contra o Irã e das taxas de juros crescentes nos Estados Unidos.

quinta-feira, abril 13, 2006

Bonecas Russas



Bonecas Russas” poderia ser um grande filme, mas bate na trave. Ainda assim, diz muito sobre a Europa contemporânea, talvez mais por seus defeitos do que por suas qualidades.

O filme é a continuação de “Albergue Espanhol”, simpática comédia sobre um grupo de jovens vindos de vários países da Europa, que dividem um apartamento em Barcelona enquanto estudam na universidade. A geração do programa Erasmus, da formação de um continente unificado.

A ação de “Bonecas Russas” se passa cinco anos depois. Xavier, o protagonista do primeiro filme, está para completar 30 anos. Largou um emprego público para tentar ser escritor (só no cinema um francês faz isso!) mas vive de biscates televisivos para novelas de segunda categoria e de frilas como ghost writer. O que detona a trama é o convite para o casamento de um amigo em São Petersburgo, que leva Xavier a pensar no caos de sua vida amorosa.

O amigo em questão é William, o “vilão” de “Albergue Espanhol”, no sentido em que se envolvia em confusões por incorporar todos os esteriótipos nacionais (por exemplo, alemães são nazistas e italianos, desleixados). O rapaz evoluiu e se apaixonou por uma bailarina russa. A Rússia é mostrada no filme como uma prima pobre da Europa, cheia de cortiços decadentes e brega até o limite do possível.

Ao longo do filme, Xavier passa pela cama de quase todo o elenco feminino em busca da mulher ideal. Seu comportamento usual faz Jece Valadão soar como porta-voz contra as desigualdades de gênero. No fim, “Bonecas Russas” defende uma visão bastante convencional do amor, embora aqui e ali acene com a idéia de que existem outras possibilidades – a personagem mais feliz na sua vida romântica é a lésbica por quem Xavier se apaixonou em “Albergue”, e que agora é uma bem-sucedida jornalista econômica.

O filme é o retrato de uma Europa onde é difícil fazer a passagem de uma eterna adolescência às responsabilidades da vida adulta. Quase todos os protagonistas vivem de trabalhos temporários, frilas, biscates. Estão sempre sem grana e não parecem ter muita perspectiva do que querem da vida. São incrivelmente vazios e fúteis. Às vezes fazem vagos discursos contra a globalização.

Há um momento em que a ex-namorada de Xavier, Martine, viaja ao Brasil para participar do Fórum Social Mundial e volta entusiasmada com o que viu. Só que a personagem é tão chata que soa como uma agente infiltrada da turma de Davos. Não sei se a intenção do diretor foi homenagear o “outro mundo possível” do Fórum ou simplesmente ironizá-lo como delírio de pessoas frustradas e um pouco hipócritas.

No fim de “Bonecas Russas”, os personagens passam por várias aventuras, mas não mudam. Não há amadurecimento ou uma transformação significativa na vida. Falta um horizonte. Igualzinho à Europa contemporânea.

E a Itália, hein? Finalmente botou Berlusconi para fora, mas somente graças ao voto dos descendentes de italianos no exterior, que pela primeira vez puderam votar em representantes à Câmara e ao Senado, e escolheram a coligação de centro-esquerda liderada por Romano Prodi. “Bonecas Russas” não fala de imigrantes e estrangeiros na Europa, mas talvez esteja nesse contingente a pista para dinamizar o Velho Mundo.

terça-feira, abril 11, 2006

The Buenos Aires Affair




Em abril de 2004, passei a semana santa na Argentina. Eu começara meu doutorado no mês anterior e estava em busca de um tema de pesquisa – como fiz a passagem direto do mestrado, não precisei apresentar projeto. Minha idéia era desenvolver algo na linha “relações Estados Unidos – América Latina” e achei que uns dias em Buenos Aires poderiam ajudar.

A cidade trazia as marcas e cicatrizes da crise ainda recente, com memoriais aos mortos nos conflitos do fim de 2001, bancos pichados e depredados em protesto ao corralito e o aspecto generalizado de uma velha senhora que tenta manter a dignidade apesar dos tempos difíceis. No último dia antes da volta ao Brasil, já tinha visitado os principais pontos turísticos e resolvi ir ao cinema. Estava em cartaz o documentário Memória Del Saqueo, de Fernando Solanas, tremendo registro do declínio da Argentina. A platéia, formada majoritariamente por respeitáveis casais de meia idade, vaiava e xingava os políticos. Chorava nas cenas que mostravam crianças passando fome, novidade brutal no país.

Estive em muitas sessões de cinema na vida, mas nenhuma tão importante quanto aquela. Ao sair da sala, disse a meu irmão: “Quero entender este país”. Adeus, EUA. Meu tema de tese de doutorado seria a política contemporânea da Argentina. Também foi o início da paixão por Buenos Aires, affair que completa agora dois anos, com boas novas no horizonte.

Qualquer estudante de doutorado no Brasil pode solicitar ao governo uma bolsa para estágio no exterior, mais conhecida como doutorado-sanduíche. O aluno passa até um ano numa universidade estrangeira, realizando pesquisas para sua tese. Poucos países têm um sistema tão sofisticado e eficiente de auxílio à pós-graduação, creio que nenhum deles no mundo em desenvolvimento. Muitos dos meus colegas de Iuperj fazem sanduíches, em geral nos EUA ou na Europa.

Recentemente, aumentou bastante no instituto o interesse por América do Sul. Foi criado um Observatório dedicado à política da região, assinados convênios com universidades do continente e iniciado um bom fluxo de professores-visitantes. O próximo passo no processo é o envio de doutorandos do Iuperj a outros países sul-americanos. A primeira foi uma amiga que seguiu em novembro para a Argentina, para estudar o Congresso de lá. É possível que eu seja o segundo da lista, em setembro.

A sugestão me foi feita por meu orientador, com apoio de outros professores. O projeto é cursar uma disciplina sobre política internacional na América do Sul, na Universidad Torcuato di Tella, em Buenos Aires, enquanto realizo entrevistas para a tese com políticos, diplomatas, acadêmicos e ativistas de movimentos sociais.

Além dos ganhos acadêmicos, penso na riqueza como experiência de vida. Viver um semestre num país estrangeiro, numa cidade com grande movimento cultural. Melhorar meu espanhol e tentar aprender um pouco mais sobre a hispano-américa que tanto me fascina.

Já tenho o OK do Iuperj e da Di Tella – as regras do sanduíche exigem uma orientadora local, e consegui uma excelente, por indicação do meu orientador brasileiro. Também já solicitei as licensas dos meus empregos. O que falta? Apresentar os documentos exigidos pela CAPES e esperar pela avaliação do pedido de bolsa, o que leva alguns meses – creio que a resposta definitiva só sai em julho. Se tudo correr bem, em breve Os Conspiradores será escrito de um café portenho, como o da foto.

segunda-feira, abril 10, 2006

V



Uma cena:

Nicole Portman caminhando pelas ruas de Londres no início de “Closer”, com a canção de Damien Rice como trilha sonora. Grande atriz. É bonita, claro, mas há algo mais. Sempre há, nesses casos. Carisma de estrela.

Um filme:

V de Vingança”, adaptação da história em quadrinhos de Alan Moore, com roteiro dos irmãos Wachowski (da triologia “Matrix”). Hugo Weaving (o Agente Smith) interpreta V, mas seu rosto está sempre coberto pela máscara de Guy Fawkes. Nicole Portman é Evey, a jovem que acaba sendo envolvida na cruzada política de V.

Uma distopia:

A HQ de Moore conta a história de um homem que se revolta contra um sistema totalitário e inicia sua destruição através de atos terroristas que pretendem despertar a população de sua letargia. A distopia de Moore era um amálgama dos pesadelos da Guerra Fria, uma Inglaterra que sobrevivera ao holocausto nuclear. E com cutucadas no conservadorismo extremo da sra. Margaret Thatcher.

Uma atualização:

O ótimo roteiro dos irmãos Wachowski retirou o que era datado do texto de Moore e introduziu referências contemporâneas, pós-11 de setembro. O governo totalitário do filme utiliza alertas de cores contra o terrorismo (“Está em vigor um toque de recolher amarelo”), exibe programas de TV onde os vilões são extremistas muçulmanos, persegue imigrantes e homossexuais, tortura em centros clandestinos, usa e abusa da “cultura do medo” para manter a população sob controle.

A importância da manipulação da mídia para a manutenção do totalitarismo ganhou destaque na adaptação para o cinema. Prothero, que na HQ era apenas uma voz, virou um apresentador de TV com todos os trejeitos de Bill O´Reilly, da Fox News, um dos apóstolos da extrema-direita dos EUA.

Uma Revolução:

Como escreve minha querida amiga Nicole, V é um filme sobre o amor à liberdade. E uma ode anarquista – governos devem temer seus povos, não o oposto. É também uma glorificação do terrorismo, embora V não ataque inocentes. A versão para o cinema privilegia a participação popular na revolução de V, mais do que na HQ. Como diziam os anarquistas espanhóis, paz para os homens, guerra às instituições.

sábado, abril 08, 2006

Bolívia: a tempestade perfeita

Em seu livro “O Fim da Pobreza”, o economista Jeffrey Sachs analisa determinados países da África como “tempestades perfeitas”, por reunirem todos os fatores que levam à miséria: instabilidade política, degradação ambiental, conflitos étnicos etc. A nação mais pobre da América do Sul, a Bolívia, tem índices sociais comparáveis aos casos examinados por Sachs e acrescenta ao caldeirão elementos explosivos, como a posse do gás natural, recurso fundamental à integração regional, e relação delicada com o Brasil, que acende o debate sobre o papel desempenhado por nosso governo na política sul-americana.

A tempestade perfeita da Bolívia é a manchete do Globo deste sábado. Fortes chuvas nos últimos dias danificaram o gasoduto que liga o país ao Brasil. Os reparos são dificultados porque a população boliviana fechou estradas para protestar contra a Petrobras e o resultado é que o governo brasileiro adotou racionamento de emergência – 50% do gás consumido em nosso país vêm da Bolívia. Sem esse fluxo, o parque industrial de São Paulo pára.

A Petrobras é a maior empresa da Bolívia, responde por 18% do PIB boliviano. Há um ano, escrevi no Globo comparando as ações da empresa ao modelo econômico da ditadura militar. Os lucros não promovem melhoria da qualidade de vida da população boliviana e há problemas com destruição ambiental e de terras de povos indígenas. Faltam ações de responsabilidade social, o que é ainda mais urgente por se tratar de uma estatal, um instrumento da política externa do Estado brasileiro. A FASE, importante ONG brasileira, acabou de lançar um livro-denúncia sobre o tema.

É esse o modelo de liderança e integração que pretendemos impor a nossos vizinhos?

Meu artigo foi escrito pouco antes da explosão dos protestos sociais que culminaram com a renúncia de Carlos Mesa e com a ascensão de Evo Morales, o primeiro índio a ser eleito presidente de um país da América do Sul.

Conversando com um ex-professor de jornalismo econômico ele me perguntou se Morales era simplesmente o porta-voz da bandeira étnica indígena ou se possuía também uma agenda econômica. Do papo nasceu um artigo sobre o processo boliviano, onde afirmo que Morales venceu porque articulou os principais movimentos sociais bolivianos – indígenas, cocaleiros, sindicatos. Entre suas demandas centrais está a gestão comunitária dos recursos naturais – água, terra, gás.

A Bolívia tem uma história de espoliação de riquezas (prata e estanho) por estrangeiros. Ninguém quer que o gás repita essa trajetória, mas é o que vem ocorrendo. O Brasil tem agido com cautela – a Petrobras foi a única empresa a não processar o governo boliviano pelo recente aumento nos impostos e royalties sobre o gás. Mas persistem tensões, inclusive posições ambíguas de Morales se é ou não a favor de estatizar a exploração desse recurso.

As opiniões dos diplomatas brasileiros sobre os outros países sul-americanos em geral me surpreendem pelos esteriótipos e preconceitos, quando não por afirmações que um observador pouco simpático classificaria de “imperialistas”. Nossos embaixadores costumam analisar a ascensão do movimento indígena boliviano apenas como fator de instabilidade que prejudica os interesses brasileiros. É uma visão míope. Estamos diante de um marco para a democracia no continente, passo fundamental para encerrar o apartheid que existe de fato em muitos países da região. Respeito à democracia e à diversidade estão presentes em nossa Constituição e espero que logo cheguem também aos corações e mentes dos responsáveis por nossa política externa. Sem a sensibilidade para as mudanças na América do Sul, viraremos uma caricatura de líder, falando macio e usando um porrete.

quinta-feira, abril 06, 2006

Colapso



Fiquei fã do biólogo Jared Diamond ao ler seu ótimo “Armas, Germes e Aço”, que mistura história, medicina e geografia para explicar o papel das doenças e epidemias na consolidação do poder da Europa sobre as Américas e a África. Agora mergulhei em sua obra mais recente, “Colapso”, que usa o mesmo método para analisar a influência da degradação ambiental na destruição de civilizações antigas como a Ilha de Páscoa, os maias e a Groenlândia viking, e abordar problemas ecológicos das sociedades contemporâneas, dos EUA à China, passando por Ruanda, Haiti e Austrália.

Numa prosa envolvente, capaz de sintetizar centenas de anos de história em poucos parágrafos, Diamond identifica o padrão das catástrofes ambientais do passado: crescimento populacional, abuso dos recursos ambientais (terras, água, florestas, caça) levando a desmatamento, mudanças no clima, fome, instabilidade política e guerras.

Tal trajetória trágica não é inevitável, e Diamond mostra como sociedades que vivem em ambientes difíceis, como a Islândia e o Japão, conseguiram aprender com a experiência e desenvolveram métodos de preservação ecológicas compatíveis com alto índice de desenvolvimento. Adaptação é o conceito-chave, mas o processo é difícil porque pode significar abrir mão de valores há muito estabelecidos, como hábitos alimentares, padrões de qualidade de vida, tabus religiosos etc.

Embora os relatos históricos do livro sejam muito interessantes, o mais importante são as lições para o presente. Gostei especialmente da análise como a degradação ambiental e superpopulação de Ruanda levaram a tensões sociais gigantescas, que muito contribuíram para o genocídio de 1994. Estudo que coincide com a abordagem atual da ONU sobre os vários aspectos necessários para a segurança internacional. Vou debater o caso de Ruanda com meus alunos na universidade, num curso sobre paz que darei em maio.

Diamond escorrega em alguns momentos. Seu exame do contraste entre o Haiti e a República Dominicana, que dividem a mesma ilha, ignora terrivelmente o peso da monocultura escravista do açúcar que dominou a sociedade haitiana. Sabemos pela experiência brasileira o impacto catastrófico que esse modelo econômico traz para a ecologia: em nosso país, foi o responsável pela devastação da Mata Atlântica.

O Brasil é citado no livro apenas de passagem como um dos maiores desmatadores mundiais, mas vários dos elementos levantados por Diamond se aplicam a nosso país, onde os governantes em geral tem uma perspectiva de curto prazo, de busca de ganhos imediatos às custas de tragédias para as gerações futuras. A concentração de renda e poder também beneficia atores como as grandes empresas, que impõem seus interesses ao resto da sociedade. O tipo de megaprojeto que o governo Lula vem privilegiando na Amazônia e no Centro-Oeste é um exemplo da repetição dessa lógica não-sustentável, tantas vezes utilizada no passado.

quarta-feira, abril 05, 2006

A Cidade e os Cachorros



O peruano Mario Vargas Llosa é um de meus escritores favoritos, dele seria capaz de ler até a lista de compras para o supermercado. Caço sua obra pelos sebos, a última que li foi "Batismo de Fogo", seu romance de estréia. O título original é "La Ciudad y los Perros", que descreve melhor o assunto do livro.

Trata-se de um romance de formação, semi-autobiográfico, ambientado entre as ruas de Lima e o colégio militar onde estudam os protagonistas, alunos do último ano. O roubo das questões de uma prova detona acontecimentos que revelam a rotina de mentiras e brutalidades, microcosmo da corrupta sociedade peruana.

Como é praxe em Vargas Llosa, a história tem vários narradores. O principal é seu alter ego: Alberto, o Poeta, um rapaz da elite que se divide entre a revolta contra o sistema opressivo do colégio e a acomodação às regras, desfrutando dos privilégios de sua condição social.

Alberto também vacila entre defender Ricardo, o “Escravo” - aluno tímido com quem todos implicam - e abusar da confiança do amigo para trai-lo de forma mesquinha. As indecisões de Alberto serão levadas ao limite quando o Escravo é vítima de um crime bárbaro dentro do próprio colégio.

Além dos conflitos dentro da escola, o romance é uma descrição magistral das relações dos alunos (os cachorros) com a cidade de Lima, fragmentada em bairros marcados pela desigualdade social, em bares de reputação duvidosa e bórdeis baratos. Alberto, vindo da elitista Miraflores, é um estranho no ninho dos colegas das vizinhanças mais pobres, ou naturais do interior do país.

O romance teve enorme repercussão quando foi publicado. O colégio que Vargas Llosa descreve existe - ele mesmo estudou lá. Os militares peruanos o acusaram de ser um comunista dedicado a destruir as instituições nacionais. Há até uma lenda urbana que afirma que milhares de cópias de "Batismo de Fogo" foram queimadas no pátio da escola. Claro que ninguém viu o auto-de-fé, além das tiragens de livros no Peru serem um tanto inferiores a essa marca...

Para um apreciador de Vargas Llosa, é fascinante ver como em sua primeira obra já estavam presentes os elementos principais que desenvolveria ao longo da carreira: os múltiplos narradores, as críticas aos militares, a sensualidade, o intelectual vacilante como protagonista etc. O escritor estava pronto e lapidado, daí em diante foi só desenvolver seu talento, que no meu juízo atingiu o auge em “Tia Júlia e o Escrevinhador” e “Conversa na Catedral”.

segunda-feira, abril 03, 2006

Vamos Invadir Sua Praia



Mi vida va proibida, dice la autoridad
Mano Chao, "Clandestino"

Uma das minhas melhores amigas acaba de voltar de uma temporada de três meses nos EUA, com bolsa de estudos do Departamento de Estado. Passamos horas e horas conversando sobre o terremoto político em curso nos Estados Unidos. Uma das coisas que mais nos chamou a atenção foi a questão dos imigrantes.

Estima-se que existam nos EUA cerca de 11 milhões de imigrantes ilegais (entre 500 mil e 1 milhão de brasileiros). O tema provoca muitas discussões e bastante hipocrisia: uns falam dos riscos do crime, disputa de empregos aos nativos, disseminação do terrorismo e até destruição dos “valores tradicionais” americanos. Bem, cada rebolada da Jennifer Lopez significa sete puritanos a menos no país... Mas muitos se beneficiam da mão-de-obra barata dos clandestinos, dócil e não-sindicalizada. Não me refiro apenas a empresas, também há pacatas e ordeiras famílias de classe média, que aproveitam para contratar babás e jardineiros a preços baixos. Minha amiga contou casos de brasileiros já estabelecidos que exploram outros imigrantes assim, e os tratam tão mal ou pior do que os americanos.

Minha amiga fez uma visita oficial à fronteira com o México, conversando com a patrulha e fazendo um levantamento dos problemas locais: ação de milícias que caçam imigrantes, prostituição em Tijuana, deterioração ambiental. Sugeri a ela que escreva um artigo acadêmico sobre o assunto, impressiona como a fronteira concentra uma série de tensões da agenda contemporânea de relações internacionais.

Em 2005 a Câmara dos Deputados aprovou uma lei anti-imigração ilegal bastante dura, que transforma essa contravenção penal em crime, prevendo punições também para cidadãos americanos que ajudem um clandestino. Em tese, poderia significar prisão para um filho que quisesse auxiliar os pais, ou mesmo para pessoas que socorressem os imigrantes ilegais com comida, cobertores e outras medidas de caridade. A lei está sendo discutida no Senado e Bush está sob críticas por sua apatia e falta de liderança diante do assunto.

O lado bom da história é que a lei provocou enormes manifestações de repúdio – milhões de pessoas foram às ruas, nos maiores protestos populares desde 1968. A comparação mais freqüente é com o Movimento dos Direitos Civis, a intensa mobilização anti-racismo liderada por Luther King e Malcom X.

Uma vez que a população americana se mexa em defesa dos imigrantes, podemos esperar protestos semelhantes pela paz, como na guerra do Vietnã? Acho prematuro. Um dos temas que discuti com minha amiga foi porque o voto hispânico está migrando do Partido Democrata para o Republicano. Meu palpite é que tem a vez com a agenda conservadora com relação a aborto, casamento gay e religião. Ao menos é isso o que ocorre na Europa, dizem meus amigos dos partidos socialistas de lá.

Enfim, uma batalha de cada vez. A de hoje é pelos imigrantes.
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