terça-feira, abril 18, 2006

Definitivamente Cortázar



“As pessoas que gostam de literatura ficam com Borges, as que amam literatura preferem Cortázar”, decretou meu amigo Fred Leal em observação certeira. Por conta do meu interesse pela Argentina, muitos acham que sou fã dos labirintos e tigres borgeanos. Gosto, mas não entra na minha lista de favoritos. Ao passo que Júlio Cortázar está cada vez mais encastelado nela. Nesta semana li seu primeiro romance, “Os Prêmios” e adorei.

O livro começa com um grupo de pessoas ganhando um cruzeiro de volta ao mundo numa loteria turística. São de classes sociais diferentes e idades diversas, formando um painel da Argentina. Há o empresário liberal que reclama o tempo todo da intervenção do Estado, o professor conservador que louva os heróis históricos, como San Martin e Belgrano (e tem dificuldade em explicar aos alunos a mediocridade contemporânea), uma família com um filho adolescente e inquieto, um grupo de intelectuais portenhos de ambos os sexos, meio vanguardistas, meio diletantes.

Cortázar écélebre por seus contos fantásticos, onde o inusitado entra quase sem ser percebido, numa ligeira distorção do cotidiano. Em “Os Prêmios” isso ocorre quando a viagem de navio começa a ser perturbada por acontecimentos bizarros. Por que os passageiros não podem chegar até a popa? Por que o capitão nunca é visto? Qual será o itinerário da jornada? É verdade que há uma epidemia de tifo a bordo?

A convivência entre tipos humanos diversos num espaço confinado vira um Big Brother onde acontece de tudo: casos amorosos lícitos e ilícitos, tensões sociais entre os personagens de classe média e os pobres, conflitos entre os passageiros e a tripulação. Em certos momentos lembra “A Montanha Mágica”, obra-prima de Thomas Mann. Mas se na Europa a História termina em tragédia, na América Latina (como comentamos em post anterior) as coisas degeneram em farsa. Mesmo que trágica.

Como diz o grande escritor uruguaio Mário Benedetti, Cortázar é um narrador que necessita de leitores cúmplices. E “Os Prêmios”, com sua viagem frustrada de volta ao mundo, é uma alegoria para a Argentina, que julgava ter direito a um prêmio glorioso e terminou mal: “considerando a ésta como un país que tenía un destino y se quedó sin él, un país de frustración –como tantos otros de América Latina– tripulado por tímidos o indiferentes o conformistas o, en el mejor de los casos, por improvisados rebeldes que van al sacrificio.”

O romance foi publicado em 1960 e é o retrato das tensões latentes que explodiriam nos anos seguintes: a revolução sexual ainda esboçada, mas não concretizada, os primórdios do movimento hippie (há um personagem astrólogo, meio delirante, muito interessante) e a busca por justiça através da violência, que só poderia resultar no sacrifício estúpido de uma geração pelas mãos sangrentas da guerrilha, do terrorismo e da repressão.

Ao mesmo tempo, Cortázar é implacável na descrição da classe média argentina: conformista, pronta a ceder diante das autoridades para manter seus pequenos privilégios, mesmo que isso signifique compactuar com a mentira e com uma ordem social injusta.

E para não dizer que não falei de flores, que tal essa frase do romance: “Não me queixo de que a felicidade seja curta, Paulinha. A transição da felicidade para o hábito é uma das melhores armas da morte.”

Ah, sim, antes que alguém pergunte: ainda não li "O Jogo da Amarelinha". Pretendo fazê-lo em espanhol, em um café da Plaza Júlio Cortázar, no bairro de Palermo, Buenos Aires.



***
Sigo amanhã para o Recife, para participar do Fórum Social Brasileiro. Fico
uma semana em Pernambuco, os próximos posts serão de algum cyber café em
Boa Viagem. Abraços!

5 Comentarios:

Anonymous Anônimo said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Olá Mauricio,
Já incluí o Conspiradores na lista de blogs imperdíveis do Tordesilhas. Este post sobre o Cortázar está muito bom.
Um abraco,
Renato

abril 19, 2006 3:16 AM  
Anonymous Anônimo said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Boa viagem, Mestre! Palermo em BA é uma graça mesmo - me apaixonei pelo Jardin Japonés. :)

abril 19, 2006 9:37 AM  
Anonymous Anônimo said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

...e eu já ia perguntar se você leu O Jogo de Amarelinha ;-)
Li Os Premios há muito tempo atrás, na minha época de escola secundária, na disciplina de Literatura e quase morri de tédio, não é uma leitura para adolescentes de 13 anos, mas eu tinha uma professora muito "vanguardista" para a época, digamos assim.
Levei uns anos para me reconciliar com Cortázar e me apaixonei por ele já nos tempos de faculdade, em plena ditadura. Sua leitura se mantém atual,com uma visão crua e ao mesmo tempo poética dos sonhos latino-burgueses.
Boa viagem e curta bastante Buenos Aires no outono, a melhor época!

bjs,

Vera

abril 20, 2006 1:33 PM  
Blogger Maurício Santoro said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Caro Renato,

seja bem-vindo. Os dois blogs têm muito em comum, é sempre legal quando isso acontece.

Nica e Vera,

podem deixar que prometo aproveitar bastante! Mas ainda preciso preparar a burocracia necessária à bolsa

Abraços

abril 21, 2006 9:32 AM  
Blogger Maurício Santoro said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Cara Maria,

que bom, fico feliz em saber que você gostou. Seja bem-vinda. Cortázar sempre me emociona, me faz sentir além de pensar. É um mestre!

Abraços

abril 22, 2006 9:00 AM  

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