quarta-feira, abril 05, 2006

A Cidade e os Cachorros



O peruano Mario Vargas Llosa é um de meus escritores favoritos, dele seria capaz de ler até a lista de compras para o supermercado. Caço sua obra pelos sebos, a última que li foi "Batismo de Fogo", seu romance de estréia. O título original é "La Ciudad y los Perros", que descreve melhor o assunto do livro.

Trata-se de um romance de formação, semi-autobiográfico, ambientado entre as ruas de Lima e o colégio militar onde estudam os protagonistas, alunos do último ano. O roubo das questões de uma prova detona acontecimentos que revelam a rotina de mentiras e brutalidades, microcosmo da corrupta sociedade peruana.

Como é praxe em Vargas Llosa, a história tem vários narradores. O principal é seu alter ego: Alberto, o Poeta, um rapaz da elite que se divide entre a revolta contra o sistema opressivo do colégio e a acomodação às regras, desfrutando dos privilégios de sua condição social.

Alberto também vacila entre defender Ricardo, o “Escravo” - aluno tímido com quem todos implicam - e abusar da confiança do amigo para trai-lo de forma mesquinha. As indecisões de Alberto serão levadas ao limite quando o Escravo é vítima de um crime bárbaro dentro do próprio colégio.

Além dos conflitos dentro da escola, o romance é uma descrição magistral das relações dos alunos (os cachorros) com a cidade de Lima, fragmentada em bairros marcados pela desigualdade social, em bares de reputação duvidosa e bórdeis baratos. Alberto, vindo da elitista Miraflores, é um estranho no ninho dos colegas das vizinhanças mais pobres, ou naturais do interior do país.

O romance teve enorme repercussão quando foi publicado. O colégio que Vargas Llosa descreve existe - ele mesmo estudou lá. Os militares peruanos o acusaram de ser um comunista dedicado a destruir as instituições nacionais. Há até uma lenda urbana que afirma que milhares de cópias de "Batismo de Fogo" foram queimadas no pátio da escola. Claro que ninguém viu o auto-de-fé, além das tiragens de livros no Peru serem um tanto inferiores a essa marca...

Para um apreciador de Vargas Llosa, é fascinante ver como em sua primeira obra já estavam presentes os elementos principais que desenvolveria ao longo da carreira: os múltiplos narradores, as críticas aos militares, a sensualidade, o intelectual vacilante como protagonista etc. O escritor estava pronto e lapidado, daí em diante foi só desenvolver seu talento, que no meu juízo atingiu o auge em “Tia Júlia e o Escrevinhador” e “Conversa na Catedral”.
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