sábado, abril 08, 2006

Bolívia: a tempestade perfeita

Em seu livro “O Fim da Pobreza”, o economista Jeffrey Sachs analisa determinados países da África como “tempestades perfeitas”, por reunirem todos os fatores que levam à miséria: instabilidade política, degradação ambiental, conflitos étnicos etc. A nação mais pobre da América do Sul, a Bolívia, tem índices sociais comparáveis aos casos examinados por Sachs e acrescenta ao caldeirão elementos explosivos, como a posse do gás natural, recurso fundamental à integração regional, e relação delicada com o Brasil, que acende o debate sobre o papel desempenhado por nosso governo na política sul-americana.

A tempestade perfeita da Bolívia é a manchete do Globo deste sábado. Fortes chuvas nos últimos dias danificaram o gasoduto que liga o país ao Brasil. Os reparos são dificultados porque a população boliviana fechou estradas para protestar contra a Petrobras e o resultado é que o governo brasileiro adotou racionamento de emergência – 50% do gás consumido em nosso país vêm da Bolívia. Sem esse fluxo, o parque industrial de São Paulo pára.

A Petrobras é a maior empresa da Bolívia, responde por 18% do PIB boliviano. Há um ano, escrevi no Globo comparando as ações da empresa ao modelo econômico da ditadura militar. Os lucros não promovem melhoria da qualidade de vida da população boliviana e há problemas com destruição ambiental e de terras de povos indígenas. Faltam ações de responsabilidade social, o que é ainda mais urgente por se tratar de uma estatal, um instrumento da política externa do Estado brasileiro. A FASE, importante ONG brasileira, acabou de lançar um livro-denúncia sobre o tema.

É esse o modelo de liderança e integração que pretendemos impor a nossos vizinhos?

Meu artigo foi escrito pouco antes da explosão dos protestos sociais que culminaram com a renúncia de Carlos Mesa e com a ascensão de Evo Morales, o primeiro índio a ser eleito presidente de um país da América do Sul.

Conversando com um ex-professor de jornalismo econômico ele me perguntou se Morales era simplesmente o porta-voz da bandeira étnica indígena ou se possuía também uma agenda econômica. Do papo nasceu um artigo sobre o processo boliviano, onde afirmo que Morales venceu porque articulou os principais movimentos sociais bolivianos – indígenas, cocaleiros, sindicatos. Entre suas demandas centrais está a gestão comunitária dos recursos naturais – água, terra, gás.

A Bolívia tem uma história de espoliação de riquezas (prata e estanho) por estrangeiros. Ninguém quer que o gás repita essa trajetória, mas é o que vem ocorrendo. O Brasil tem agido com cautela – a Petrobras foi a única empresa a não processar o governo boliviano pelo recente aumento nos impostos e royalties sobre o gás. Mas persistem tensões, inclusive posições ambíguas de Morales se é ou não a favor de estatizar a exploração desse recurso.

As opiniões dos diplomatas brasileiros sobre os outros países sul-americanos em geral me surpreendem pelos esteriótipos e preconceitos, quando não por afirmações que um observador pouco simpático classificaria de “imperialistas”. Nossos embaixadores costumam analisar a ascensão do movimento indígena boliviano apenas como fator de instabilidade que prejudica os interesses brasileiros. É uma visão míope. Estamos diante de um marco para a democracia no continente, passo fundamental para encerrar o apartheid que existe de fato em muitos países da região. Respeito à democracia e à diversidade estão presentes em nossa Constituição e espero que logo cheguem também aos corações e mentes dos responsáveis por nossa política externa. Sem a sensibilidade para as mudanças na América do Sul, viraremos uma caricatura de líder, falando macio e usando um porrete.

4 Comentarios:

Anonymous Anônimo said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Sempre aprendo coisas novas com os seus posts, Mestre! :)

abril 10, 2006 9:27 AM  
Blogger Maurício Santoro said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Que bom, minha querida. É um consolo: hoje acordei com a CEG perfurando minha rua, talvez em busca de algum perigoso subversivo boliviano.

Os jornais dizem que na próxima semana o abastecimento de gás será normalizado. Espero que sim, não pretendo parar de fritar meus bifes no jantar.

Brasil triunfa!

bjs

abril 10, 2006 2:55 PM  
Blogger Bruno Lopes said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Se esse livro fosse super caro, com uma encadernação luxuosa, eu pediria para a biblioteca da petrobras comprar. Em grandes organizações, não é difícil fazer uma pequena rebeldia passar por debaixo do radar! Mas como publicaram uma versão com download gratuito, não tem muita graça...

abril 11, 2006 12:32 AM  
Blogger Maurício Santoro said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Salve, Bruno.

Acho até que a FASE toparia doar para a Petrobras. Afinal, um dos objetivos do livro é influenciar na formulação das políticas da empresa.

Mas a minha dica de leitura para você é uma tese do diplomata Pedro Miguel da Costa e Silva, apresentada ao Curso de Altos Estudos do Itamaraty. Tema: a Petrobras e a política externa brasileira na Bolívia.

O problema: o Itamaraty declarou a tese secreta, por razões de segurança nacional. Mas acho que vocês conseguem uma cópia na empresa.

E afinal, qual é o link para seu novo blog? Não consigo vê-lo!

Abraços

abril 11, 2006 10:39 AM  

Postar um comentário

<< Home

Creative Commons License
This work is licensed under a Creative Commons License. Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com