quinta-feira, março 30, 2006

Renato Russo: temos nosso próprio tempo




Eu tinha 10, 12 anos e adorava desenhar. Foi assim que comecei a gostar de música: como trilha sonora enquanto preenchia pilhas de cadernos de ilustrações. Naquela época, a Legião Urbana tinha acabado de lançar “Quatro Estações”, disco (os CDs ainda não tinham se tornado populares) em que quase todas as canções viraram sucessos nas rádios. Paixão imediata. Renato Russo foi meu profeta da adolescência. Crítico social, poeta, trovador. Morreu no mesmo ano em que entrei para a faculdade – de jornalismo, mesmo curso que meu ídolo havia feito.

De onde vem a indiferença
Temperada a ferro e fogo?
Quem guarda os portões da fabrica?


Nesta semana assisti ao show-tributo a Renato exibido pela TV a cabo. Os outros membros da Legião brigaram com a família do vocalista e rolam disputas sobre direitos autorais. Talvez por isso a celebração tenha sido tão mixuruca. Típico caça-níqueis de gravadora: reunir um grupo de artistas que estão fazendo sucesso e colocá-los para cantar músicas de Renato, mesmo que não tenham nada em comum com as canções legionárias. Exceções: as apresentações do Capital Inicial e dos Titãs.

Pena que Cássia Eller não esteja mais entre nós – a meu juízo, ela foi a melhor intérprete de Renato Russo. Gosto mais das versões dela para “Por Enquanto” e “Primeiro de Julho” do que as da própria Legião.

Mudaram as estações e nada mudou
Mas eu sei que alguma coisa aconteceu
Está tudo assim tão diferente


Verdade que há muito deixei de escutar Renato Russo. Dei vários dos CDs da Legião para meu irmão e o único que ainda ouço com freqüência é o “Dois” - gosto das canções de amor e do lirismo do disco. Muitas das mensagens políticas de Renato, que me comoviam na adolescência, hoje me soam simplistas, sobretudo a dos últimos 5 anos da Legião. Implico com as metáforas, com o tom melodramático. Algumas canções lançadas postumamente parecem tiradas de um manual de auto-ajuda. Prefiro a ambigüidade de Cazuza, a quem também admiro mais como poeta e letrista.

Temos nosso próprio tempo...
Nem foi tempo perdido
Somos tão jovens


Ainda assim, fica o carinho por Renato Russo e por aquele adolescente que vibrava a cada rock-denúncia da Legião. Foi uma parte importante da minha vida, como os cadernos cheios de desenhos, que infelizmente deixei de lado e joguei fora quanto a paixão pela literatura e pelo cinema bateu com força. Por coincidências, nesta semana vários amigos do segundo grau (acho que hoje em dia é ensino médio), a quem não há via há anos, me procuraram. Constatei o tamanho da distância que nos separa.

Nesta manhã de sábado, enquanto coloco as roupas para lavar e arrumo a estante, quem sabe coloque a Legião para tocar. Só um pouquinho. Só por hoje.

Os sonhos vêm, os sonhos vão. O resto é imperfeito.

O Caleidoscópio de Israel



Arafat morreu, Sharon está em coma, o Hamas chegou ao poder na Palestina e Irã e EUA estão numa crise internacional pelo programa nuclear de Teerã. Neste contexto os israelenses foram às urnas e o resultado aumenta a instabilidade no Oriente Médio. Numa votação em que o "vencedor" levou 1/4 do parlamento, teremos pela frente um difícil governo de coligação no qual os pequenos partidos extremistas ganham peso desproporcional.

O partido mais votado foi o Kadima, agremiação de centro criada pelo primeiro-ministro Ariel Sharon pouco antes de seu derrame. O ponto principal do programa do Kadima é a retirada unilateral de Israel da Faixa de Gaza (realizada em 2005) e de algumas zonas da Cisjordânia. Claro que isso exclui Jerusalém e áreas-chave para a segurança do país, como as Colinas de Golã e o controle do rio Jordão. Mesmo essa proposta moderada foi suficiente para causar tal furor na direita que Sharon teve que deixar o tradicional partido Likud.

O segundo lugar ficou com o Partido Trabalhista, que muito provavelmente se aliará ao Kadima no programa das retiradas. Ambos, somados, tem 48 cadeiras em 120. Precisam de pelo menos mais 13 para ter a maioria parlamentar.

Aí entram os pequenos partidos, representantes do caleidoscópio étnico-religioso de Israel. O Shas (13 cadeiras) representa os ultra-ortodoxos, principalmente os que vieram de países árabes). O Yisrael Beitenu (12 deputados), Israel Nossa Terra, é a sigla dos imigrantes russos, que chegaram em massa após o colapso da URSS. É fortemente anti-árabe, assim como o Shas.

O Likud foi o grande derrotado das eleições. O outrora todo-poderoso partido da direita israelense chegou num humilhante quinto lugar, com 11 cadeiras. A razão não foi tanto a oposição à política linha-dura contra os palestinos, e sim uma rejeição do eleitorado mais pobre aos cortes nas políticas sociais realizados pelo Likud.

Esse descontentamento também explica o bom resultado do recém-criado Partido dos Aposentados (7 cadeiras) que quer mais proteção para idosos e pode ser um bom aliado à coligação Kadima-Trabalhistas. E tem muitos eleitores jovens, que acreditam em sua proposta. É engraçado pensar que enquanto jogam petecas ou disputam partidas de damas, os aposentados israelenses são também os fiéis da balança do processo de paz no Oriente Médio. O bizarro é que o líder do partido é um ex-agente secreto do Mosssad, que participou da captura de criminosos de guerra nazistas!

Em suma, o primeiro-ministro Ehud Olmert (na foto, acima de Shimon Peres e Sharon), líder do Kadima, vai precisar de muita habilidade para montar sua coalizão, convencer Israel da retirada unilateral de partes da Cisjordânia e ainda lidar com as tensões inevitáveis vindas do Hamas e da crise EUA-Irã. Seria uma tárefa árdua
mesmo para o rei Salomão, aquele de grande sabedoria e que preferiu a rainha de Sabá, que era mulata.

O comparecimento eleitoral foi de 63%, o mais baixo em muitos anos em Israel. Talvez isso se deva às denúncias de corrupção e caixa 2, que atingiram boa parte da elite política do país, inclusive o filho de Sharon. Deve ser terrível viver num país em que os governantes se dedicam a essas práticas!

***

Enquanto isso, na América Latina: um amigo repórter do Globo defendeu em 2005 dissertação de mestrado sobre mídia e relações internacionais. Resolvemos aplicar os conceitos que ele apresentou num estudo sobre a "diplomacia midiática" do governo Chávez, a partir da minha experiência de trabalho na Venezuela, durante o Fórum Social Mundial. Analisamos a retórica de Chávez, a criação da Telesur, e o patrocínio venezuelano ao FSM e à escola de samba Vila Isabel. Buscamos examinar as possibilidades e limites dessas estratégias. O artigo foi publicado no Observatório Político Sul-Americano e convidamos vocês a lerem e debaterem o tema.

terça-feira, março 28, 2006

Crônica de uma Certa Buenos Aires


Borges escreveu que Buenos Aires não tinha História, era eterna como o mar.

Tomás Eloy Martinez discorda. Conheci este escritor argentino ao ler seu ótimo Santa Evita. Seu romance mais recente, O Cantor de Tango, é uma obra-prima, talvez o melhor livro de ficção contemporânea da América Latina.

O protagonista é Bruno, americano que cursa o doutorado em literatura pesquisando para uma tese sobre Borges e o tango. O mestre das letras argentinas só gostava das canções do início do século XX, o que veio depois seria “deturpação genovesa” do verdadeiro tango, executado nos bordéis portenhos. Bruno ouve a respeito de um misterioso Julio Martel, espécie de lenda urbana – cantor de talento excepcional, que não grava CDs, apresenta-se à esmo por Buenos Aires, só se dedica ao repertório antigo e teria voz fabulosa, melhor que a de Gardel.

Claro que o doutorando resolve ir a Buenos Aires atrás de Martel, enquanto pesquisa para a tese. Seu período na cidade, o segundo semestre de 2001, coincide com a mais aguda crise da Argentina, que culminou numa insurreição popular contra o governo De La Rua e os políticos em geral. Que se vayan todos.

À medida que o tempo passa, a caçada de Bruno pelo cantor de tango começa a se misturar com o turbilhão social de Buenos Aires e se transforma num hino de amor à cidade e à tradição de lutas que ela encarna, num percurso que vai dos militantes sindicais anarquistas aos combates contra a ditadura e as jornadas de 2001. Com espaço para descrições suculentas dos famosos cafés e livrarias, das danças e festas, das obsessões por Borges (o conto “O Aleph” é citação constante).

segunda-feira, março 27, 2006

França: revolta ou estagnação?


Me sinto dividido com relação aos protestos que mobilizam a França nas últimas semanas. Por um lado, me solidarizo com os jovens e operários que saem às ruas para se opor às mudanças nas leis trabalhistas, que tornariam mais fácil para as empresas demitir funcionários com até 25 anos. Por outro, também vejo os movimentos sociais franceses num quadro de estagnação e falta de propostas para lidar com as dificuldades do país.

A França, como a maioria dos países da Europa Ocidental, defronta-se com uma década de baixo crescimento e alta taxa de desemprego. Nos jovens da periferia, ela alcança 50%, com todas as conotações raciais que levaram à insurreição das banlieus em 2005. Os liberais afirmam que os custos trabalhistas são muito elevados e que é preciso abrir mão de alguns dos direitos sociais do Welfare State, para que as empresas possam competir nestes dias de economia global e rivais que usam mão-de-obra bem mais barata na China ou na Índia. Mas a maioria da população – e conseqüentemente, os partidos de esquerda e de direita que a representam – temem mudanças no modelo e afirmam que o argumento não passa de pretexto para que os empresários aumentem os lucros.

O impasse esteve no centro das eleições da Alemanha e na rejeição francesa e holandesa ao Tratado Constitucional Europeu, visto com ou sem razão como um instrumento das grandes empresas frente ao trabalhadores. O problema é que os movimentos sociais têm se limitado a bradar “não” mas ainda não foram capazes de propor alternativas eficazes. A semana de 35 horas de trabalho adotada na França não parece ter tido grande impacto.

Há quem veja nos atuais protestos franceses um marco para a esquerda, uma retomada da aliança entre estudantes e operários que marcou 1968. Não compartilho desse entusiasmo. Naquele ano havia um desejo – utópico que fosse – por grandes mudanças e transformações. As manifestações de hoje são baseadas no medo. Na manutenção de um status quo bastante medíocre.

É fácil esses sentimentos degringolarem em demagogia anti-imigrante, por exemplo. Afinal, de classes médias autoritárias e assustadas, nós brasileiros entendemos um pouco.

sábado, março 25, 2006

Trinta Anos Nesta Noite


“Nos sentimos protegidas, acompanhadas por tantos jovens. Não podia imaginar que viesse tanta gente”, conseguiu dizer uma emocionada Hebe de Bonafini no momento em que subia ao palco localizado no meio da Praça de Maio. Enquanto os rapazes gritavam “Madres de la Plaza, el pueblo las abraza”, León Gieco começou o recital. A canção que que todos lhe pediram não podia ser outra, foi La memoria.

Assim o jornal "Página 12" abriu sua reportagem principal no dia em que os argentinos comemoram 30 anos do golpe militar que instalou a mais sangrenta ditadura da América do Sul. Escrevo "comemorar" no sentido etimológico da palavra. Lembrar em conjunto.

A Argentina teve 6 golpes de Estado entre 1930 e 1976. O último veio como reação ao caótico governo de Maria Estela de Perón, uma dançarina de cabaré que dava expediente extra como terceira esposa de Perón, vice do marido na chapa à presidência e titular depois que ele faleceu durante seu segundo mandato. Dona Maria Estela governou com mão de ferro e um assessor bruxo, José Lopez Rega, que acreditava em duendes e na matança de inimigos, reais ou imaginários. A gestão da economia foi igualmente turbulenta, mesmo para os padrões do nighclub panamenho onde a presidente conheceu Perón.

Os militares instituíram o chamado "Processo de Reorganização Nacional", ou simplesmente o Processo. O objetivo era reconstruir a sociedade argentina e eliminar de vez as fontes de instabilidade ("subversão", como se dizia na época) através de reformas profundas. Politicamente, foi uma guerra suja com prisões clandestinas, torturas e 30 mil assassinatos. Economicamente, os argentinos foram pioneiros (ao lado dos chilenos de Pinochet) em aplicar na prática as idéias neoliberais. Lançaram o país num abismo recessivo de onde nunca saiu.

Na política externa, quase declararam guerra ao Chile por ilhotas no canal de Beagle. E foram às vias de fato com a Inglaterra, pelas Malvinas. "Dois carecas brigando por um pente", na célebre definição de Jorge Luís Borges.

Kirchner era um jovem ativista da esquerda peronista nos anos 70 e sua chegada à presidência trinta anos depois é um acerto de contas com o passado. Revogou leis de anistia anteriores e começou a julgar muitos dos militares acusados de crimes contra os direitos humanos. Transformou o mais infame centro de torturas do período, a Escola de Mecânica da Marinha, num Museu da Memória.

Declarou feriado nacional a data do golpe. Comemorar. Lembrar em conjunto.

Como sempre, a organização da sociedade civil argentina impressiona. As Mães da Praça de Maio, Pietàs de carne e osso. Adolfo Pérez Esquivel, prêmio Nobel da Paz por sua atuação contra a ditadura. A articulação dos artistas, transformando o drama dos desparecidos no filme ganhador do Oscar, "A História Oficial". São as pessoas que estão novamente nas ruas de Buenos Aires, para recordar e seguir vivendo. Num país diferente.

E criticando o governo Kirchner pela ocupação do Haiti. Aquela mesma que Lula diz ser exemplo de "diplomacia solidária". Adoro esses argentinos

quinta-feira, março 23, 2006

Falando sobre Desenvolvimento

Na semana passada estive no BNDES para a inauguração do Centro Internacional Celso Furtado, instituição de pesquisa dedicada a um dos nossos mais importantes pensadores e homens públicos - parece brincadeira, mas houve um tempo que essa expressão NÃO era sinônimo de corrupção e ganância. Como não podia deixar de ser, o evento foi um debate sobre desenvolvimento. Falaram mestres no assunto, como Maria da Conceição Tavares e Hélio Jaguaribe, e acadêmicos com quem tenho minhas diferenças mas que gosto de ouvir, como Carlos Lessa. Otima tarde, aprendi bastante.

Quarta-feira foi a vez de eu me aventurar por esse terreno. Eu havia recebido um convite da Universidade Veiga de Almeida para dar uma palestra sobre políticas sociais brasileiras. Pedi uma ligeira alteração no tema, minha apresentação foi "Modelos de Desenvolvimento e Políticas Sociais". O argumento: a mudança no conceito de desenvolvimento, do enfoque no crescimento econômico para a perspectiva mais ampla que trata da expansão dos direitos sociais, da consolidação da democracia e da melhoria da qualidade de vida. Procurei relacionar essa transformação com a pressão dos movimentos populares e das lutas políticas, mostrando como foram capazes de trazer novos temas ao centro da agenda pública, tais como o combate ao racismo e a segurança alimentar.

As organizadoras da palestra haviam sugerido que eu utilizasse música para marcar algumas passagens, de modo que usamos as canções de Vinicius de Moraes, Caetano Veloso, Aldir Blanc e Cazuza para pontuar os momentos mais importantes da apresentação. Foi uma bela manhã e me diverti bastante. No debate que se seguiu, as questões diziam respeito às avaliações do governo Lula e encontrei a maioria dos estudantes muito críticos, tanto pela corrupção quanto pela postura social do presidente, que classificaram de "assistencialista". O mais interessante foram os questionamentos sobre como a violência poderia ser tratada sob a perspectiva de um novo modelo de desenvolvimento - ecos da ocupação das favelas cariocas pelo Exército e da exibição pela TV Globo do ótimo documentário "Falcão, os meninos do tráfico", de MV Bill, Celso Atahyde e da Central Única de Favelas.

As pessoas na Veiga de Almeida foram muito carinhosas comigo, me paparicando com presentes, abraços, poses para fotos, quantidades abissais de comida e tudo o mais. Especialmente emocionante para mim foi reencontrar meu orientador da graduação, e tutor da iniciação científica, que agora coordena o curso de jornalismo daquela universidade. Tínhamos nos esbarrado em Brasília, há dois anos. Eu ia apresentar uma pesquisa no Senado, ele ia para uma reunião no MEC. Desta vez, conversamos sobre minha experiência acadêmica e ele me deu bons conselhos e incentivos.

Voltei para o trabalho na parte da tarde, a tempo de dar entrevista para uma rádio gaúcha sobre temas semelhantes: modelo de desenvolvimento, governo Lula, conflitos sociais. As perguntas foram muito boas e a conversa rendeu. Outra ótima surpresa do dia foi o pedido de uma autora de livros didáticos sobre cultura afro-brasileira para incluir reproduções de um artigo meu "Onde Você Guarda Seu Racismo?", em sua próxima publicação. Às vezes tudo dá certo, não é?

Aos poucos, sinto que vai se formando uma certa perspectiva da maneira pela qual vejo o desenvolvimento, e que vem se traduzindo em uma série de atividades: aulas, palestras, entrevistas, escritos e, claro, política. Adoro estudar, adoro a vida acadêmica. Mas ela só tem valor para mim se estiver profundamente ligada nas disputas que um dia vão "fazer deste lugar um bom país". Que Celso Furtado ilumine meu caminho.

terça-feira, março 21, 2006

Paixão e Exceção: Borges, Evita, Montoneros


Continuo nas leituras sobre a Argentina e andei me deliciando com “A Paixão e a Exceção – Borges, Eva Perón, Montoneros”, de Beatriz Sarlo, uma das melhores críticas literárias argentinas, país em que a literatura é mania nacional só rivalizada pelo futebol. Mais do que isso, Sarlo é uma ensaísta social de grande talento, que constrói pontes inesperadas entre cultura e política. Afinal, como ligar um escritor do chamado realismo mágico com a mitológica primeira-dama e o maior grupo guerrilheiro da América Latina? A resposta desvenda tramas da Argentina contemporânea.

Em 1970 os Montoneros fizeram uma estréia explosiva na política, seqüestrando e assassinando o general e ex-presidente Pedro Aramburu. Em 1955, ele havia liderado o golpe militar que depôs Perón. Um dos atos da ditadura recém-estabelecida foi sumir com o cadáver de Evita, que estava exposto na principal central sindical do país. O corpo permaneceu desaparecido por quase 20 anos – uma das exigências dos Montoneros para soltar Aramburu era que os militares devolvessem Evita.

Ora, o peronismo não acabou com a deposição e exílio do líder. Pelo contrário, a ausência lhe deu um ar místico e o movimento idealizou a figura do ex-presidente e de sua primeira-dama. Na radicalização política dos anos 60, um grupo de católicos de esquerda misturou Cristo, Marx, Perón e Evita e fundou os Montoneros. O nome é o das antigas colunas guerrilheiras dos Pampas, uma espécie de cangaço que existiu na época das guerras civis do século XIX.

É claro que essa mistura inconsistente e explosiva não podia dar boa coisa e poucos grupos de luta armada foram tão ousados e violentos. Na mesma época, o mais respeitado dos escritores argentinos, Jorge Luís Borges, escreveu contos bizarros sobre vinganças regadas a sangue e degolas, pouco comuns em sua obra. Na brilhante análise de Sarlo, Borges – em geral considerado fantasioso e apolítico – torna-se o comentarista arguto de uma Argentina enlouquecida pelas paixões e agressões políticas, que nem a morte consegue encerrar.

Em tempo: os Montoneros seqüestraram novamente Aramburu – isto é, seu cadáver – quatro anos depois da primeira vez. Exigiram novamente a devolução do corpo de Evita. Foram atendidos.

O livro de Sarlo é uma obra-prima que começa com o exame de como Evita se tornou um mito, discutindo sua meteórica ascensão de atriz de rádio de segunda linha ao posto de primeira-dama, papel que exerceu de forma inovadora, posicionando-se como uma figura pública com uma mensagem social na era de política de massas. Sarlo examina as velhas fotos, os vestidos de Evita e faz uma análise inovadora da propaganda dos peronistas, mostrando como estavam atentos para a força política do rádio, do cinema e da fotografia.

Sarlo esmiuça com a mesma atenção os documentos dos Montoneros, lendo seus manifestos como um gênero literário de suspense e melodrama cristão e desvendando as entrelinhas de sua correspondência com o Perón. Exilado na Espanha, o ex-presidente achou que podia manipular seus jovens e revolucionários admiradores, com conseqüências trágicas para todos.

Pensemos um pouco nelas, nesta semana em que a Argentina relembra os 30 anos de seu mais recente golpe militar. Oxalá tenha sido o último.

domingo, março 19, 2006

Guimarães Rosa


Muito antes de Brokeback Mountain, uma obra de arte já quebrava padrões ao falar do amor entre dois vaqueiros. Ok, no fim do "Grande Sertão: Veredas" a gente descobre que a história não era bem essa, mas o tema está lá, inteiro. Não vi o filme de Ang Lee, será que tem alguma fala mais bonita do que Riobaldo comentando sobre seu parceiro, "Diadorim é minha neblina" ?

Por causa dos 50 anos da publicação do romance mais famoso de Guimarães Rosa, estão em curso várias homenagens ao escritor. Globo e Jornal do Brasil lançaram cadernos especiais, revistas literárias lhe dedicaram longas reportagens. A melhor comemoração foi um debate sobre Guimarães Rosa, em que seu amigo Alberto da Costa e Silva contou casos e anedotas sobre suas experiências em comum.

Os dois se conheceram no Ministério das Relações Exteriores, onde eram colegas. Costa e Silva fez carreira como um especialista em assuntos africanos. Eu o entrevistei uma vez, quando do relançamento do seu "A Enxada e a Lança: a África antes dos portugueses". Deve ser o homem que mais entende do continente em nosso país. Além de uma erudição profunda, é um grande contador de histórias. Rosa foi um diplomata relutante, que não gostava de sair do Brasil, mas serviu na Alemanha, na França e na Colômbia, com freqüência em situações difíceis - uma prisão nazista durante a Segunda Guerra Mundial e o início da guerra civil colombiana.

"Rosa era um homem empertigado, parecia que ia cair para trás, e usava uma gravata borboleta que dava a impressão que iria voar a qualquer momento", conta Costa e Silva. O famoso hábito do escritor em anotar tudo é confirmado pelo amigo, que contou sobre uma visita que ambos fizeram a um cabaré de Manaus. Rosa conversava com as prostitutas e registrava suas histórias de vida: "Era um homem de uma delicadeza extrema, conquistava com facilidade a confiança das pessoas, que lhe faziam confidências."

A erudição de Costa e Silva nunca cansa de me surpreender e ele deu mostra delas em sua palestra mostrando as relações da obra de Rosa com poemas medievais e autores portugueses que recriavam a linguagem oral do Minho. Disse que o escritor considerava sua obra-prima o conto sobre Miguilim, um menino míope que descobre o mundo ao colocar óculos pela primeira vez. Me lembrei de uma bela crônica escrita por outro diplomata que conviveu com Rosa, Rubens Ricupero, no qual a aventura de Miguilim aparece como metáfora para o potencial cultural do Brasil, para as riquezas que deixamos de perceber em nosso país.

O trecho da palestra de Costa e Silva que mais me emocionou foi a descrição da morte de Guimarães Rosa. Doente havia alguns dias, ligou para a secretária e lhe avisou que estava sofrendo um ataque cardíaco. "Então desligue o telefone que eu vou chamar um médico!". Ele lhe respondeu: "Não precisa, mas eu quero morrer falando para alguém." Desconheço outra manifestação tão tocante da necessidade visceral que todo escritor sente em se comunicar.

quinta-feira, março 16, 2006

Geraldo Alckmin


Era uma vez um grupo de políticos e acadêmicos que lutara contra a ditadura militar e fazia oposição ao governo Sarney. Queriam resgatar o espírito de luta do velho MDB e achavam que o parlamentarismo era uma boa idéia. Fundaram o PSDB. Alguns anos depois, flertaram com Collor. Casaram com os coronéis do PFL. Viraram presidencialistas (com reeleição). Financistas.

Meu amigo Alexandre, conspirador emérito, diz que Alckmin tem “cara e nome de patrão”. Concordo. Parece um personagem do núcleo rico da novela das 20h (ambientada em São Paulo, claro, jamais teria o savoir-vivre dos grã-finos do Leblon do Manoel Carlos). Ou um presidente da República Velha, tempos de café com leite. Para piorar, é próximo da Opus Dei. O que faria se chegasse ao Planalto? Promoveria queima pública de exemplares do “Código Da Vinci”, enquanto se flagela e discursa em defesa da iniciativa privada?

Acho José Serra um dos políticos mais qualificados do país, mas entendo que o PSDB tenha preferido Alckmin. Afinal, o governador de São Paulo ainda é relativamente desconhecido do eleitorado de outros estados e não tem a alta rejeição de Serra (que ainda assim, pode descolar o Palácio dos Bandeirantes). E não deixei de ficar admirado pela disposição para briga e habilidade política que Alckmin demonstrou ao lutar pela indicação do partido à presidência, como a conquista de apoios entre parlamentares e governadores tucanos.

Claro que Serra também perdeu por suas qualidades, como um pensamento econômico mais autônomo com relação à ortodoxia dos mercados financeiros.

O embate entre Lula e Alckmin tem tudo para ser uma das campanhas mais chatas de todos os tempos. Vão discutir o quê? A política econômica do PT é igual a do PSDB. Corrupção? Descobrir que partido roubou mais? Ambos estão igualmente afundados na lama. Podem trocar insultos pessoais, discutir as metáforas futebolísticas do presidente versus o ar de chuchu do governador.

Espero que a programação da TV a cabo apresente bons filmes durante a disputa eleitoral. Mas este é o primeiro post de uma série - Observatório Alckmin. Vai ser bom pegar novamente no pé de alguém, depois da Gloria Perez.

terça-feira, março 14, 2006

Dois Mitos da Argentina


A Argentina é o tema da minha pesquisa de doutorado e entre leituras e análises, acabei me apaixonando pelo país. Adoro muitas coisas em nossos vizinhos do sul: culinária (é o paraíso dos carnívoros, como eu), humor, literatura, a cidade de Buenos Aires e o incrível nível de instrução e consciência política da população. O país tem um certo caráter exagerado, melodramático, que gerou alguns dos maiores mitos da América Latina no século XX. Ando pensando neles por conta de filmes que vi por estes dias.

Maria Eva Duarte de Perón, a primeira-dama do país entre 1946 e 1952, é um deles. Creio que a maioria dos brasileiros considera Evita uma espécie de "mãe dos pobres", distribuindo remédios e bonecas da sacada da Casa Rosada, enquanto canta a plenos pulmões Don´t Cry for Me Argentina. Só podia acabar mesmo na dobradinha Broadway/Hollywood. Revi na TV a cabo a adaptação para o cinema, Madonna como Evita. Os argentinos detestaram a caracterização de sua musa como uma provinciana que sobe na vida porque abre as pernas no momento certo. Mas as músicas de Lloyd Weber são lindíssimas e Madonna também está muito bonita.

Claro que a figura de Evita é bem mais complexa. Ela realmente representou algo importante para as correntes mais à esquerda no peronismo. Nos anos 60 e 70, os Montoneros, a maior organização de guerrilha urbana da América Latina, costumava gritar "Evita Montonera!", tomando-a como uma das suas.

E a oligarquia da Argentina simplesmente detestava Evita, num ódio que prosseguiu até depos de sua morte. Maria Eva morreu de câncer muito jovem, no auge da beleza, sequer tinha 30 anos. Numa sucessão de gestos bizarros, seu cadáver foi mumificado e posto em exibição na principal central sindical do país. Após o golpe militar que derrubou Perón, foi roubado e ficou anos desaparecido, com reviravoltas rocambolescas. Um inventivo escritor argentino, Tomás Eloy Martínez, contou a história num misto de romance e reportagem, "Santa Evita", no qual as passagens mais estranhas são as verdadeiras.

Curiosa também a inscrição em seu túmulo, no cemitério da Recoleta, em Buenos Aires: "Voltarei e serei milhões". Pensei que só os seguidores do rei dom Sebastião pensassem em coisas assim.

O segundo mito que quero comentar é a da "perda da idade de ouro da Argentina". OK, no início do século XX o país tinha uma das mais altas rendas per capita do mundo, comparáveis àquelas da Europa. Mas o índice mascarava as enormes desigualdades sociais que existiram por lá, nas províncias e nos bairros imigrantes de Buenos Aires. Em todo caso, para os padrões latino-americanos, era uma sociedade marcada por boas oportunidades de ensino público e gratuito, empregos e uma ampla rede de proteção social.

As crises sucessivas, em especial a mais recente, levam os argentinos a contemplarem esse passado com saudosismo e melancolia. Está em cartaz nos cinemas um filme que exemplifica bem essa perspectiva: "Clube da Lua". Reúne uma equipe de primeira do cinema de lá: o diretor e roteirista Juan José Campanella, os atores Ricardo Darín (em seu papel tradicional de galã gente-como-a-gente, cara legal com problemas) e Eduardo Blanco (o melhor amigo cômico do protagonista). Você já deve ter visto o time em ótimos filmes como "O Filho da Noiva" e "O Mesmo Amor, a Mesma Chuva".

Em "Clube da Lua", o cenário é um bairro operário de Buenos Aires que sofre as conseqüências da falta de emprego e da depressão econômica, simbolizadas na decadência da associação que era o centro da vida social local. Darin interpreta um taxista que tenta salvar o lugar onde passou bons momentos. É um filme marcado pela tristeza, os protagonistas foram derrotados pela vida e tiveram seus sonhos políticos, existenciais e amorosos sucateados. O personagem de Darín era um promissor líder estudantil que largou a faculdade para sustentar a família e vê seu casamento com a namorada de juventude empacar no tédio cotidiano, enquanto seu filho mais velho planeja emigrar para a Espanha.

Mas como diz o poeta, a "tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não". É impressionante a capacidade do diretor e do elenco de extrair lirismo, humor e poesia dos momentos difíceis do cotidiano. Há seqüências antológicas, comparáveis ao melhor da tradição italiana, de um Ettore Scola ou Mario Monicelli. E se o filme deixa claro que não existe muito espaço para o romantismo nestes tempos de crises e apertos, também aposta no princípio caro a tantas produções argentinas: é preciso recomeçar de algum lugar. De um restaurante (O Filho da Noiva), de um sítio (Lugares Comuns), de um grupo de amigos (O Mesmo Amor, a Mesma Chuva) ou dos movimentos sociais locais (A Dignidade dos Ninguéns).

domingo, março 12, 2006

Ser, Verbo Transitivo


Nos anos 80, Israel transferiu para o país cerca de 8 mil judeus etíopes - supostos descendentes de Salomão e da Rainha de Sabá. Foram levados da África numa ambiciosa operação de resgate, mas sua adaptação à sociedade israelense é problemática, marcada por choques culturais, preconceitos e altas taxas de suicídio. Desse material histórico Radu Mihaileanu realizou um interessantíssimo filme. Em português tem o título de "Um Herói de Nosso Tempo", no original é algo como "Vá, Veja e Transforme-se" (Va, Vis et Deviens).

O protagonista é um menino etíope, cristão, cuja mãe faz com que se passe por judeu para poder sair do país, fugir da miséria e ter a possibilidade de uma vida melhor. Em Israel, é adotado por uma família de classe média e cresce com profundas dúvidas de identidade, com o agravante de que precisa esconder sua verdadeira história.

Ser ou não ser é uma das perguntas fundamentais de qualquer pessoa, bem sabia o príncipe Hamlet, mas talvez não haja região do mundo em que ela seja mais importante do que no Oriente Médio, onde define as fronteiras e a linha de amigo/inimigo nos conflitos de vida e morte.

A resposta a esses questionamentos nunca é simples. Na gramática psicológica, ser é verbo transitivo, que exige muitos complementos. A família israelense que adota o menino etíope é judia, evidentemente, mas secular, de origem francesa - é esse idioma, e não o hebraico, que falam em casa. Também são militantes de esquerda, o que influi profundamente em suas escolhas de vida e posições políticas. Todos esses elementos se combinam com a herança etíope para formar a identidade do protagonista, que convive ainda com pessoas de diversas nacionalidades e correntes religiosas, num ambiente de tensões constantes que com freqüência explodem em confrontos e racismo.

Claro que também há lugar para amor, afeto e compreensão. Radu inovara ao tratar o Holocausto com humor em seu filme anterior, "Trem da Vida" e neste injeta pitadas de diversão que ajudam a relaxar e ganham a empatia do público. Às vezes o diretor parece nos dizer que problemas de identidade tornam a vida mais complicada, mas igualmente mais rica, como nas festas multiculturais do filme e num estupendo concurso de retórica numa sinagoga sobre o tema da cor de Adão.

Com exceção do final melodramático, "Um Herói de Nosso Tempo" é um filme extraordinário sobre as possibilidades de conjugação do verbo ser, no turbulento pano de fundo do Oriente Médio durante a Guerra do Golfo, os acordos de Oslo e a segunda intifada. Por coincidência, vi-o no mesmo dia em que morreu o ex-presidente iuguslavo Milosevic - figura que exemplifica como poucas as conseqüências trágicas dos massacres étnicos cometidos em nome de uma "identidade pura".

sexta-feira, março 10, 2006

O Fator Humano


Um subproduto do meu trabalho em relações internacionais é um entusiasmo crescente com romances de espionagem. Minha santíssima trindade é John Le Carré, Frederick Forsyth e Graham Greene. Todos ingleses. Le Carré escreveu o clássico contemporâneo do gênero, "O Espião Que Saiu do Frio", e tem navegado com sucesso por novos mares, como em "O Jardineiro Fiel". Forsyth é o mais convencional dos três, com seus heróis capazes de proezas quase superhumanas. Mas penso que do ponto de vista da beleza literária, Greene
(foto) é o campeão.

Recentemente li seu "O Fator Humano", que sintetiza o que mais gosto nele. Maurice é um velho espião quase aposentado, que vegeta na seção africana do Serviço Secreto. Arthur é seu jovem e inquieto subordinado, irritado por passar os dias escrevendo relatórios sobre a produção de amendoim no Zaire, enquanto se compara desfavoravelmente a James Bond. Quer ação. Ambos acabam tendo mais do que desejam quando passam a ser suspeitos de vazar informações para os soviéticos.

Maurice é um veterano do MI6, mas nada tem de heróico. É um burocrata sério, competente no seu ofício. Mas o "fator humano" entra em ação: ao servir na África do Sul, então sob o apartheid, ele se apaixonou perdidamente por Sarah. Foi descoberto pela polícia secreta local, mas conseguiu fugir com a mulher, com quem se casou na Inglaterra. Ao mesmo
tempo que precisa lidar com o vazamento, Maurice tem que cooperar com seu antigo inimigo na África do Sul, que se tornou um importante aliado para os britânicos nos campos de batalha da Guerra Fria.

É um ótimo romance de espionagem, com as reviravoltas no enredo que se espera do gênero, e muito mais: humor, ótimos personagens, tensão psicológica... Greene foi do serviço secreto durante a Segunda Guerra Mundial, operando sob chefia de Kim Philby, um dos mais célebres agentes duplos que a KGB infiltrou na Europa. Greene manteve a amizade com o antigo chefe, que costumava lhe corrigir sobre detalhes acerca do cotidiano na URSS. Isso sem dúvida contribuiu para a interessantísisma discussão do livro sobre o que leva um homem a trair sua pátria, ou mesmo se o nacionalismo é mais importante do que outras relações humanas. Tenho minhas dúvidas. Há muitos países por aí que não valem nem um "bom dia".

Enquanto isso, no mundo real, o debate sobre a eficiência da espionagem está na ordem do dia nos EUA, dado o fracasso das agências de informação em lidar com o 11 de Setembro e os problemas com a Al-Qaeda e o Iraque. Um dos pontos mais debatidos é que os americanos resolveram apostar suas fichas na tecnologia, em detrimento da formação e infiltração de agentes no exterior. O fator humano continua a ser chave para o sucesso nas guerras, frias ou quentes. Greene entenderia muito bem.

quarta-feira, março 08, 2006

Lula em Londres


Doces poderes: nosso presidente e sua corte andam de carruagem por Londres, são recebidos em noite de gala pela rainha. Êta, vida boa. Lula também deu uma longa entrevista a The Economist. Saiu-se bem. No exterior, as pessoas me perguntam sobre ele com expectativas muito idealizadas, projetando no operário que virou presidente todos os sonhos frustrados de transformação social. Pena que seja grande a distância entre a retórica do governo brasileiro e a realidade.

Houve constrangimento porque a rainha não pediu desculpas pelo assassinato do brasileiro Jean Charles. Ao invés disso, deu uma bronca em Lula pelas dificuldades do Brasil em preservar o Meio Ambiente. O presidente alegou que diminuiu a devastação na Amazônia, algo em que acho difícil acreditar, visto que a expansão da fronteira agrícola da soja tem destruído enormes áreas de floresta. E o governo também defende a construção de hidreelétricas na região, em projetos que lembram muito os da ditadura militar (basicamente, são para favorecer o agronegócio e as grandes indústrias), e são criticados por ambientalistas.

O Brasil tem buscado apoio do Reino Unido para diminuir os subsídios agrícolas da União Européia. Escolha acertada porque Tony Blair e Chirac trocam farpas por conta do tema, os britânicos não estão muito interessados em sustentar os fazendeiros franceses. A UE é o maior parceiro comercial do Brasil, e a maioria das exportações brasileiras para a Europa são produtos agrícolas. Ainda que, simultaneamente à visita de Lula, a UE tenha imposto um embargo ao mel do Brasil, alegando problemas sanitários.

Claro que também existem pontos positivos na política brasileira e os programas de biocombustível estão ganhando destaque merecido, num contexto de preços crescentes de petróleo. Também há uma certa demanda por propostas sociais vindas do mundo em desenvolvimento, e Lula foi muito habilidoso em se posicionar como um líder dessa agenda – como conciliar tal imagem com os altíssimos juros e impostos de seu governo, são outros quinhentos.

O ponto mais amargo da entrevista à The Economist foi um comentário da revista afirmando que Lula poderia conduzir a transição a uma “política mais limpa” no Brasil. Esqueceram de observar que toda a cúpula do partido do presidente foi cassada e/ou renunciou em função do envolvimento com a corrupção. Mas nenhum dos sobreviventes do PT parece muito angustiado, em especial após a retomada do crescimento de Lula nas pesquisas eleitorais, colocando-o novamente como favorito para a disputa presidencial de outubro.

terça-feira, março 07, 2006

Capote


A revolução, quem diria, começou no Kansas. O escritor Truman Capote chegou ao estado para escrever uma reportagem sobre uma família brutalmente assassinada. Terminou amigo de um dos assassinos e escreveu "A Sangue Frio", um livro em que usa técnicas de ficção para fazer jornalismo da melhor qualidade sobre a anatomia daquele crime. Outras feras como Tom Wolfe e Hunter Thompson desenvolveram mecanismos semelhantes. Nascia o Novo Jornalismo.

O filme "Capote" tem um excelente roteiro e uma atuação impecável de Philip Seymour Hoffman no papel título. Não é uma cinebiografia, como parece à primeira vista. A histórica se concentra no período em que Capote escreve "A Sangue Frio". O foco principal é sua relação com Perry Smith, um rapaz sensível e doce que também podia ser terrivelmente cruel, como quando assassinou a família Clutter. O escritor e o criminoso compartilhavam uma infância infeliz, família desestruturadas e suicídios de parentes próximos: "Parece que Perry e eu crescemos na mesma casa, mas eu saí pela porta da frente, e ele pela dos fundos", diz Capote.

Li "A Sangue Frio" quando era estudande de jornalismo e o livro me impressionou sobretudo como um estupendo trabalho de reportagem, com grande atenção aos detalhes, ao cotidiano da família e à trajetória dos criminosos. Além disso, creio que fez sucesso porque tocou no tema da "juventude transviada" e da marginalização social que ganhava destaque naquele momento de fins dos anos 50, início dos anos 60.

O filme conta essa história retratando Capote como um homem tão frio quando os dois criminosos, capaz de mentir, subornar e manipular todos a sua volta para escrever seu grande livro. Paga um preço pelo sentimento de culpa e a tendência à autodestruição que o acompanhará por toda a vida, após a publicação da obra.

Capote foi amigo de infância da escritora Harper Lee, autora do libelo anti-racista "O Sol é para Todos". Ela é uma personagem coadjuvante no filme, uma espécie de consciência de Capote. Gostaria que tivesse aparecido mais. Em todo caso, saí da sessão deslumbrado com o talento de Hoffman e querendo saber mais sobre o personagem que ele tão bem interpretou.

sexta-feira, março 03, 2006

Será que ele é Maomé?



Não canso de me surpreender em como o carnaval de rua no Rio de Janeiro está cada vez melhor. Os blocos se multiplicam, estão mais cheios e em todos você encontra gente bonita, animada. Meu bairro, Santa Teresa, tem uma arquitetura de ladeiras e sobrados que lembra Olinda. E o próprio carnaval em Santa está tão movimentado que cada vez mais se parece com da cidade pernambucana. Um amigo estrangeiro que pela primeira vez curtiu a festa no Rio ficou deslumbrado: "Vi dois rapazes que começaram a brigar e de repente todo o bloco os vaiou. A vergonha deles foi tanta que pararam na mesma hora!". O país do meu amigo quase foi destruído por uma brutal guerra
civil há poucos anos, demonstrações públicas de paz o impressionam.

Outra amiga comentava o choque que sentiu uma americana ao descobrir que numa das marchinhas mais populares os foliões pediam a "Alá, meu bom Alá" que os ajudassem a suportar o calor. "Mas isso não é uma oração muçulmana?", ela quis saber. "Aqui não é como no seu país, aqui pode tudo", respondeu. O que mais me divertiu foi cantar "Será que ele é Maomé?" diante da cabeleira do Zezé, sem o risco do Hezbolá não gostar e jogar umas bombas na gente. Os jornais dinamarqueses devem estar se roendo de inveja.

E a Vila Isabel, campeã do Sambódromo com um enredo que louva a América Latina? Como diz meu amigo fraterno, Marcelo Coutinho, carnaval também é integração. Desta vez financiada pelos petrodólares de Chávez, e com direito a Simon Bolívar em carro alegórico na marquês de Sapucaí. Mas por que não, uma vez que em São Paulo Serra e Alckmin foram tema de desfile? O investimento de Chávez no carnaval deve entrar no artigo que preparo sobre o presidente da Venezuela.

Bem, mas já é hora de voltar ao trabalho. E às leituras. Na coluna ao lado, criei uma seção nova, "Caiu na Rede, é Peixe", para colocar links para artigos interessantes que vaguem pelos mares da Web. Os temas são os mesmos deste blog: relações internacionais, cinema e literatura. Penso em atualizá-la semanalmente. Sugestões são bem-vindas.

quarta-feira, março 01, 2006

E Assim Se Passaram 10 Anos

M-27: Parece letra de bolero.
M-17: Mas é verdade, não se lembra? Eu tenho 17 anos e vou começar a faculdade de jornalismo.
M-27: Claro. Março de 1996. Ou teria sido fevereiro? As datas já ficaram meio desbotadas na minha memória.
M-17: É a idade, velho... Conselhos?
M-27: O que é mesmo que você esperava da universidade?
M-17: Escolhi jornalismo por causa da paixão pela escrita. E porque quero uma carreira que me jogue no turbilhão do mundo, nos acontecimentos do dia.
M-27: Nesse ponto continuamos iguais.
M-17: O que eu quero saber é...
M-27: É o que todos querem. Se você vai ter sucesso como jornalista, se vai ser feliz, essa bobagem toda.
M-17: Bobagem?
M-27: Ah, meu filho.. Pelo que vivi, ser feliz ou ter sucesso não é o que verdadeiramente importa. Não é isso que me faz levantar da cama todas as manhãs. O que está em jogo é algo mais profundo: a experiência de estar vivo. Às vezes você pega uma pauta complicada, espera horas debaixo de sol forte, pega engarrafamento, e no fim é tudo ótimo, entendeu?
M-17: Não, acho que não.
M-27: Tudo bem. Vai levar uns 10 anos.
M-17: E a faculdade?
M-27: Em termos de preparação profissional, será uma porcaria. Mas os muitos amigos que você fará por lá o acompanharão anos a fio, mesmo quando o tempo e a distância disserem "não". Está vendo a coluna ao lado, blogs conspiradores? Metade é deles.
M-17: OK, mas... o que é um blog?
M-27: Esqueci, nessa época você nem acessava a Internet... Um pequeno selvagem. Não importa. Outra coisa: a faculdade vai te dar muito tempo livre para ler. Você aproveitará bastante e mergulhará em Tolstói, Cervantes, Thomas Mann. Também se interessará de maneira mais profunda por história e por política.
M-17: Sempre gostei de política.
M-27: Sei disso. Mas você vai se surpreender em como esse tema se tornará importante na sua vida e na sua carreira.
M-17: As pessoas continuarão a dizer que um dia vou ser presidente, que nem no segundo grau?
M-27: Há muitos malucos neste mundo. Vão seguir te dizendo essa tolice e outras coisas também. Que você vai ser um grande isso, um grande aquilo. Aceite os elogios, são feitos com gentileza e carinho. Mas pé no chão, parceiro. E cuidado para que os sonhos de outras pessoas não determinem as suas próprias aspirações.
M-17: E o romance que sempre quis escrever?
M-27: Essse eu ainda estou te devendo. Mas você vai publicar bastante: artigos em jornais e revistas, textos acadêmicos. Viajará pelo mundo a trabalho, ou pelo menos vai circular bastante pela América Latina, África e Europa. Ganhará prêmios e até homenagens do governo.
M-17: Quem é o presidente daqui a dez anos? Os tucanos ainda estão no poder?
M-27: O Lula ganhou as eleições de 2002.
M-17: Então a Revolução triunfou? Meus ideais estão sendo postos em prática?
M-27: Caramba, que moleque pretencioso. Claro que não. Próxima pergunta.
M-17: Bom, pelas coisas que você está me contando, até que não vou me sair tão mal.
M-27: No balanço geral, vamos levando. Mas você também fez muita besteira. Depois a gente bate um papo sobre isso, quando não tiver ninguém escutando. Por ora, gostaria apenas que você curtisse melhor os bons momentos com as pessoas que vai conhecer. Com freqüência eles são mais fugazes do que você imagina.
M-17: O que eu posso fazer para evitar esses erros?
M-27: E quem disse que você deve?
M-17: Continuo sem entender.
M-27: Você e sua maneira de levar tudo a sério, de buscar sempre uma explicação!
M-17: Mas sou um cara racional!
M-27: Só na aparência. No fundo você é impulsivo como uma ária de ópera, e depois fica tentando racionalizar seu comportamento.
M-17: Os malditos genes calabreses.
M-27: Exato.
M-17: É como termina a minha, ou a nossa, história?
M-27: Continua em aberto. Daqui a 10 anos a gente pergunta para o M-37 como ele está se saindo.
M-17: Valeu. Até 2016.
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