terça-feira, março 14, 2006

Dois Mitos da Argentina


A Argentina é o tema da minha pesquisa de doutorado e entre leituras e análises, acabei me apaixonando pelo país. Adoro muitas coisas em nossos vizinhos do sul: culinária (é o paraíso dos carnívoros, como eu), humor, literatura, a cidade de Buenos Aires e o incrível nível de instrução e consciência política da população. O país tem um certo caráter exagerado, melodramático, que gerou alguns dos maiores mitos da América Latina no século XX. Ando pensando neles por conta de filmes que vi por estes dias.

Maria Eva Duarte de Perón, a primeira-dama do país entre 1946 e 1952, é um deles. Creio que a maioria dos brasileiros considera Evita uma espécie de "mãe dos pobres", distribuindo remédios e bonecas da sacada da Casa Rosada, enquanto canta a plenos pulmões Don´t Cry for Me Argentina. Só podia acabar mesmo na dobradinha Broadway/Hollywood. Revi na TV a cabo a adaptação para o cinema, Madonna como Evita. Os argentinos detestaram a caracterização de sua musa como uma provinciana que sobe na vida porque abre as pernas no momento certo. Mas as músicas de Lloyd Weber são lindíssimas e Madonna também está muito bonita.

Claro que a figura de Evita é bem mais complexa. Ela realmente representou algo importante para as correntes mais à esquerda no peronismo. Nos anos 60 e 70, os Montoneros, a maior organização de guerrilha urbana da América Latina, costumava gritar "Evita Montonera!", tomando-a como uma das suas.

E a oligarquia da Argentina simplesmente detestava Evita, num ódio que prosseguiu até depos de sua morte. Maria Eva morreu de câncer muito jovem, no auge da beleza, sequer tinha 30 anos. Numa sucessão de gestos bizarros, seu cadáver foi mumificado e posto em exibição na principal central sindical do país. Após o golpe militar que derrubou Perón, foi roubado e ficou anos desaparecido, com reviravoltas rocambolescas. Um inventivo escritor argentino, Tomás Eloy Martínez, contou a história num misto de romance e reportagem, "Santa Evita", no qual as passagens mais estranhas são as verdadeiras.

Curiosa também a inscrição em seu túmulo, no cemitério da Recoleta, em Buenos Aires: "Voltarei e serei milhões". Pensei que só os seguidores do rei dom Sebastião pensassem em coisas assim.

O segundo mito que quero comentar é a da "perda da idade de ouro da Argentina". OK, no início do século XX o país tinha uma das mais altas rendas per capita do mundo, comparáveis àquelas da Europa. Mas o índice mascarava as enormes desigualdades sociais que existiram por lá, nas províncias e nos bairros imigrantes de Buenos Aires. Em todo caso, para os padrões latino-americanos, era uma sociedade marcada por boas oportunidades de ensino público e gratuito, empregos e uma ampla rede de proteção social.

As crises sucessivas, em especial a mais recente, levam os argentinos a contemplarem esse passado com saudosismo e melancolia. Está em cartaz nos cinemas um filme que exemplifica bem essa perspectiva: "Clube da Lua". Reúne uma equipe de primeira do cinema de lá: o diretor e roteirista Juan José Campanella, os atores Ricardo Darín (em seu papel tradicional de galã gente-como-a-gente, cara legal com problemas) e Eduardo Blanco (o melhor amigo cômico do protagonista). Você já deve ter visto o time em ótimos filmes como "O Filho da Noiva" e "O Mesmo Amor, a Mesma Chuva".

Em "Clube da Lua", o cenário é um bairro operário de Buenos Aires que sofre as conseqüências da falta de emprego e da depressão econômica, simbolizadas na decadência da associação que era o centro da vida social local. Darin interpreta um taxista que tenta salvar o lugar onde passou bons momentos. É um filme marcado pela tristeza, os protagonistas foram derrotados pela vida e tiveram seus sonhos políticos, existenciais e amorosos sucateados. O personagem de Darín era um promissor líder estudantil que largou a faculdade para sustentar a família e vê seu casamento com a namorada de juventude empacar no tédio cotidiano, enquanto seu filho mais velho planeja emigrar para a Espanha.

Mas como diz o poeta, a "tristeza tem sempre uma esperança de um dia não ser mais triste não". É impressionante a capacidade do diretor e do elenco de extrair lirismo, humor e poesia dos momentos difíceis do cotidiano. Há seqüências antológicas, comparáveis ao melhor da tradição italiana, de um Ettore Scola ou Mario Monicelli. E se o filme deixa claro que não existe muito espaço para o romantismo nestes tempos de crises e apertos, também aposta no princípio caro a tantas produções argentinas: é preciso recomeçar de algum lugar. De um restaurante (O Filho da Noiva), de um sítio (Lugares Comuns), de um grupo de amigos (O Mesmo Amor, a Mesma Chuva) ou dos movimentos sociais locais (A Dignidade dos Ninguéns).

6 Comentarios:

Anonymous Anônimo said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

O último filme argentino que vi foi No Tán Nuestras, um documentário muito legal sobre as Malvinas sob o ponto de vista de um soldado que lutou na guerra contra os ingleses. Vou procurar suas outras recomendações. :)

março 15, 2006 10:56 AM  
Blogger Maurício Santoro said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Oi, Nica.

No último festival do Rio passou um drama sobre as Malvinas chamado "Iluminados pelo Fogo", mas não consegui vê-lo por falta de tempo. Não conheço o documentário que você mencionou, mas parece bom.

Grande Igor,

não sabia do Globo de Ouro da Madonna, mas ela realmente dá impressão de ter mergulhado na personagem. Prêmio merecido.

Hoje chegaram dois livros que encomendei sobre a Argentina. "A Paixão e a Exceção: Borges, Eva Perón, Montoneros", da ensaísta Beatriz Sarlo, e o romance mais recente de Tomas Eloy Martinez, "O Cantor de Tango". A conferir.

Vamos almoçar semana que vem, Igor. Tenho livres segunda, quinta e sexta.

Abraços

março 16, 2006 2:47 PM  
Anonymous Anônimo said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Oi Mauricio

Sou da geracao que mais amou Madonna, como ela, eu tinha trinta anos na decada de noventa, e delirei qd soube que ela faria o papel de Evita. Achei que nao poderia haver melhor escolha.

O problema do filme e que falta danca, falta tango.

bj
LPerola

março 18, 2006 7:52 PM  
Blogger Maurício Santoro said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Oi, Liana.

Tem algumas boas cenas de dança no início, mas depois fica mesmo meio estático. Devia ser diferente na Broadway, eu acho.

Em todo caso, estou lendo o ótimo livro da Sarlo sobre Evita e os Montoneros, pra semana comento ele aqui.

Bjs

março 19, 2006 9:07 AM  
Anonymous Anônimo said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

[b]Primeiramente mauricio Parabens

Bom o filme nao me agradou para nada, deixou muito a desejar
Pena pois nada se compara a Evita na America latina, poderiamos dizer Maradona, mas em epocas de Evitas.....
Escutei boatos e rumores de quando vivia na Argentina(tenho um padrinho Argentino e meus primos moram la) e uma vez me disserao que ela seria como uma sofista, poderia dizer uma Malufista, fazia as coisas para o povo pobre como vemos e temos em nossas mentes mas por tras ela enriquecia e pregava algo de socialismo?
Alguem pode confirmar isso ?
quem quiser me add no Orkut ou MSN
hatuna_matata69@hotmail.com

março 20, 2006 8:54 PM  
Blogger Maurício Santoro said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Salve, Hatuna.

Vou postar mais sobre Evita ainda hoje. Mas você tem razão em apontar as incoerências do comportamento da ex-primeira-dama, ela é acusada de muita coisa, inclusive de corrupção em suas obras de caridade. Além disso, o peronismo tinha um lado bastante autoritário que acabou levando a conflitos com vários setores da sociedade argentina.

Abraços

março 21, 2006 2:20 PM  

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