quinta-feira, junho 29, 2006

Um Poeta Sempre Jovem



Em abril, no Recife, eu participava de uma reunião de ativistas de direitos humanos que foi encerrada com uma colega recitando a altos brados “O Navio Negreiro”. O poema emocionou a todos nós. Impressionante seu poder de indignar e convocar para ação.

Devo ao João Daniel a dica para um dos melhores livros da temporada: “Castro Alves, um poeta sempre jovem”, do embaixador Alberto da Costa e Silva. É parte da recém-lançada coleção “Perfis Brasileiros” da Companhia das Letras.

Costa e Silva é um dos melhores especialistas brasileiros em África e no tráfico negreiro, além de grande conhecedor de poesia e literatura. A bagagem o torna o biógrafo ideal de Castro Alves, e ele analisa de maneira primorosa o modo como o talento vulcânico do artista baiano veio à tona num momento em que o escravismo brasileiro começava a ser questionado por intelectuais e estudantes, influenciados pelas correntes mais libertárias do liberalismo, do romantismo e do socialismo.

Castro Alves passou a infância e o início da juventude entre Bahia e Pernambuco, regiões que dependiam da escravidão para as tarefas mais cotidianas. A própria madrasta do poeta fez sua fortuna da herança que lhe deixou o primeiro marido, um traficante de escravos, embora Costa e Silva afirme que Castro Alves provavelmente alforriou seus cativos.

O poeta morreu muito jovem, com apenas 24 anos, e produziu a maior parte de seus poemas na década de 1860, quando o movimento abolicionista apenas engatinhava. Castro Alves foi fundamental para dar voz e legitimidade à causa e Costa e Silva reconstrói de maneira admirável o clima político e a sociabilidade daqueles tempos, onde se lia pouco mas as tradições orais – recitais, discursos, polêmicas em teatros – tornavam os poetas celebridades.

Poucos de nossos poetas foram tão orais quanto Castro Alves, que os contemporâneos descreviam como um ator nato, homem de grande beleza, carisma e uma voz poderosa, feita para os palcos. Tudo isso está no livro, bem como suas muitas paixões, em especial o amor trágico pela atriz Eugênia Câmara.

Costa e Silva examina em detalhes os poemas mais famosos de Castro Alves – meu favorito, “O Navio Negreiro” merece um capítulo inteiro – analisando a métrica, a “técnica cinematográfica” dos versos e até a visão distorcida que o poeta tinha da África – ele retratava o continente como formado por desertos, camelos e beduínos, algo que definitivamente não se aplica à região tropical da qual vieram a maior parte dos escravos que terminaram no Brasil. Mas que versos! Veja como ele chama a nós, brasileiros, a encarar nosso papel na escravidão:

Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio. Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto! ...
(...)
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!


A poesia lírica de Castro Alves talvez tenha ficado um tanto pesada para o gosto contemporâneo – não dá para comparar seus exageros aos versos intimistas e bem-humorados de Vinicius de Moraes, por exemplo. Mas alguns de seus poemas de amor ainda emocionam, como “Adeus”, a despedida derradeira que escreveu a sua musa Eugênia:

Não quero mais teu amor! Porém minh'alma
Aqui, além, mais longe, é sempre tua.


Para ler os poemas de Castro Alves, visite a Casa do Bruxo.

quarta-feira, junho 28, 2006

Geopolítica do Futebol



Já sabemos que o futebol explica o mundo.

Comentava as primeiras partidas da Copa com uma amiga filha de alemães que me disse que a seleção da Alemanha estava devolvendo o orgulho nacional aos cidadãos, algo que há muito não sentiam. Isso se reflete até no gesto (para nós banal) de carregar a bandeira do país durante os jogos.

Claro que ninguém é alemão impunemente, e a nação carrega nas costas o sentimento de culpa pela história de brutalidades na primeira metade do século XX. Mas “a maior Copa de todos os tempos” é uma vitrine impressionante para o despertar ou reforço dos nacionalismos. Mestre Eric Hobsbawm comenta o tema em entrevista à Agência Carta Maior: “Acho que só participar de uma Copa do Mundo é que faz as pessoas que vivem no Togo ou em Camarões se darem conta de que são cidadãos de seus países.”

Deve ter sido o mesmo em Gana. Pena que tenha cabido ao Brasil a tarefa de despachar para a casa a única seleção africana. Os jornais mostraram até a expectativa dos descendentes de brasileiros em Gana, netos e bisnetos dos antigos escravos que retornaram à África.

Hobsbawm diz não sentir simpatia pelos nacionalismos. Minha posição é bem mais ambígua. Gosto do espetáculo dos times com as cores de seus países, com as manifestações bem-humoradas dos torcedores e – por que não? – da oportunidade de extravasar a agressividade contra nações estrangeiras sem precisar declarar uma guerra ou atirar em alguém.

Penso mesmo que o futebol tem um papel importante em questões como o combate ao racismo, apesar das declarações infelizes da extrema-direita francesa. Ou talvez, por causa delas, forçando a sociedade a confrontar tais absurdos. Do tipo, ver a Frente Nacional do Le Pen torcendo para um time cheio de negros e árabes. Não é pouca coisa num momento em que o Velho Mundo enfrenta tantas tensões raciais.

Poucas vezes vi tanta festa no Brasil para uma Copa. Como torcedor, fico feliz. Como cientista político, acende a luz de alerta: precisamos compreender melhor como funciona o “poder macio” do excelente desempenho do nosso país no esporte. O assunto está se tornando um respeitável filão acadêmico, com vários livros sendo publicados sobre a relação entre futebol, identidade nacional, cultura e até guerras. Os militares que serviram no Haiti me contaram histórias fantásticas em como usam o esporte para promover a aproximação entre as tropas brasileiras e a população das favelas de Porto Príncipe.

segunda-feira, junho 26, 2006

Diário do Síndico: a guerra da água



O síndico é antes de tudo um forte (Euclides da Cunha, para seus vizinhos)

Dei um aumento de 25% ao faxineiro. Reforma social começa em casa. Se eu continuar nesse ritmo, até setembro coletivizo os meios de produção. Um cantador boliviano do Largo da Carioca ficou de me dar dicas sobre nacionalização.

Quinta-feira à noite eu estava calmamente deitado, relaxando com a leitura de um libelo contra o imperialismo americano. Minha paz foi interrompida por telefonema de vizinha me alertando para um vazamento. Desço até o pátio e vejo as cataratas do Iguaçu em versão reloaded, transplantadas (transaquadas?) para Santa Teresa.

Seguem-se minutos de caos nos quais a população local se posiciona no pátio
e ocorrem os seguintes fatos:
1) A constatação de que algo estourou na Caixa d´Água e é preciso fechar o registro.
2) A descoberta de que a válvula fica num lugar escuro e que ninguém no prédio tem lanterna
3) Uma revisão do ponto anterior ao se descobrir de que sim, há uma lanterna
4) A dissolução da válvula por excesso de podridão
5) O fechamento da válvula (ou, tecnicamente, do que sobrou dela) com uma chave especial

Tomei as medidas necessárias diante de tal crise, ligando imediatamente para os encarregados da obra, que me disseram só poder resolver o problema na segunda-feira. Coloquei em funcionamento o Método Aeromoça: sorria e emita uma declaração tranqüilizadora. Me dirigi à população com um Manifesto ao Mundo, cujas palavras imortais serão farol de esperança para lutas futuras:

Caros vizinhos,

na quinta-feira à noite tivemos um problema na caixa d´água e foi necessário fechar o registro. Já estamos providenciando o conserto que deve estar resolvido no mais tardar na segunda-feira.

Peço a todos que economizem água durante o fim de semana.

Cordialmente,
Maurício

Nos dias seguintes, descobri que a reforma da caixa d´água vai ser um pouco mais complicada do que pensava. Os dois mestres de obra que examinaram o local me declararam que nunca viram uma tão ruim (este foi o único trecho publicável de suas análises.) A bóia foi trocada de manhã. Horas mais tarde, estourou uma segunda bóia. Mas agora o Condomínio tem água novamente. Por enquanto, é claro, mas o que diabos é para sempre nesta vida?

Para a semana devo receber o orçamento que encomendei sobre uma mega-reforma no corredor, que inclui facilitar o acesso à caixa d´água. Ia pedir umas rampas para o Niemeyer, mas ele deve estar se achando depois de ser capa da revista do Globo sobre “brasileiros geniais”.

sábado, junho 24, 2006

Abrindo a Caixa Preta



Talvez a iniciativa mais importante na qual eu trabalhe atualmente seja o Comitê de Política Externa e Direitos Humanos. Trata-se de abrir a caixa preta do Estado brasileiro no que diz respeito a esses temas. Apesar de nosso país ser uma democracia, o acesso da sociedade às informações e ao processo decisório é muito baixo, inaceitável.

A Rede de Informações para o Terceiro Setor publicou uma reportagem sobre a criação do Comitê. Fui um dos entrevistados e falo dos impactos dos acordos internacionais de DH para a formulação das políticas públicas brasileiras.

Na segunda-feira foi inaugurado o Conselho de DH da ONU. As pessoas que trabalham na área, tanto no governo quanto na sociedade, estão divididas com relação ao novo órgão. Minha posição é de ceticismo, acredito mais na ação da imprensa e nas pressões sociais. Mas as Nações Unidas são fundamentais como fórum de denúncias e de articulação, bem como instrumento para exercer o que chamamos de shaming, o poder de causar embaraço a um governo acusado de violações de direitos.

Uma das demandas do Comitê é que o governo anuncie previamente como votará nas organizações internacionais. Com freqüência, é difícil até saber como nossas autoridades se posicionaram nas votações da ONU. Imaginem então influenciar as decisões!

Para mim, o ponto mais desafiador das atividades do Comitê é compreender melhor o funcionamento do Legislativo. Por isso, fui conversar com quem entende do assunto, meus mestres e amigos iuperjianos que estudam o Congresso. Tivemos uma excelente conversa sobre as ações do parlamento no campo de direitos humanos e política externa, sobre a atuação das comissões e sobre as mudanças no perfil dos deputados e senadores – ao contrário do que afirma o lugar comum, o parlamento hoje é bem mais democrático e representativo do que há algumas décadas.

Nas organizações da sociedade civil e/ou na academia, concordamos que a iniciativa do Comitê é importantíssima. Temos uma bela oportunidade de contribuir para um debate mais rico sobre política pública, valorizando a mais importante instituição da democracia.

quinta-feira, junho 22, 2006

Dilemas Nucleares



Nesta semana fui à Escola de Guerra Naval ouvir o historiador israelense Martin Van Creveld falar sobre as transformações no combate. Ele é polêmico: entre outras coisas, foi o autor da idéia de construir o muro que separa a Cisjordânia de Israel. Ao mesmo tempo, é um crítico ferrenho da “guerra contra o terror” de Bush. Mas sua opinião que mais provocou debate entre os militares brasileiros foi a defesa da proliferação nuclear. Para ele, o mundo ganharia em segurança se mais países tivessem bombas atômicas.

O debate não foi inventado por Creveld. Creio que o primeiro acadêmico a formulá-lo foi o cientista político americano John Mearsheimer, num artigo famoso “Back to the Future”, onde advogava a tese que a Europa pós-Guerra Fria seria tão instável e perigosa quanto no início do século XX, e que a única maneira para impedir isso seria dar bombas nucleares para os principais países do continente.

Grosso modo, esse também é o cerne da discussão entre dois colegas e compatriotas de Mearsheimer, Kenneth Waltz e Scott Sagan, com o primeiro defendendo mais armas nucleares como meio de garantir que os custos das guerras seriam altos demais, enquanto Sagan é contra. Quanto mais ogivas atômicas, maior o risco de acidentes, ou de que caiam em mãos erradas (terroristas ou líderes insanos). E aumenta, claro, a possibilidade de que sejam usadas em conflitos.

O principal instrumento de controle das armas nucleares é o Tratado de Não-Proliferação (TNP), do qual quase todos os países são signatários. O acordo foi proposto conjuntamente por EUA e URSS em 1968, em plena Guerra Fria. Surpresos? Não é para tanto. As cláusulas proíbem que Estados que ainda não tenham bombas atômicas desenvolvam essa tecnologia, enquanto oferece vagas promessas de que um dia os países que já as possuam se livrem delas. O embaixador brasileiro Araújo Castro dizia que o TNP era um tratado discriminatório que queria promover o “ congelamento do poder mundial”. Fechar o clube nuclear.

O Brasil só assinou o TNP em 1998, quando ele já era inútil, pois nosso país assumiu nos dez anos prévios três compromissos que vetam o desenvolvimento de armas nucleares: 1) O acordo quadripartite entre Brasil, Argentina, Agência Internacional de Energia Atômica e a Agência Brasileiro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares; 2) A Constituição de 1988; 3) O Tratado de Tlatelolco.

No mesmo ano em que o Brasil ratificou o TNP, a Índia explodiu sua bomba nuclear. Em 2006, assinou um importante acordo de cooperação atômica com os EUA – Washington quer se aproximar do país para contrabalancear a influência da China. Em anos recentes, temos casos de desenvolvimento nuclear no Paquistão, na Coréia do Norte e, claro, no Irã.

O único país a abdicar de suas armas nucleares foi a África do Sul da era pós-apartheid, como não cansa de se gabar o ex-primeiro-ministro De Klerk. Contudo, o professor Creveld perguntou-lhe o que tinha sido feito dos componentes das bombas. Foram para o lixo?

De Klerk limitou-se a rir.

terça-feira, junho 20, 2006

Saudades de Cuba


Está no ar uma onda de nostalgia pela Revolução Cubana, em três excelentes iniciativas culturais: o documentário brasileiro “Soy Cuba”, a exposição sobre arte cubana no Centro Cultural Banco do Brasil e a publicação do livro “Cuba: uma nova história”, do inglês Richard Gott.

O documentário conta os bastidores do filme cubano-soviético “Soy Cuba: o mamute siberiano”, um épico sobre as lutas sociais da ilha realizado nos anos 60. Os encontros e desencontros dos artistas dos dois países receberam olhar sensível do diretor Vicente Ferraz, no qual se ressalta a admiração profissional pelas técnicas inovadoras que desenvolveram, e também a simpatia humana e política por um tempo em que cineastas e atores acreditavam que podiam mudar o mundo e transmitir uma mensagem humanista. Bom complemento é o documentário “Rocha Que Voa”, de Eryk Rocha, que fala do periodo que seu pai Glauber passou em Cuba.

A exposição sobre arte cubana está no CCBB do Rio de Janeiro e é um painel fascinante por cem anos de pintura e escultura da ilha, das telas sensuais do modernismo à arte pop-política da Revolução. As obras contemporâneas são mais sombrias e tratam da emigração em massa e das dificuldades econômicas do chamado “período especial”, no qual o país precisou aprender a se virar sem o patronato da falecida URSS.

Por fim, o livro de Gott é uma síntese objetiva e competente da história de Cuba, do início da colonização espanhola até os dias atuais. Aprendi muito sobre a ascensão de Fulgêncio Batista – personagem bem mais interessante do que o esteriótipo do ditador latino-americano clássico; sobre os movimentos sociais que antecederam a Revolução e me surpreendi com a influência cubana nas guerras africanas e na queda do apartheid da África do Sul, bem maior do que eu pensava.

A cereja do bolo é a análise da situação de Cuba na última década e meia, com dados impressionantes sobre a tragédia econômica do país e a substituição do açúcar pelo turismo como principal indústria da ilha. Gott também examina o aumento dos movimentos de dissidência e contestação, particularmente aqueles ligados à Igreja Católica. Creio que é o primeiro historiador a escrever sobre a nova geração de líderes cubanos que na prática administram o país há alguns anos, com Fidel Castro cada vez mais afastado do cotidiano do governo. – pessoas como o diplomata e político Ricardo Alarcón.

Visitei em Cuba em 2001 e sou um apaixonado pelo país. Mas não fiquei otimista com o que vi. Parafraseando Drummond, o socialismo é apenas um slogan na parede – e como dói! Penso também nos versos que W.H. Auden escreveu durante a guerra civil espanhola:

We are left alone with our day, and the time is short, and
History to the defeated
May say Alas but cannot help nor pardon

domingo, junho 18, 2006

Surfando a Onda Democrática


Sábado dei uma palestra sobre “A Onda Democrática e as Crises Políticas na América Latina” em um pré-vestibular comunitário na Baixada Fluminense. O convite veio de um amigo querido que é aluno por lá e foi reforçado pela minha experiência pessoal – o primeiro lugar em que lecionei foi exatamente um pré desse tipo e tenho ótimas recordações dos três anos em que trabalhei nele.

Meu argumento: a América Latina vive uma onda democrática, com a mobilização política de grupos tradicionalmente marginalizados (p.ex., índios). No entanto, essas mudanças positivas são ameaçadas pela dificuldade das instituições do Estado e dos partidos em atenderem as novas demandas, e também pela ausência de transformações significativas na economia, com a persistência de altas taxas de desigualdade e desemprego, mesmo quando o PIB cresce. Há riscos de ascensão de lideranças carismáticas, mas sem compromisso com a democracia. Ilustrei os pontos com histórias do meu trabalho pela América Latina, contando episódios que vivi na Argentina, Chile, Equador e Venezuela.

Falei por uma hora – nenhum palestrante é interessante por mais do que esse período – e em seguida tivemos um debate riquíssimo, que durou hora e meia, com os alunos me questionando sobre o governo Chávez, a nacionalização boliviana, os protestos estudantis no Chile, a vitória de Uribe na Colômbia, o zapatismo no México e o retorno do nacionalismo na América Latina. Fiquei muito, muito bem impressionado com o grau de informação e reflexão das perguntas, elas me forçaram a pensar em vários aspectos do tema.

Chamei a atenção dos estudantes para o fato de que eles são uma parte importante da onda democrática, das lutas sociais por acesso à educação, e que terão papel de destaque em suas comunidades e na própria universidade – a torre de marfim tem que ser demolida, e a reflexão teórica precisa se democratizar e se voltar para os problemas do povo brasileiro. Acredito que saímos dali bastante esperançosos e já me perguntaram se eu toparia voltar. Claro que sim! É bom sentir-se parte de um movimento amplo, maior do que as dificuldades cotidianas. Mesmo que os obstáculos sejam enormes, fica o sentimento de ação e de comunhão.

Outra novidade: a Aeronáutica selecionou meu artigo "Saindo do Dilema: a cooperação Brasil-Argentina à luz da teoria dos jogos" para a Biblioteca Virtual de Defesa Nacional, que está em preparação e irá disponibilizar diversos textos sobre o assunto.

sexta-feira, junho 16, 2006

Notícias de Uma Guerra Particular



Durante o evento no Exército, comprei “A Guerra do Iraque”, do respeitadíssimo historiador militar inglês John Keegan. Tinha visto o livro à venda no exterior, mas não sabia que havia saído em português. Keegan foi favorável à invasão do país de Saddam Hussein, principalmente para eliminar um risco à segurança do Oriente Médio. Embora essa posição prejudique sua análise política, principalmente no que diz respeito às divisões na União Européia, seu estilo continua soberbo.

Keegan começa com um panorama da história do Iraque nos últimos 50 anos, ressaltando que o país foi uma construção artificial dos britânicos, que reuniram três províncias do Império Otomano capturadas na Primeira Guerra Mundial, cada uma com sua predominância étnico-religiosa: curda, xiita, sunita. O historiador examina a ascensão do Partido Baath, nacionalista e secular, e mostra como Hussein subiu na hierarquia partidária, principalmente como capanga e pistoleiro.

Além da guerra atual no Iraque, Keegan narra de maneira sucinta os dois conflitos anteriores: o do Golfo (1990-1991) e o Irã-Iraque (1980-1988). Este último, sobretudo, está muito bem explicado, inclusive por que o ataque de Hussein à Revolução Islâmica tinha chances razoáveis de dar certo, devido aos expurgos que os aiatolás fizeram no Exército. No fim, nenhum dos países teve ganhos territoriais, mas as perdas humanas e materiais dos iranianos foram bem maiores.

O mais interessante, claro, é a análise do conflito atual. Keegan entrevistou oficiais e comandantes da guerra e revela que os americanos subornaram vários generais iraquianos para não lutar, o que ajuda a explicar os altíssimos índices de deserção – já tinha ouvido essa hipótese discutida no Exército brasileiro, ano passado, e sabia que a mesma estratégia fora utilizada no Afeganistão (como revelado por Bob Woordard no seu “Bush em Guerra”). Há análises detalhadas sobre o uso eficiente que os EUA fizeram de sua logística, do poder aéreo e boas descrições dos combates com os guerrilheiros muçulmanos que foram a principal força de resistência às tropas estrangeiras.

Keegan distingue o chamado “modo britânico de guerrear”, que tem menos recursos tecnológicos e materiais porém aposta mais no enfoque político, além de ter melhor conhecimento do Oriente Médio (décadas de ação na região) e experiência em contra-insurgência por causa da Irlanda do Norte. Ajuda a entender porque os britânicos conseguiram evitar escândalos como Abu Grahib, Faluja e Haditha.

O livro foi publicado em 2004 e é notável que Keegan tenha subestimado de modo tão grande os riscos da rebelião contra a ocupação anglo-americana no país, até porque ele narra a revolta de 1919 contra os britânicos com elegância e objetividade. Ele menciona apenas alguns erros das autoridades de ocupação, como desmantelar as forças armadas e a polícia, além de enfraquecer por demais o serviço público.

Os resultados da insurgência são os que vemos cotidianamente. Tivemos dois fatos importantes nos últimos dias:

1) A revelação do massacre de Haditha, no qual fuzileiros navais americanos mataram 24 civis inocentes, em represália a um ataque que sofreram no vilarejo onde as vítimas moravam. Não se via esse nível de selvageria desde o Vietnã. O caso só veio à tona graças a ação corajosa do estudante de jornalismo Taher Thabet, que filmou os resultados da chacina e os repassou a uma entidade de direitos humanos.

2) A morte do principal líder da Al-Qaeda no Iraque, Abu Musab al-Zarqawi, o maior sucesso para as forças americanas desde a prisão de Saddam Hussein. Receio que essa vitória tire o massacre das manchetes americanas.

quarta-feira, junho 14, 2006

Comércio Internacional e DHs

Nos últimos dois dias participei de um excelente seminário na PUC-Rio, sobre “Comércio, Desenvolvimento e Direitos Humanos – articulações internacionais, perspectivas do sul e contexto brasileiro”. Foi um dos melhores eventos acadêmicos dos quais participei em muito tempo. A organização foi do Núcleo de Direitos Humanos daquela universidade, que reuniu cerca de 30 pessoas: pesquisadores brasileiros e estrangeiros, representantes do governo e de ONGs. A maioria era de advogados, mas também havia economistas, sociólogos e cientistas políticos.

Durante muito tempo comércio e DHs viveram em “isolamento esplêndido”, mas isso começou a mudar, na medida que muitos ativistas de direitos humanos têm exercido pressão crescente para que a OMC leve em conta problemas sociais em seus acordos e mecanismos de resolução de controvérsias. Houve conquistas importantes, como a Declaração de Doha sobre saúde pública (ligada a luta contra a AIDS e à fabricação de medicamentos genéricos) e decisões relevantes que incorporam preocupações sobre meio ambiente.

È necessário conhecer melhor os mecanismos da organização. Fiquei especialmente interessado na cláusula de “moralidade pública”, que impõe restrições a produtos que ferem os chamados bons costumes. Ela é usada principalmente para pornografia, mas pode servir de base, por exemplo, para proibir itens fabricados com trabalho escravo ou mão-de-obra infantil, uma vez que tais condições degradantes vão contra os valores sociais. Também gostei dos debates sobre “direito ao desenvolvimento” e até pedi a uma das palestrantes que me envie sua tese de doutorado recém-defendida, que foi sobre esse tema.

Contudo, há várias polêmicas. Diplomatas e outros negociadores do governo brasileiro ressaltam que os DHs podem ser usados na OMC como pretexto para encobrir interesses econômicos ou impor medidas restritivas e protecionistas. Isso é verdade, mas penso que o movimento contrário é mais forte e que os DHs podem ser importantes instrumentos de desenvolvimento para países como o Brasil, sobretudo no que toca aos direitos econômicos e sociais.

Fui um dos palestrantes do seminário. Junto com uma colega, falei sobre “Direitos Humanos e Desenvolvimento”. Analisamos uma série de resoluções da ONU, desde a Conferência de DHs de Teerã (1968) que trataram do tema. Em resumo, o desenvolvimento é considerado pelo sistema das Nações Unidas tanto como um direito quanto como um pré-requisito para o exercício dos DHs. Em seguida abordamos os economistas que ampliaram a noção de desenvolvimento, abandonando o enfoque centrado no crescimento do PIB e abordando-o como um processo de consolidação de qualidade de vida, participação política, segurança social etc. Gente boa, do quilate de Galbraith, Celso Furtado e Amartya Sen.

Depois desse resumo conceitual, analisamos a situação do Brasil, a partir de uma ampla pesquisa sobre participação social no governo Lula, que realizamos entre 2003 e 2005. Mostramos que na prática as autoridades brasileiras atuam com concepções de desenvolvimento retrógradas e cerceadoras de direitos, incluindo o da participação popular nas decisões políticas. Claro que a retórica é diferente, mas a distância com relação à prática é muito grande.

O convívio social durante o seminário foi excelente, com muitos jantares, almoços, bate papos e muita gente legal e interessante. Revi bons amigos e fiz novos. Ouvi ótimas histórias sobre as negociações internacionais do Brasil e conheci várias iniciativas acadêmicas relevantes, com as quais irei colaborar. A PUC vai organizar um livro a partir do seminário e contribuirei com um artigo baseado na palestra que apresentei.

terça-feira, junho 13, 2006

Free Zone




Você compraria carros usados de seu inimigo?

“Free Zone”, novo filme do israelense Amos Gitai, conta a história de três mulheres de nacionalidades diferentes cujas vidas se cruzam na corrente de ódio e interdependência econômica do conflito no Oriente Médio. O resultado é um interessante ponto de vista feminino sobre o furacão político da região.

Rebeca, interpretada por Natalie Portman (atriz nascida em Jerusalém) é uma turista americana em Israel, que entra em crise após romper o noivado. Ela acaba no táxi de Hannah (Hannah Laslo, popular comediante israelense, premiada em Cannes por seu desempenho neste filme) que tem negócios a resolver na Jordânia. “Me leve com você”, ela pede. As duas embarcam numa viagem à Zona Livre jordaniana, uma área de livre comércio onde Hannah tem uma complicada pendência comercial a resolver com a palestina Laila (Hiam Abbass).

Nenhuma das três mulheres é ativista política, mas o conflito árabe-israelense está presente o tempo todo e se intromete em seu cotidiano. Rebeca, filha de pai árabe e mãe americana, está em busca de uma identidade e acha que não pertence a lugar algum. Hannah passa por dificuldades econômicas porque as duas Intifadas (as revoltas palestinas contra a ocupação israelense) a privaram da mão-de-obra barata para sua pequena empresa e diminuíram o fluxo de turistas. Laila passa por um relacionamento conturbado com o enteado, que flerta com o radicalismo islâmico.

O filme é o melhor de Gitai em muitos anos, mas aviso que não é para todos os gostos. O cinema do Oriente Médio tem um ritmo bem mais lento. Por exemplo, a longa seqüência inicial mostra a personagem de Natalie chorando durante uns 5 ou 10 minutos enquanto ao fundo toca uma música que parece uma canção popular no estilo “A Velha a Fiar”, mas no que fim se mostra um libelo contra o ciclo vicioso de ódio - tudo a ver com a mensagem do filme.

Fiquei impressionado com as mensagens agressivas a “Free Zone” nos fóruns de discussão na Internet. Parece que o público está tão acostumado ao formato be-a-bá do cinema convencional que perdeu a sensibilidade para assistir a filmes que sejam mais questionadores e abertos. Em Amos Gitai o Gorpo não aparece no fim para dizer ao espectador o que foi aprendido na sessão.

domingo, junho 11, 2006

Chávez Sem Uniforme



O título soa como uma música do Village People. Mas “Hugo Chávez Sem Uniforme”, dos jornalistas venezuelanos Cristina Marcano e Alberto Barrera é o melhor livro sobre a conturbada trajetória do presidente. Acaba de ser publicado em português pela Editora Gryphus.

É difícil ser objetivo com relação a Chávez, mas os autores chegam perto. Não louvam o comandante, nem o atacam em panfleto da oposição. O retrato é crítico: o biografado aparece como obcecado pelo poder, centralizador, pronto a demonizar quem discorde de suas opiniões. Mas também surge como líder carismático, grande comunicador e pessoa sinceramente preocupada com seu povo.

O livro é dividido em duas partes: a primeira e mais interessante conta a vida de Chávez desde a infância pobre em casa de chão de terra, na província de Barinas, até sua eleição como presidente. A segunda traça um panorama de seu governo.

Os fatos principais da juventude de Chávez são bem conhecidos dos especialistas. O gosto por esportes e leitura, a paixão pela história da Venezuela, com foco em Bolíviar e em Ezequiel Zamorra (líder camponês e rebelde, espécie de Zapata local). Marcano e Barrera iluminam o período mostrando como Chávez forma sua sensibilidade política convivendo com militantes da esquerda radical: seu irmão Adam, intelectuais e ex-guerrilheiros vinculados a dissidências do Partido Comunista.

Mas os anos de academia militar são marcados pela dedicação à profissão, na qual por muitas vezes será elogiado como modelo. Parte da primeira geração de oficiais treinados no Plano Andrés Bello, reforma curricular que introduziu humanidades e ciências sociais nas escolas das Forças Armadas, criando levas de tenentes com boa formação intelectual, vindos de famílias pobres ou remediadas, que contrastavam seu profissionalismo com a corrupta e decadente elite do país, tanto civil quanto militar. Situação explosiva, semelhante a do tenentismo no Brasil.

Lá como cá, deu em golpe. O livro tem descrições primorosas do crescimento da conspiração em meio à profunda crise da Venezuela dos anos 80, que culminou na revolta popular do Caracazo (1989), duramente reprimida. Estava aberto o caminho ao levante militar. Chávez desponta para a fama na fracassada intentona de 1992, com o famoso discurso na TV, obra-prima retórica, onde diz que a luta está encerrada “por enquanto” e afirma que assume a responsabilidade pelo ato. Expressão raríssima em nossa América.

Chávez vira o objeto de culto da população, desenvolvendo sentimentos messiânicos. Não faltam anedotas de seu novo status como sex symbol, que culminam na dissolução de seus dois casamentos e em inúmeros casos, reais ou imaginários. O misticismo, a obssessão com a morte por traição.

A segunda parte do livro, que aborda a presidência de Chávez não é tão boa. Os autores sofrem do principal vício dos repórteres políticos: concentram-se na disputa pelo poder, mas têm dificuldades em analisar políticas públicas. As intrigas, marchas e traições do presidente e seus aliados são bem narradas, mas o livro peca no exame das principais linhas de ação de Chávez: os programas sociais, a política externa, a criação da Telesur e a luta pelo controle da gigantesca estatal petroleira, PDVSA.

E vem ai o próximo capítulo: um estúdio de cinema. Será que em breve vamos ter a saga de Bolívar nas telas?

sábado, junho 10, 2006

O Fim de West Wing



Política é para nossa geração a mais nobre das aventuras
John Kennedy

Ontem foi exibido no Brasil o último capítulo da série The West Wing, que chegou ao fim após sete anos retratando o cotidiano da Casa Branca e a rotina dos assessores presidenciais. Foi sem dúvida um dos melhores programas de TV já realizados, vencedor de inúmeros prêmios por seus roteiros impecáveis e atuações brilhantes.

Admiro o respeito que os EUA demonstram por suas instituições no cinema e na TV. West Wing é quase religiosa em sua veneração pela Presidência e pela Constituição – não por acaso os cientistas sociais americanos, como Robert Bellah, falam da “religião cívica” que inspirou a formação do país. In God – and George Washington, and Thomas Jefferson – we trust.

É evidente que muito desse sentimento é idealização exagerada que mascara realidades de corrupção e mesquinharia. A democracia americana sofre de males semelhantes aos que afetam a brasileira: financiamentos escusos de campanha, lobbies descontrolados que reforçam a concentração econômica, um mau sistema de representação parlamentar, etc.

Na série, todos os personagens – republicanos e democratas – são honestos em seus ideais e propósitos, mesmo quando cometem erros. A equipe do presidente pode discordar entre si, mas não há competição interna pelo poder, as punhaladas e traições tão comuns na vida política. Bruta diferença com relação à vida, mas Aristóteles já escreveu que a tragédia deveria retratar os homens melhores do que são na realidade, para despertar nossa piedade e terror.

Mas West Wing é um drama, não uma tragédia. Não há destino inexorável conduzindo os personagens rumo ao abismo. Eles agem em situações de crise, precisam fazer escolhas rápidas com poucas informações disponíveis, sofrem de estresse e abrem mão de pontos importantes em sua vida pessoal. Às vezes se arrependem, às vezes mudam de opinião e adotam outro rumo.

O último capítulo foi exemplar, centrado na cerimônia em que o presidente Jed Bartlet (Martin Sheen) passa o cargo a seu sucessor, o hispano-americano Mathew Santos, marcando assim o início de uma nova era política. Mas estamos numa democracia sólida, que não precisa de Messias. Há tradições, rituais e instituições que governam os homens e ditam as regras do jogo. Ao fim, os antigos ocupantes do poder retornam à vida privada como cidadãos comuns, exemplificado pela chefe de gabinete, C. J. Cregg, que deixa a Casa Branca a pé e é abordada por um homem na rua “Você trabalha aí dentro? Deve ser incrível!”. Ela responde que não trabalha e se afasta lentamente.

Alguém sabe o que a Warner fará com a série? Reapresentará as temporadas antigas? Tirará o programa do ar?

sexta-feira, junho 09, 2006

Sociedade Brasileira e Missoes de Paz



Anteontem dei palestra na Escola de Comando e Estado-Maior do Exército. Falei sobre as posições da sociedade brasileira com relação à participação do Brasil em missões de paz da ONU e outras operações multinacionais. Fui a convite de um instrutor da ECEME que é meu aluno na pós-graduação e o debate fez parte de um ciclo de estudos estratégicos que ocorreu na Escola.

A maior parte da platéia era formada por militares de média e alta patente do Exército: majores, coronéis, generais. O que disse a eles? Ressaltei que a redemocratização, a abertura econômica e as mudanças na tecnologia aumentaram o número de atores sociais brasileiros interessados em política externa e relações internacionais – empresas, ONGs, imprensa etc. Isso faz com que a ação do Brasil no exterior se dê num quadro mais complexo, com mais interesses envolvidos. Aumenta o risco de conflitos, mas também as oportunidades de cooperação.

Fechei minha fala contando a história de um rapaz que me disse em reunião na África do Sul que para ele o Brasil era a própria imagem internacional da solidariedade, um país-irmão. Destaquei que irmãos são tratados com carinho e afeto, mas também se espera mais deles do que de um amigo ou vizinho, nosso país tem o desafio de ser uma força favorável à cooperação e à paz nas relações internacionais de um mundo turbulento.

No debate que se seguiu, a maioria das perguntas dizia respeito ao modo como a imprensa cobre a participação brasileira. Critiquei bastante essa atuação, afirmando que a mídia tende a simplificar crises internacionais complicadas e acompanha os interesses brasileiros de maneira esporádica e episódica, em geral concentrando-se nos momentos de tragédias ou explosões políticas. Ressaltei a importância crescente da imprensa alternativa, como aquela que se expressa pelos blogs, onde com freqüência é possível encontrar análises mais interessantes do que aquelas publicadas na grande imprensa (se você duvida, cheque aí ao lado os sites do Biscoito Fino, Sérgio Leo, Sérgio Dávila e Tordesilhas)

Fui muito bem recebido na ECEME, os militares frisaram todo o tempo o quanto é importante o diálogo com o mundo universitário. Conversando com os generais e coronéis, ficou claro o quanto temos em comum em termos de preocupações com o fortalecimento das instituições brasileiras, da ação do Estado. Foi muito interessante trocar idéias com oficiais que estiveram em missões de paz na África, no Haiti e em Timor Leste. Saí com convites para participar de outros eventos na Marinha e preparar novos estudos para o Exército. Poucas vezes vi meu trabalho tão valorizado. Acho que é o início de uma grande amizade com as Forças Armadas.

Ah, sim. Em algum momento de uma semana agitada, completei 28 anos de idade. Achando que a vida está como deve ser.

segunda-feira, junho 05, 2006

Fotografando a Fronteira



Ontem me reuni com uma amiga e montamos o esboço de uma exposição fotográfica sobre a fronteira entre o México e os EUA. Minha amiga passou recentemente três meses nos Estados Unidos, com bolsa de cooperação acadêmica do governo americano. Fez cerca de 350 fotos da região de fronteira, das quais selecionamos 30 para nosso projeto.

Ele será apresentado como proposta à Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), um encontro anual dos colegas de área que acontece em outubro. Em geral na cidade de Caxambu, Minas Gerais. A idéia é depois levar a mostra para alguma universidade aqui do Rio. Escreveremos um pequeno ensaio para acompanhar as imagens.

A fronteira México-EUA tem cerca de 1125 Km, dos quais 180 Km estão separados por muros. No estado do Arizona, são dois muros e um fosso. O governo Bush apresentou um novo plano para fronteira que prevê a extensão do modelo Arizona para toda a região, aumento nos efetivos da patrulha fronteiriça e uso de militares para apoiá-la.

As imagens registradas por minha amiga contam um pouco da conturbada relação norte-sul que se desenrola por ali. Americanos atravessam para Tijuana em busca de bebidas, remédios e prostituição. Tudo mais barato e mais fácil do lado mexicano. Playground para as taras e vícios dos gringos supostamente puritanos.

Também há algumas fotos de mexicanos tentando atravessar para o lado americano e sendo capturados pela polícia. Mas prefiro os flagrantes cotidianos, como a rua de Tijuana cujas casas dão vista para o sonho americano, apenas alguns metros - e muros - distante. Há uma bela foto de um grupo de mexicanos olhando do alto da colina uma nova seção do muro sendo contruída, para dentro do mar.

Outro ponto: a inter-dependência ambiental da fronteira. México e EUA compartilham um lençol freático. Do lado americano, está preservado por um parque natural, mas não há nada semelhante na zona mexicana. Resultado: poluição, erosão e deterioração generalizada. É preciso cooperação entre os dois países caso queiram meio ambiente preservado na fronteira.

sábado, junho 03, 2006

A Revolução dos Pingüins



Há uma visão generalizada do Chile como um país conservador, mais alinhado aos EUA do que à América Latina. Compartilhei de muitas dessas opiniões, mas chegou a hora de rever os (pré)conceitos, porque os acontecimentos recentes além dos Andes apontam para uma sociedade dinâmica, viva e com lições importantes para a democracia no continente.

Consideremos a “Revolução dos Pingüins”, como os estudantes secundaristas chilenos são conhecidos devido à cor do uniforme. Cerca de 800 mil jovens envolveram-se em paralisações e protestos, exigindo passe livre nos ônibus e melhora da qualidade do ensino e da infraestrutura das escolas. O número impressiona em qualquer lugar e é incrível num país com apenas 16 milhões de habitantes.

A revolta estudantil mobiliza jovens de 15, 16, 17 anos, a primeira geração a crescer após a redemocratização chilena, iniciada em 1990. Quando estive em Santiago me diziam com freqüência que a juventude do país não se interessava por política e se importava apenas em suas questões individuais. Balela. O que ocorria é que não se sentiam representados pelos partidos e associações tradicionais. O Fórum Social Chileno foi interessantíssimo e contou com participação majoritária de jovens – fico feliz em saber que muitos dos meus colegas do evento estão no movimento dos pingüins.

Os líderes dos estudantes tomaram as ruas três meses após a posse da presidenta Michelle Bachelet, do Partido Socialista. A polícia reprimiu os pingüins com violência, Bachelet, reagiu despedindo o comandante policial.

Hoje existem na América do Sul países com ampla mobilização popular e manifestações nas ruas: Argentina, Bolívia, Chile. A pressão força os governos a agir. No Brasil, Colômbia e Uruguai temos populações bem mais passivas, anestesiadas pela violência ou desiludidas pela corrupção e ineficiência do sistema político.

A retórica populista do presidente Lula, comparando-se sempre a um pai de família, é típica do quadro de uma cidadania pouco consciente e desmobilizada. Não imagino Bachelet respondendo aos estudantes dizendo-se mãe deles, receberia tremenda vaia em resposta. Mas nós, brasileiros, devemos gostar de sermos tratados como crianças, tanto que as pesquisas indicam que reelegeremos nosso Grande Pai no primeiro turno.

A Mosca Azul




Não sou fã incondicional de frei Betto. Gosto muito das suas Cartas da Prisão, do livro sobre educação popular em parceria com Paulo Freire, do perfil de Fidel Castro. Mas muito do que o frade dominicano escreveu sobre o PT e Lula é bastante ruim, visão maniqueísta da política. “A Mosca Azul – reflexão sobre o poder”, é sua obra mais recente. Belo acerto de contas de frei Betto com seu histórico de 40 anos de ativista de esquerda. O ponto de partida é a frustrada experiência do autor no governo Lula, onde ocupou por dois anos o cargo de coordenador de mobilização social do Fome Zero.

O melhor do livro são os capítulos sobre a formação das Comunidades Eclesiais de Base nos anos 70, e de como essa mobilização da Igreja popular foi a base para o renascimento do movimento sindical e para a fundação do PT. A descrição de seu primeiro encontro com Lula impressiona, bem como as dificuldades da esquerda marxista em entender aquele líder operário carismático.

Há episódios saborosos, como o convite que um FHC recém-retornado do exílio faz a frei Betto fundar um partido socialista no molde europeu, em reuniões regadas a vinho chileno. O dominicano responde que não, que prefere continuar com o movimento católico de base. Fez bem: os sonhos Quartier Latin do príncipe dos sociólogos terminaram no abraço dos coronéis mais reacionários do país.

O pior do livro é que frei Betto simplesmente não consegue criticar Lula e só se refere ao PT de maneira idealizada. Parece que o partido era um poço de pureza até a eleição de 2002, e que os problemas posteriores se deram unicamente por causa de desvios individuais, de pessoas que fraquejaram diante da ambição, cobiça etc. E tome retórica de sacristia contra consumismo, culto ao corpo, sexualidade na mídia, por aí vai.

Aqui e ali há passagens lúcidas e precisas. Por exemplo: “Não é a corrupção que mais ameaça o PT. É o risco do partido não cumprir seu papel histórico de agente da transformação social.” Ou a constatação de que perdeu muitos amigos de militância “não apenas à direita, mas sobretudo à indiferença”.

As recomendações do livro são no sentido de fortalecer a autonomia dos movimentos sociais, com muito trabalho de base. É consenso entre os ativistas, mas a prática é complicada. Falta povo na rua, falta pressão sobre o governo. Quem sabe importando uns estudantes chilenos e uns índios bolivianos...
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