domingo, dezembro 31, 2006

Para Terminar 2006

“Não vamos ficar neste café, é muito perto da rua e podemos levar um tiro”.

Assim me recomendava uma amiga, numa pacata noite de Ipanema em meio aos ataques terroristas que atingiram o Rio de Janeiro nesta semana. Procuramos um restaurante um pouco mais protegido e jantamos ouvindo as notícias sobre os mortos em mais esta carnificina estúpida na história da nossa cidade. Minha amiga acabou de voltar de uma temporada de um ano nos EUA e ambos comentamos sobre como morar no exterior nos fez pensar no muito que estamos perdendo no Brasil, e no Rio de Janeiro em particular.

Falamos da vida que a violência vai nos roubando, dos medos que vão se instalando, mas também dos problemas econômicos e de como nossos amigos e parentes estão se tornando cada vez mais autoritários e assustados diante da desagregação social do nosso país. Também está mergulhada num individualismo atroz, desconfiada de tudo e de todos. E como sempre no Brasil, aflora o racismo que está sempre latente e mal resolvido. Se eu fosse pobre, em particular morador de favela e/ou negro, ia querer distância dessa “classe média über alles”.

Em grande medida esse extremismo político é uma reação não só à violência, mas também o lamento frustrado de uma parcela da população que perdeu tudo o que diz respeito aos sonhos de ascensão material, e guardou apenas suas pequenas distinções sociais, como diplomas escolares e uma certa pretensão ao bom gosto.

Os jornais afirmam que o terrorismo carioca é fruto da luta do crime organizado contra as milícias paramilitares que têm se assenhorado das favelas, também mencionam conflitos com o novo governo estadual que tomará posse em alguns dias.

Sinceramente, sinto um certo alívio por retornar a Buenos Aires em alguns dias...

Outros planos para 2007: ainda tenho mais dois meses de permanência na Argentina, com muitas coisas para fazer. Leituras, entrevistas, passeios, viagens. Depois, cair pesado no trabalho de redação da tese. Espero terminá-la no fim do próximo ano.

A todos, um ótimo ano novo!

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Cemitério da Recoleta



A maioria das pessoas se assusta quando digo que em Buenos Aires moro bem perto do cemitério da Recoleta, posso ver os túmulos da varanda. “Que coisa mórbida!”, me dizem. Na realidade o cemitério é um lugar muito bonito e agradável, além de uma tremenda aula sobre a história da Argentina.

No aspecto físico, o cemitério é um quadrilátero de poucos hectares, com bastante área verde, que se pode percorrer sem pressa em cerca de meia hora. Nele estão enterradas quase todas as personalidades de destaque do país, como ex-presidentes (Sarmiento, Alvear, Pellegrini, Aramburu), escritores e artistas (Victoria Occampo, Bioy Cesares) e membros das famílias mais ricas e poderosas.

Há visitas guiadas gratuitas com guias que contam casos curiosos sobre os túmulos mais bonitos, ilustram alguns pontos interessantes da história argentina e mostram um tanto das paixões e conflitos que finalmente encontraram a paz entre as alamedas arborizadas. Dom Alfredo, meu guia, tem inclinações filosóficas: “Cemitérios são a fronteira física entre a vida e a morte. Não deixem de visitar cemitérios famosos, como o Pére Lachaise em Paris, é uma ótima maneira de aprender história”.

O túmulo mais famoso da Recoleta, sem dúvida é o de Eva Perón, com sua inscrição mística de “voltarei e serei milhões”. O cadáver de Evita só foi descansar ali três décadas após sua morte, depois de um périplo macabro de seqüestros políticos e perversões sexuais. Visitei o cemitério com uma amiga peronista que observou a vingança final de Evita: “A oligarquia a desprezou durante toda sua vida, mas na morte ela é a mais visitada deste cemitério, onde está enterrada toda a elite argentina.”

Por ironias da história, a poucas centenas de metros da senhora Perón está o túmulo do general Aramburu, líder do golpe militar que derrubou seu marido, em 1955. Ele ordenou que o corpo de Evita fosse sepultado na Itália, sob nome falso. Nos anos 70, Aramburu foi seqüestrado e assassinado por guerrilheiros peronistas, os Montoneros. Não satisfeitos, anos depois eles seqüestraram o cadáver, num de seus enfrentamentos com os militares e a direita peronista.

Ignoro as recriminações que seus fantasmas possam trocar à noite. Ás vezes a história e os cemitérios podem ser demasiados vivos e palpitantes, sobretudo na Argentina.

terça-feira, dezembro 26, 2006

San Telmo



Uma das coisas que faço nesta breve estada carioca é descarregar as fotos da câmera digital para o computador. Postarei algumas delas por aqui, principalmente as que mostram bairros e paisagens de Buenos Aires. Esta primeira mostra um lugar do qual gosto muito, San Telmo, na zona sul da capital argentina.

O bairro é bastante conhecido por sua feira, que ocorre aos domingos e é uma das atrações turísticas mais visitadas da cidade. Contudo, San Telmo foi para mim um amor à segunda vista. Haviam me recomendado a feira como o destaque local e não gostei dela, quase tudo à venda são bugigangas e quinquilharias. Demorei para entender que o grande barato de San Telmo é o próprio bairro e a atmosfera cosmopolita e agitada de seus domingos.

Buenos Aires é uma cidade de grandes avenidas, mas em San Telmo predomina outro estilo de arquitetura e urbanismo, com ruas estreitas, de paralelepípedos e um clima de mais intimidade que de certo modo me lembra meu bairro natal de Santa Teresa, no Rio de Janeiro.

O eixo da feira é a rua Defensa e um belo passeio é seguir por ela sem preocupação ou pressa, parando para ver os artistas de rua – músicos tocando bossa nova são dos mais populares – olhando as vitrines e barracas e entrando aqui e ali num antiquário ou café. Com direito a parar na praça Dorrego para um bom sorvete.

A foto que ilustra este post mostra uma das artistas que mais chamam a atenção em San Telmo, e que também se apresenta em outros pontos da cidade, como a calle Florida.Trata-se de uma moça loura, muito bonita, que toca um instrumento inusitado, parece um disco voador metálico. Segundo um amigo, é originário dos aborígines da Austrália. Ignoro como saiu dos desertos de lá para as ruas portenhas, mas é uma das belas histórias que se encontram por San Telmo.

Outra figura interessante que conheci no bairro foi César, um livreiro comunista que tem sua loja numa galeria quase na esquina da Defensa com Chile. Enquanto uma amiga buscava um presente para sua mãe conversamos sobre literatura e política: “Os turistas europeus sempre me perguntam porque há tanta polícia em San Telmo, mas os latino-americanos nunca se espantam com isso.” César não é um entusiasta da democracia argentina: “Nos dizem que agora temos participação, mas isso basicamente significa que podemos pegar o celular e reclamar da vida.”

A algumas quadras da livraria de César, as filhas de Bush foram furtadas, em plena feira. Um larápio driblou a vigilância do serviço secreto e levou a bolsa de uma delas, com celular e tudo. Claro que o fato virou motivo de inúmeras piadas, uma das diversões na universidade era imaginar os diálogos do ladrão ligando para a CIA ou para a Casa Branca.

Os tablóides afirmam que uma das filhas de Bush namora um rapaz argentino, que a teria transformado em torcedora do Boca. Resultado: um jornal publicou charges de Bin Laden com seus filhos, torcendo para o River Plate.

domingo, dezembro 24, 2006

Iluminados pelo Fogo


 Posted by Picasa

Iluminados pelo Fogo” é um excelente filme argentino sobre a guerra das Malvinas que não chegou aos cinemas brasileiras. Ausência inexplicável, pois se trata de uma produção excelente e emocionante. Comprei o DVD e assisti ao filme em casa. A história começa com Esteban cobrindo como jornalista a movimentação social na Argentina no auge da crise, e sendo testemunha do declínio das condições de vida do país. Quando um amigo com quem serviu na guerra tenta o suicídio, Esteban se vê às voltas com as memórias dos combates que tentou duramente esquecer e decide viajar às ilhas para fazer as pazes com o passado.

O roteiro mistura ficção com aspectos documentais, como imagens da época do conflito mostrando o entusiasmo popular e as declarações exaltadas do ditador Galtieri. As cenas de guerra são muito bem feitas e os combates noturnos chegam a assustar. O filme retrata as dificuldades enfrentadas pelos soldados argentinos, como fome, frio, mau tratamento por parte dos superiores, material inadequado etc. Embora defenda a causa da recuperação das ilhas, ataca o regime militar que torturou e matou sua própria população, além de envolver o país numa guerra trágica.

Outro mérito de “Iluminados pelo Fogo” é destacar a situação dos veteranos. Cerca de 300 deles se mataram, um número que equivale a quase metade dos mortos em combate. Os sobreviventes foram tratados como lembranças indesejáveis tanto pela ditadura quanto pelos governos democráticos que a sucederam. A exceção parcial é a Força Área, cujos pilotos eram bem treinados e tiveram excelente desempenho, ao contrário dos recrutas do Exército e da Marinha, arrastados para um conflito para o qual não estavam preparados.

Vale chamar a atenção também para a bela trilha sonora, assinada pelo cantor e compositor Leon Gieco. Sua canção “La Memória”, que fecha o filme, é de arrepiar:

Todo está guardado en la memoria,
sueño de la vida y de la historia.

La memoria despierta para herir
a los pueblos dormidos
que no la dejan vivir
libre como el viento


Feliz Natal e paz na terra, aos homens e mulheres de boa vontade.

sexta-feira, dezembro 22, 2006

Duas Vezes Junho


"Com que idade se pode comessar a torturar uma criança?"

Depois de um mës e meio enfurnado em livros acadëmicos, finalmente consegui tempo para ler um pouco de literatura. Comecei por uma pequena jóia, o romance "Dos Veces Junio", de Martin Kohan (foto) - está publicado em portuguës, mas é muito difícil de encontrar no Brasil.

A história é ambientada em dois dias nos quais a seleçäo argentina foi derrotada em partidas da Copa do Mundo. O primeiro em 1978, o segundo em 1982. Em ambos os casos, o esporte funciona como um símbolo para as perdas morais e políticas do país, pois o leitor que conhece a Argentina já deve ter notado que as duas datas ocorreram durante a terrível ditadura militar de 1976-1983.

O romance é narrado por um rapaz que serve o Exército como recruta em 1978. Ele é designado para ser motorista de um médico que trabalha num centro de torturas, avaliando a capacidade de resistëncia dos presos. O romance começa com o rapaz lendo a frase que inicia este post, e se escandalizando - onde já se viu um relatório militar com erro de ortografia!

A cena dá o tom para o resto do livro. Com seu apego às regras, seu silëncio e omissäo, o rapaz será cumplíce do assassinato sob tortura de uma presa política e do roubo de seu bebë recém-nascido pelo médico a quem serve.

Quatro anos depois, o rapaz estuda medicina e lë no jornal a notícia da morte do filho do médico, na guerra das Malvinas. Ele resolve entäo visitar o ex-superior e encontra o bebë roubado da prisioneira, que é criado como filho pela irmä estéril do médico.

O romance é um dos melhores tratamentos que vi na literatura sobre ditadura militar, tortura, impunidade e os silëncios que nos tornam cúmplices dos crimes mais terríveis. Retrato perfeito de muitos que se calaram na América Latina. E outra dica certeira de mestre Idelber. Obrigado.

Fico me perguntando se o presidente Lula diria as bobagens que anda dizendo sobre a ditadura militar brasileira se tivéssemos em nosso país uma nova geraçäo de artistas lidando com temas como esse. A bem da verdade, deveria ser responsabilidade dos políticos, mas em nossa América de instituiçöes frágeis, a cultura acaba assumindo muitas funçöes de representaçäo dos problemas sociais.

quarta-feira, dezembro 20, 2006

Y Todos Se Quedaran


Há exatamente 5 anos uma enorme manifestaçäo no centro de Buenos Aires foi reprimida a bala pela polícia, culminando num saldo trágico de cinco mortos, dezenas de feridos e na renúncia do presidente De La Rúa, que fugiu de helicóptero da Casa Rosada. A populaçäo indignada pelo corralito e pela crise gritava aos políticos: "Que se vayan todos". Näo foi o que ocorreu. Fazendo o balanço do que se passou, houve uma dança das cadeiras entre a elite política, mas os nomes tradicionais estäo todos por aí e o país continua a ser governado pela máquina partidária do peronismo.

Contudo, algo se transformou. A representaçäo política está muito mais fragmentada e a Argentina já näo é mais o sistema bipartidário entre peronistas e radicais. Surgiram vários pequenos partidos e coligaçöes, com poucos votos mas que säo uma espécie de baläo de ensaio do que pode vir a ser a nova política nacional.

A imagem dos políticos continua muito ruim. No domingo o Clarín publicou uma pesquisa de opiniäo que avaliava vários dirigentes. Numa escala de 0 a 10, nenhum conseguiu mais do que 5 (o presidente Kirchner näo foi avaliado, sua esposa ficou com quatro e uns quebrados).

As únicas figuras públicas que tiveram notas azuis foram líderes sociais de classe média - o piquetero D´Elia teve o índice mais baixo, retrato de uma classe média cansada de protestos e assustada com a mobilizaçäo política (e turbulenta) dos mais pobres.

Amanhä bem cedo pego o vöo de volta ao Brasil. Fico no Rio de Janeiro para as festas de fim de ano e seguirei postando sobre a temporada na Argentina, há um punhado de livros e filmes que quero comentar por aqui.

segunda-feira, dezembro 18, 2006

Diariamente

Na quinta-feira foi minha última aula do ano na Universidade Torcuato di Tella e hoje é a última vez que passo por aqui antes de voltar ao Brasil para as festas de fim de ano. Esta instituiçäo foi minha casa na Argentina durante apenas 45 dias, mas as emoçöes tëm seu próprio tempo e o que aprendi e senti neste período ficará comigo durante muitos anos.

Guardarei com carinho todos os pequenos detalhes da rotina na universidade. O trajeto do önibus da Recoleta a Belgrano, passando pelos parques e bosques de Palermo. As brincadeiras com o pessoal da biblioteca, enquanto lia os jornais e pesquisava para a tese. Os papos com a turma da secretaria e a riquíssima convivëncia com os colegas.

Os professores estiveram entre os melhores que tive na vida, só comparáveis à nata do Iuperj. Fiz dois cursos: relaçöes internacionais na América do Sul e economia política latino-americana (incluiu o México). Adorei ambos e saí com diversas inquietaçöes, com avidez de aprender e discutir. Näo apenas sobre a Argentina, mas também sobre Chile, Colömbia e outros países.

Também ficará a lembrança dos seminários dos quais participei, o formato de poucas pessoas em torno da mesa de reuniöes permitindo uma ampla troca de idéias um diálogo maravilhoso. Um bom formato para reproduzir em casa, preciso pensar mais a respeito disso. Quem sabe algo como os diversos modelos de integraçäo regional, de Bolívar à Comunidade Sul-Americana de Naçöes...

Voltarei à Argentina em janeiro e ficarei até o fim de fevereiro. Ainda tenho muito o que fazer: leituras, pequisa em arquivos, entrevistas. Näo faltará trabalho.

sexta-feira, dezembro 15, 2006

Dona Lia e as Geraçöes do Tango

Nesta semana foi Dia do Tango e por coincidëncia - näo sabia da data - fui visitar o museu dedicado ao gënero, uma exposiçäo interessante situada na Avenida de Maio. Estava com um casal de amigos brasileiros que estäo hospedados comigo e dali passamos pelo Café 36 Billares, alguns quarteiröes mais à frente, onde descobrimos que haveria um show gratuito com vários cantores de tango. Voltamos à noite para o espetáculo, que foi bom, mas o melhor de tudo foi ter conhecido dona Lia.

A casa estava cheia e dona Lia era uma simpática senhora de Rosário a quem oferecemos um lugar em nossa mesa. Ela adora o Brasil e já esteve em nosso país várias vezes. Estava justamente nos contando o quando admira a alegria da cultura brasileira quando uma velhinha na mesa ao lado nos deu uma bronca e pediu silëncio, porque queria ouvir o discurso de um dos músicos. Dona Lia sorriu irönica: "Esse mau humor é típico dos argentinos!".

Näo é, prova disso é a simpatia da nossa amiga. Ela comentou uma certa preocupaçäo com o futuro do tango, porque apenas os velhos se interessam pelo gënero. Já havia notado um certo desinteresse por parte dos meus colegas de universidade e isso ficou muito claro no show do café, onde eu e meus amigos éramos os únicos espectadores com menos de 30 anos. Na realidade, alguns clientes tinham mais anos do que nossas idades somadas...

Meu amigo fez o contraponto com o samba brasileiro, que já há alguns anos passa por uma renovaçäo e tem muitos adeptos entre os jovens. Claro que também há algo assim na Argentina, como a mistura de tango e música eletrönica do GoTan Project. Mas me parece que é numa escala bem mais reduzida.

Quanto a mim, näo sou realmente um fä de tango, embora goste dos mitos e do clima associados ao gënero. A noite foi interessante, mas a melhor música que escutei foram cançöes folclóricas da província de Jujuy. Cançöes que falavam de guerra e liberdade de maneira täo intensa que tive vontade de me alistar no exército de San Martin e cruzar os Andes para expulsar os espanhóis!

Dona Lia tem um apartamento para alugar na Recoleta, na esquina da Quintana com Rodriguez Peña. Prometi a ela divulgar o imóvel entre os amigos, portanto se alguém estiver interessado... É só entrar em contato.

quinta-feira, dezembro 14, 2006

Verbitsky


Uma das novidades mais estranhas do governo Kirchner é ver o jornalista Horácio Verbitsky moderando sua veia crítica e se alinhando ao oficialismo. A ediçäo argentina da Newsweek trouxe nesta semana uma boa entrevista com o veterano repórter, que ganhou destaque escrevendo livros sobre temas explosivos como torturas e assassinatos na ditadura militar (El Vuelo), as ligaçöes da Igreja Católica com o regime autoritário (El Silencio, Doble Juego) e a corrupÇao desenfreada no Menemismo (Robo para la Corona). Verbitsky também conquistou respeito como presidente do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), uma das ONGs que mais contribuíram para revelar as violaçöes de direitos humanos no regime militar.

Kirchner foi eleito presidente com apenas 22% dos votos, basicamente por sua atuaçäo anti-Menem e porque era um político de província, da remota Santa Cruz, sem envolvimento com as máfias e escändalos da elite nacional. Näo tinha um programa definido e precisava de apoio. Acabou se tornando o principal defensor da agenda de reparaçäo dos crimes da ditadura. É impressionante como essa questäo ganhou força em seu governo. Um marciano que chegasse à Argentina pensaria que o regime autoritário acabou há poucas semanas, apesar do fato ter ocorrido há mais de 20 anos.

A Newsweek chama Verbitsky de "o jornalista mais influente junto ao governo Kirchner" e lhe dá o crédito por ter inspirado várias medidas adotadas pelo presidente. Kirchner foi militante da Tendëncia, um setor de esquerda da juventude peronista nos já remotos anos 60 e 70. Mas nunca se envolveu com a luta armada. Fotos da ditadura inclusive o mostram em palanques ao lado de comandantes militares, embora no breve momento de euforia nacionalista pela ocupaçäo das Malvinas.

Talvez o maior triunfo politico de Kirchner tenha sido a exitosa renegociacao da divida externa. Mas persistem problemas economicos. A Argentina tem crescido a taxas altíssimas desde 2002, ou antes está recuperando os 20% do PIB que perdeu entre 1998 e 2001. Contudo, esse crescimento se dá de maneira desigual, concentrando renda. O pais hoje tem um fosso entre ricos e pobres quase täo ruim quanto o do Brasil, com uma significativa parcela de 10% da populaçäo vivendo na indigëncia.

A resposta do governo tem sido políticas sociais de assistëncia, como o Chefes e Chefas de Família. É semelhante ao nosso Bolsa Família, só que paga valores mais altos. Também há uma política (falha) de congelamento de preços, que näo tem conseguido deter a inflaçäo e provocou desabastecimento em algumas regiöes. A relaçäo com os movimentos sociais é o que descrevi no post sobre os piqueteros.

segunda-feira, dezembro 11, 2006

A morte e a morte de Pinochet



Augusto Pinochet teve duas mortes. A de ontem colocou fim a sua existëncia biológica nesta terra, onde espero que näo deixe saudades nem seguidores. A primeira foi mais lenta, começou em 1998, quando foi preso em Londres, e se estendeu por anos. Acredito que essa é que terá mais impactos para a política sul-americana.

Recordemos a história: Pinochet foi detido a mando de um juiz espanhol, num processo envolvendo tortura e morte de cidadäos daquele país no Chile, durante a ditadura comandada por Pinochet (1973-1990). Na época houve muito estardalhaço na imprensa sobre questöes ligadas à suposta violaçäo da soberania chilena. Pura bobagem. O Direito Internacional mudou muito após a Segunda Guerra Mundial, sobretudo no que toca às questöes de direitos humanos e o Chile havia assinado a convençäo internacional contra a tortura, que prevë exatamente esse tipo de açäo.

Contudo a questäo era complicada porque ao deixar o governo Pinochet impös uma série de exigëncias que muito enfraqueceram a jovem democracia chilena. Uma delas era lhe dar o cargo de senador vitalício, buscando imunidade contra processos judiciais pelos crimes que cometeu quando era ditador.

De 1998 para cá a vida jurídica de Pinochet se tornou bastante animada, näo apenas pela questäo dos direitos humanos mas também pelas descobertas de seu milionário esquema de corrupçäo. Ironicamente, muitos fatos vieram à luz graças à nova legislaçäo antiterrorista dos EUA, que permitiu devassas mais eficientes no sistema financeiro. Devemos a essa a Bin Laden e Bush.

Nos últimos 15 anos, a direita chilena manteve um desempenho eleitoral bom, em torno de 30% a 40% dos votos, ampliado por um sistema político que sobrerepresenta as zonas rurais, tradicional bastiäo dos conservadores. No entanto, os dois principais partidos da direita - UDI e Renovaçäo Nacional - se afastaram progressivamente da figura de Pinochet, fazendo campanha em cima do ideário econömico neoliberal e näo do autoritarismo.

Houve muitas ditaduras militares no Cone Sul. A de Pinochet näo foi a mais violenta - duvidosa glória que cabe ao regime argentino de 1976-1983. Tampouco foi a mais bem-sucedida economicamente. Apesar do mito do sucesso do modelo chileno, durante os anos Pinochet a economia cresceu em média 3% ao ano, bem abaixo do desempenho do regime militar brasileiro. O que destaca o regime de Pinochet foi seu caráter de ditadura personalística, mais típico dos autoritarismos da América Central e do Caribe (Somoza, Trujillo) do que da América do Sul.

Um legado medíocre, para um personagem idem.

sábado, dezembro 09, 2006

Entre Amigos

Sempre que pago o aluguel, aproveito para conversar com meus senhorios sobre política e cultura. É um casal binacional: um agrönomo argentino e uma professora chilena, exilada de Pinochet. Na semana passada o papo estava täo animado que eles me convidaram para jantar com a família. Passamos uma noite maravilhosa em Palermo, a conversa se estendendo madrugada adentro regada a bom vinho e à comida farta da mesa portenha.

Um episódio se destacou como exemplo da hospitalidade desta cidade. Minha senhoria estava me mostrando os arredores quando passamos por uma igreja onde se celebrava um casamento. Uma velhinha me parou para perguntar as horas e pelo meu sotaque percebeu que sou brasileiro. Resultado, me convidou para conhecer "a noiva mais bonita de Buenos Aires". "Ah, deve ser sua filha", brinquei. Näo era. E apesar da simpatia, tampouco merecia a descriçäo entusiasmada. Mas a cena ficou como marca do carinho que os argentinos tëm por nós, e que raramente correspondemos.

Outro bom espaço de amizade é a universidade, claro. Embora eu freqüente dois cursos, "minha turma" é a do segundo ano do mestrado, pessoas com quem tive uma afinidade automática. Nossos almoços e jantares säo dos melhores, bem como nosso convívio nos seminários acadëmicos. O formato desses eventos ajuda, em geral säo pequenos, entre 25 e 30 pessoas, ou até menos. Isso facilita o diálogo e a troca de idéias.

Igualmente boa está sendo a relaçäo com os professores. Uma agradabilíssima surpresa foi encontrar aqui a cientista política americana Kathryn Sikkink, uma das mais respeitadas especialistas mundiais em direitos humanos e relaçöes internacionais. Ela já era uma inspiraçäo para meus trabalhos na área e é incrivelmente simpática pessoalmente. Nossas conversas me deram várias idéias para pesquisas.

Fico pensando se a acolhida que tenho por aqui seria parecida se estivesse nos EUA ou na Europa. Sinceramente, acho muito difícil. Para além de toda retórica, existe de fato um sentimento de fraternidade latino-americana que é muito forte nas relaçöes pessoais.

quinta-feira, dezembro 07, 2006

Kirchner e os Piqueteros



Nos últimos 15 anos o desemprego e o trabalham informal aumentaram numa enorme velocidade na Argentina, como em outros países da América Latina. Muitas pessoas ficaram sem trabalho fixo e passaram a sobreviver como conseguiam, recolhendo sucata e lixo, guardando carros, montando cooperativas e clubes de trocas, etc. Durante a crise de 1998-2002 surgiram vários movimentos sociais a partir desses grupos, tais como assembléias de bairros, restaurantes comunitários, panelaços e bloqueios de ruas. Em geral säo conhecidos como piqueteros.

Tais movimentos foram criados à margem do sistema político e näo foram incorporados por nenhum partido, ao que contrário do que Perón fez com os sindicatos nos anos 40. Os piqueteros deram muito trabalho ao governo Duhalde (2002-2003) e tëm relaçöes difíceis com Kirchner, exemplificada pelo caso de Luís D´Elia.

D´Elia (foto) é um lider piquetero de Matanzas, área pobre e violenta na regiäo metropolitana de Buenos Aires. Ele vem do ativismo de esquerda nos anos 60 e se tornou uma figura pública pelo seu grande poder de mobilizaçäo, chegou a liderar protestos de quase 100 mil pessoas. O grupo de D´Elia passou a apoiar Kirchner, que o nomeou secretário de habitaçäo. Outros movimentos piqueteros ficaram na oposiçäo. Nesta quarta, por exemplo, houve trës marchas deles contra o governo, por diversas razöes e outros quatro protestos de grupos variados. Acho que é o novo recorde nacional.

A aliança de D´Elia com Kirchner foi interrompida há poucas semanas, quando o secretário foi exonerado após fazer uma incursäo pela política internacional, defendendo o Irä. O motivo: a justiça argentina pediu a captura de políticos e diplomatas daquele país, por terem planejado em 1994 o atentado terrorista contra a AMIA, a mais importante entidade judaica de Buenos Aires. O ataque deixou algo em torno de 100 mortos e 300 feridos.

O que levou D´Elia a esse gesto? Simples, o governo Chávez é um importante aliado tanto do Irä quanto dos piqueteros, a quem distribui dinheiro e bolsas de estudo. O embaixador venezuelano na Argentina achou que devia se meter na questäo da AMIA. Foi um erro grosseiro, que levou a sua demissäo por Chávez e a pedidos de desculpas do presidente venezuelano a Kirchner.

D´Elia saiu atirando e chamou alguns de seus ex-colegas de governo de "cipaios", o equivalente em portuguës a "entreguista", "traidor da pátria". A política argentina é a melhor novela do país.

quarta-feira, dezembro 06, 2006

Um Bom Destino


No fim de semana assisti a "El Buen Destino", mais recente lançamento do cinema argentino, que marca a estréia como diretora da atriz Leonor Benedetto. A trama aborda um grupo de amigos que se reúne no bar-título, numa cidadezinha de província. É um filme revelador de vários problemas sociais do país, talvez mais por seus defeitos do que pelas qualidades.

O elenco é encabeçado por Federico Luppi (foto), um bom ator que faz quase sempre o mesmo papel: o do intelectual idealista, meio derrotado pela vida, mas que mantém a pureza de seus sonhos. Neste filme ele segue o molde, na pele de um professor de história que enfrenta agressöes por um grupo de alunos de alunos adolescentes e arruaceiros, com ideologias racistas e extremistas.

O personagem de Luppi se encontra com amigos que sofrem de uma série de problemas, a maioria relacionado ao desemprego e/ou à queda brutal de seu padräo de vida, em funçäo da crise econömica. As situaçöes refletem os problemas clássicos: alcoolismo, dificuldades na relaçäo com a esposa, o lamento pelos tempos em que tudo era melhor etc.

O roteiro peca pelo sentimentalismo e pelo esquematismo. Quer a todo custo que o espectador se identifique com os amigos idelistas e puros, rejeitando a violëncia dos jovens que säo descritos como conformistas e "sobre-adaptados". Näo säo. Seu racismo e seu comportamento anti-social exprimem um descontentamento profundo com o mundo, que se destaca diante dos clichës do discurso do professor, que se queixa do humanismo perdido para o capitalismo selvagem. OK, e o que fazer depois?

O tema do "declinismo" é muito forte tanto na arte quanto nas ciëncias sociais argentinas, um questionamento constante sobre as causas da decadëncia sócio-econömica do país. Minha experiëncia por aqui inclusive me convenceu da importäncia de dar mais espaço a essa questäo em minha tese, porque é um elemento importante para explicar as transformaçöes políticas que quero analisar.

As tentativas de entender o declinismo resultaram em percepçöes importantes sobre a história argentina, em particular no que diz respeito a apontar as fragilidades do modelo de desenvolvimento nacional. Mas também signfica, em seus piores momentos, uma atitude derrotista diante da vida. Me impressiona a falta de confiança nas potencialidades deste país täo rico, com recursos naturais e capacidades humanas elevadíssimas. Mal comparando, é como um homem que perdeu um grande amor e precisa aprender a sorrir novamente para as mulheres bonitas que passam pela rua, em vez de chorar por uma que näo voltará nunca.

segunda-feira, dezembro 04, 2006

Bin Laden no Rio Uruguai


Nas livrarias de Buenos Aires está disponível um romance sobre uma guerra entre Argentina e Uruguai, que começa quando um grupo do país vizinho seqüestra o corpo de Gardel. A realidade é sempre mais estranha do que a ficçäo e o conflito argentino-uruguaio em torno das papeleras tomou proporçöes alarmantes e um tanto ridículas, envolvendo de supostos terroristas suicidas ao Exército uruguaio.

Recapitulemos os fatos: a empresa finlandesa Botnia anunciou planos de construir fábricas de celulose na cidade uruguaia de Fray Bentos, separada da Argentina pelo rio Uruguai. Na outra margem, a populaçäo reclamou afirmando que as águas seriam poluídas. O governo Kirchner apoiou os manifestantes e iniciou uma campanha para impedir a construçäo das papeleras. O conflito foi piorando na medida que os protestos argentinos fecharam várias vezes a fronteira entre os dois países e a Argentina sofreu derrotas diplomáticas internacionais importantes na Corte da Haia e no Banco Mundial.

Há alguns dias, o marido da secretária de Meio Ambiente da Argentina disse a uma jornalista americana que uma senhora idosa havia se oferecido para um atentado suicida contra a Botnia. Em circunstäncias normais a Bin Laden do rio Uruguai seria apenas motivo de piada, mas o governo Tabaré Vázques reagiu colocando o exército uruguaio para ocupar as papeleras e protege-las de eventuais ataques dos manifestantes argentinos, que ameaçam cruzar a fronteira e fazer justiça com as próprias mäos, com ou sem mulher-bomba.

A relaçäo entre Argentina e Uruguai atingiu seu pior momento desde que Perón falou em bombardear Montevidéu, nos anos 50. O turismo está prejudicado e as autoridades daquele país temem por um péssimo veräo. Ao mesmo tempo, näo é nada bom o envolvimento dos militares numa crise política desse porte. Com a história que temos no Cone Sul, näo se brinca com essas coisas. O que acontecerá se um soldado uruguaio matar um militante argentino?

Por que o governo Kirchner age deste modo? Discutimos o assunto na universidade e a conclusäo é que seu comportamento se explica por razöes de política doméstica: chegou à presidëncia com pouco poder e tentou de tudo para ampliar sua base de apoio. Viu nos manifestantes ambientais uma boa oportunidade para bancar o defensor do meio ambiente (ele näo tem tradiçäo na área) e impor uma posiçäo dura no plano internacional. Náo contou com a resitëncia ferrenha dos uruguaios e com a escalada do conflito, que parece ter saído do controle de todos os envolvidos.

Há poucas semanas chegou à regiäo um enviado do rei da Espanha, escolhido pelas partes para ser um intermediário na negociaçäo. Os jornais locais afirmam que Sua Majestade está preocupada e acha que seu prestígio pode sair abalado dessa crise. Com certeza! E só Alá sabe o que Bin Laden pensa do descrédito do terrorismo suicida...

domingo, dezembro 03, 2006

Premio America do Sul

Acabei de saber que ganhei o premio America do Sul de 2006, concedido pelo Ministerio das Relacoes Exteriores. No ano passado eu tambem tinha sido premiado, em terceiro lugar, com um estudo sobre integracao regional. Desta vez levei o primeiro premio, analisando os movimentos sociais e a luta pelos recursos naturais na Bolivia - o pais andino foi o tema do concurso deste ano.

O premio chega num excelente momento pessoal, claro, com a cabeca a mil por conta do trabalho de campo e da riqueza da experiencia de vida na Argentina. Eh mais uma confirmacao de como a escolha de pesquisar sobre a America do Sul foi uma decisao crucial para a minha carreira.

Bom, agora vou celebrar e avisar aos amigos. E amanha de manha estou novamente na universidade, para pesquisar para a tese. Ganhar premio eh bom, mas o trabalho continua!
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