quinta-feira, agosto 31, 2006

Amarcord

A marcha do exército de Brancaleone, que cantávamos enquanto marchávamos aos castelos do Piemonte.

O Caravaggio que vimos no vilarejo incrustado nos Alpes.

O passeio à beira do lago, na fronteira com a Suíça.

A noite em que o ônibus quase virou na floresta escura como conto de fadas, e saímos às gargalhadas, achando aquilo o máximo.

O melhor sorvete do mundo, provado em Pizzo, na Calábria, e a promessa de lá retornar no dia 12 de outubro de 2050.

A inundação do hotel de luxo por causa da banheira da nossa amiga.

As conseqüências trágicas de tentar cortar macarrão com faca numa cantina de Turim.

A psicose do nosso amigo que só falava com sotaque calabrês e apenas tirou o gel para ir à praia em Troppea.

A tardia descoberta da carta-trote aos venezuelanos.

Alla destra, abbiamo i portici.

Estas são algumas das lembranças da bolsa de estudos que tive na Itália, há 6 anos, e que foram refrescadas no jantar dos amigos bolsistas, na última sexta. Grazie mille, amici.

terça-feira, agosto 29, 2006

Mercosul: a integração dos direitos humanos



Há quatro meses foi lançado o Comitê Brasileiro de Direitos Humanos e Política Externa e fui convidado a participar e dar uma ajuda no que diz respeito ao Mercosul. Claro que estou aprendendo muito mais do que colaborando - a imensa maioria dos livros e discussões sobre o bloco praticamente não menciona os DH. Mas há boas atividades no campo e ontem realizamos em Brasília o seminário "Participação em Política Externa e
Direitos Humanos no Mercosul
", em parceria com o Ministério Público Federal.

Há muitas propostas interessantes na agenda de DH do bloco, em especial duas iniciativas argentinas - o estabelecimento do direito à verdade, justiça e memória histórica e a criação de um Instituto de Política Pública em Direitos Humanos. Ambas refletem a importância do tema naquele país, algo que vem da mobilização contra a ditadura militar e da intensa onda de mobilização social que acompanhou a crise recente.

O Brasil apresentou o projeto de criar uma comissão regional para lidar com o combate ao racismo. O tema está quente no debate político brasileiro, principalmente por conta das ações afirmativas em favor dos negros, e na América espanhola vem ganhando força pela questão indígena. O Paraguai contribuiu com a iniciativa Nin@ Sur, de proteção à criança, com ênfase no combate ao tráfico, exploração e venda.

Nosso seminário reuniu funcionários públicos, ativistas políticos e acadêmicos da Argentina, Brasil e Uruguai. Discutimos a estrutura dos DH no Mercosul e as iniciativas de participação em curso. A mais interessante é o Conselho Consultivo da Sociedade Civil do Ministério das Relações Exteriores da Argentina, com mais de mil organizações que incluem até catadores de papel. A palestra do embaixador que preside o Conselho foi uma das melhores do seminário, ele falou com paixão e entusiasmo. Sem dúvida, essa é uma experiência que quero acompanhar mais de perto.

Os desafios pela frente incluem não sobrecarregar a agenda de DH do Mercosul com itens que seriam melhor discutidos em outros fóruns internacionais, como a ONU ou a Organização dos Estados Americanos. Claro, a coordenação entre todas essas esferas é sempre difícil. Por isso mesmo é preciso conhecer bem o terreno e o que está em disputa.

Além das atividades do Comitê, os DH estarão no centro das minhas atividades acadêmicas deste semestre. Até o fim do ano preciso entregar cinco textos sobre o tema: artigos acadêmicos, jornalísticos, um capítulo de livro e um projeto de cooperação internacional. Também estou trocando idéias com um grupo de alunos da UnB que conheci no seminário, e que estão com uma ótima proposta para um trabalho de campo na África. Enfim, é um dos meus entusiasmos, agora sai de baixo.

domingo, agosto 27, 2006

O Método

Continuemos a série de posts dedicados ao cinema com o comentário sobre "O que você faria?" (El Método, no original), excelente filme espanhol que vi por indicação da minha amiga Luciana. Um grupo de executivos se reúne para um processo de seleção no estilo "O Aprendiz", no qual cada prova elimina um concorrente. Enquanto isso, uma manifestação contra o FMI e o Banco Mundial paralisa Madri e acaba afetando a própria competição. A direção é do argentino Marcelo Piñeyro, que tem bom currículo com "Kamtchaka" e "Plata Quemada".

O roteiro é espetacular, com situações que colocam os candidatos frente a dilemas éticos e expõem todas as pequenas mesquinharias e traições da vida profissional num ambiente de grande empresa. Os personagens reúnem vários tipos humanos: o executivo de meia idade que quer bancar o macho alpha, o apaixonado por métodos de seleção, a mulher jovem e bonita que usa sua sensualidade como maneira de se impor, os sintonizados com o novo discurso de responsabilidade social, preservação ambiental etc.

O filme é baseado numa peça de teatro e a ação se concentra num pequeno espaço - a sala de seleção e os arredores - dando grande destaque ao trabalho dos atores, que dão um show, caprichando nas entonações, na postura física, nos tiques nervosos e em detalhes que compõem cada personagem.

***

Viajo hoje à tarde para Brasília. Vou coordenar uma mesa redonda sobre direitos humanos e participação no Mercosul. Depois conto como foi.

sexta-feira, agosto 25, 2006

O Sol - Caminhando Contra o Vento




"Tire o sol da parede, para entrar o cafuné", disse o dono do cinema. Sorri. Nada como Santa Teresa. Um bairro em que as ruas têm nome como "Constante Jardim" ou "Monte Alegre" é o lugar ideal para assistir a um filme chamado "O Sol - caminhando contra o vento", documentário dirigido por Tetê Moraes e Martha Alencar. O tema é o jornal experimental editado por seis meses em 1967, por uma geração de jovens que se destacaria nos anos seguintes na cultura, jornalismo e política.

"O Sol" é um filme de turma, de tribo. A parte mais saborosa do documentário é justamente uma festa-filmagem, que reuniu a antiga equipe do jornal para dar depoimentos sobre a experiência. Estou para eles como um jovem guerreiro que se senta ao redor da fogueira para ouvir as histórias de guerra dos mais velhos. A redação do Sol inclui ex-professores, pais de amigos e uma penca de gente que admiro. Falo de pessoas como Ana Arruda Callado, Carlos Heitor Cony, Fernando Gabeira, Márcio Moreira Alves, Zuenir Ventura, além de Chico, Caetano e Gil. Meus caciques e pajés: somos todos da mesma tribo.

O Sol" foi um pioneiro da imprensa alternativa que floresceu nos anos 70, no período mais difícil da ditadura militar. Acho que ouvi falar do jornal pela primeira vez na música "Alegria, Alegria" de Caetano, uma espécie de hino que comenta "O Sol nas bancas de revista / me enche de alegria e preguiça / Quem lê tanta notícia?". Essa canção (que escuto no CD player enquanto escrevo este texto) - e outras do mesmo quilate, como "Domingo no Parque", são a trilha sonora do filme, às vezes em tocantes arranjos instrumentais. Depois soube de muitos casos curiosos das pessoas que participaram do jornal. "

Talvez metade do documentário seja dedicada ao Sol propriamente dito. O restante são comentários sobre os anos 60/70. Essa é a parte menos interessante, a maioria do que é dito nela já foi comentado antes em dezenas de outros lugares. Exceção: a belíssima entrevista com Gilberto Braga, que conta como tirou a inspiração para "Anos Rebeldes" de sua relação de amizade com os repórteres do Sol e compara os protagonistas aos amigos da redação. No fim, ainda vão descobrir que aquela série de TV é mesmo o que foi produzido de melhor sobre a geração de 1968.

Braga não se interessava por política nos anos 60 e talvez por isso pode perceber algo que muitos dos meus colegas de tribo têm dificuldade em compreender: o quanto nosso mundinho é pequeno e nossos horizontes, restritos. Com todos os ideais e ativismo político, nosso comportamento e padrão de consumo é igualzinho ao da elite que dizemos desprezar. Minha turma cabe em alguns quarteirões da zona sul do Rio de Janeiro. E o misterioso povo brasileiro está por aí, em busca de um lugar ao sol.

quarta-feira, agosto 23, 2006

O Longo Amanhecer de Celso Furtado

Nesta quarta assisti no BNDES ao documentário “O Longo Amanhecer – cinebiografia de Celso Furtado”, pérola dirigida por José Mariani. Em cerca de uma hora, temos não só um relato emocionado da vida e pensamento de um dos melhores pensadores brasileiros mas também uma discussão rica e inteligente sobre o que o Brasil vai ser quando decidir crescer.

O fio condutor do filme é um depoimento do próprio Celso Furtado, já octagenário, concedido em julho de 2004, poucos meses antes de sua morte. As declarações são complementadas com entrevistas de parceiros intelectuais, entre os quais se destacam Maria da Conceição Tavares (lúcida, emocionada e brilhante como poucas vezes na vida), Francisco de Oliveira e João Manuel Cardoso de Melo.

A ênfase do Longo Amanhecer é entre 1949 e 1964, a fase em que Furtado teve forte atuação na vida política, como economista da CEPAL, diretor do BNDE, superintendente da Sudene e ministro do Planejamento. O Mestre comenta sobre o suicídio de Vargas, o Plano de Metas de JK, as dificuldades de João Goulart e as tensões sociais no Nordeste. Foram anos em que se pensou a sério um modelo para tirar o Brasil do subdesenvolvimento e como diz Cardoso de Melo, “o golpe de 1964 interrompeu a possibilidade de se construir um país decente.”

Conceição Tavares destaca bem a complementação entre o pensamento de Furtado sobre as origens dos problemas econômicos brasileiros e a habilidade de negociador político que o levou a conduzir alianças difíceis para implementar seus projetos. A menina dos olhos foi a Sudene e os depoimentos do Mestre e de Francisco de Oliveira impressionam pela crítica à “política hidráulica” de lutar contra a seca com grandes obras e a defesa de um modelo sócio-econômico que leve em conta a ecologia do semi-árido para formular políticas públicas. Anos-luz à frente de seu tempo, e muito mais avançado do que as propostas faraônicas do governo Lula de realizar a transposição do rio São Francisco.

Os liberais sempre combateram Celso Furtado e não surpreende o ostracismo político que experimentou nos governos Collor e FHC. Contudo, não é assim tão diferente na presidência de Lula. O Mestre foi reverenciado e respeitado, mas suas idéias, delicadamente afastadas. O Estado brasileiro investe recursos bilionários para financiar o serviço da dívida e a exportação de soja ou celulose, mantendo o país preso ao círculo vicioso da produção de baixo valor agregado. Desenvolvimento é outra coisa. Claro, muito mudou. O Brasil de 2006 também produz aviões, plataformas petrolíferas e participa de pesquisas científicas de ponta.

Mariani deu a seu documentário o título de um dos últimos livros de Furtado. Eu teria usado outro: A Construção Interrompida. O Mestre nos ensinou que o desenvolvimento não se limita ao crescimento econômico, mas engloba toda a gama de possibilidades da criação humana e da cultura. Retomar o desenvolvimento significa recolher os cacos de Brasil dispersos pela violência, miséria e fragmentação social e utilizá-los para levar adiante o processo de construção de nação.

terça-feira, agosto 22, 2006

Vargas Llosa: agruras do liberalismo na América Latina

Mario Vargas Llosa é um dos meus escritores favoritos e caço sua obra pelos sebos. O achado mais recente foram suas memórias, “Peixe na Água”, cujos capítulos intercalam os anos de juventude com a candidatura à presidência do Peru, em 1990. O autor chegou a ter quase 50% das intenções de voto, mas perdeu com a ascensão vertiginosa de Alberto Fujimori nas últimas semanas da disputa.

Os trechos sobre seus anos de formação mostram o quanto seus melhores romances – Batismo de Fogo, Conversa na Catedral, Tia Júlia e o Escrevinhador – são baseados em episódios autobiográficos, reinventados pela prosa genial do ficcionista. Essa parte da narrativa termina em 1959 com o jovem de vinte e poucos anos indo cursar o doutorado em Letras na Europa,

Os capítulos sobre a campanha presidencial são excelentes. Vargas Llosa nunca havia se candidatado a cargos públicos, mas entrou na política ao liderar uma mobilização contra a nacionalização de bancos decretada pelo presidente Alan García. Seu protesto virou programa à presidência, consistindo numa forte crítica às estatizações realizadas pelos governos peruanos desde a ditadura militar dos anos 60/70, e defendendo como remédio abertura econômica, privatizações, controle dos gastos públicos e da inflação.

Os problemas começaram quando Vargas Llosa se aliou aos políticos tradicionais da direita peruana – os mesmos que atacava em seus livros e discursos. O escritor reconhece esse erro e dá descrições impagáveis de suas desventuras junto aos caciques provincianos e suas teias de politicagem e de clientelismo.

O segundo fator foram as tensões raciais, explosivas num país de brancos, índios, negros e mestiços de diversas cores, que se detestam reciprocamente. Vargas Llosa, branco de olhos claros, e cercado de assessores do mesmo tipo físico, era visto com alguém de outro mundo pela massa pobre e de pele escura, que optou por Fujimori, oriental que se apresentava como próximo ao povo. Este também acertou ao lançar-se como independente dos partidos, embora tenha feito acordos por debaixo do pano com o presidente García.

Há também o velho problema dos intelectuais na política. Teoria é uma coisa, prática é outra. Suas observações são muito eloqüentes sobre a relutância dos empresários em apoiar o projeto de abertura, pois queriam a proteção e as negociatas do Estado, ou temiam suas represálias. A classe média se mostrou mais disposta, mas mesmo ela estava muito vinculada ao emprego público e se ressentiu dos ataques do candidato a essa categoria (numa peróla de insensibilidade, um de seus comerciais retratou os burocratas como macacos), além de temer demissões em massa no funcionalismo.

O programa de liberalismo econômico defendido por Vargas Llosa acabou implementado em parte por Fujimori, embora num regime autoritário que era o oposto da proposta do escritor. A campanha vitoriosa – como a de Collor ou Menem – centrou-se mais na crítica à corrupção e no cortejo aos ´descamisados´ no que na defesa da mudança do modelo da economia.

Fujimori também ganhou popularidade pela derrota do Sendero Luminoso e do Tupac Amaru, ao passo que Vargas Llosa não conseguiu abordar o problema além de slogans contra o terrorismo (embora tenha escrito um excelente romance sobre o Sendero, “Lituma nos Andes”).

Vargas Llosa nunca mais voltou à política. Seu infeliz país amargou uma década de autoritarismo sob Fujimori e um governo turbulento sob Alejandro Tolendo. Humala não é tão diferente do fenômeno fujimorista. E agora Alan Garcia, execrado por Vargas Llosa, voltou à presidência.

Vale citar a primeira página de Conversa na Catedral: “Em qué momento se había jodido el Peru?”

sábado, agosto 19, 2006

O Hezbolá Venceu


 

Entrou em vigor (com violações esporádicas) o cessar-fogo acordado a duras penas na ONU. O resultado da guerra é claro: o Hezbolá venceu. Resistiu ao bombardeio aéreo e derrotou a invasão terrestre, levando seu inimigo à mesa de negociações. E durante toda a guerra, continuou a atacar o território israelense com seus foguetes. Hassan Nasrallah conseguiu a maior conquista militar árabe desde que Nasser rechaçou o ataque conjunto de Israel, França e Egito contra o Canal de Suez em 1956.

Claro, o Líbano está em ruínas. Muitos habitantes do país devem detestar o grupo, pela destruição que atraiu, mas certamente há também muitos que o idolatram pela derrota que impôs a Israel. E mesmo os opositores do Hezbolá devem estar impressionados pela máquina de assistência social que começou a distribuir US$12 mil por família. Quanto Israel distribuiu? Pois é.

O Hezbolá foi bem-sucedido porque construiu uma impressionante rede de túneis e abrigos subterrâneos, que utilizou para esconder seus combatentes e contra-atacar o exército de Israel, em clássicas operações de guerrilha. Pouco antes da guerra desbaratou uma célula de espionagem israelense, prendendo mais de 70 pessoas, o que ajuda a explicar a má qualidade das informações disponíveis para as forças armadas desse país.

Ninguém perde uma guerra impunemente, ainda mais em Israel, onde a sobrevivência do Estado depende da perícia militar. Começou a caça às bruxas no país, em busca dos culpados pela derrota. O parlamento ameaça Olmert com CPI e os artigos jornalísticos criticam as Forças Armadas, a liderança política e a própria sociedade. O mais interessante que li foi o de Yossi Sarid.

Devo ao Alexandre a indicação do melhor artigo sobre a guerra, a análise dos bastidores do conflito escrita pelo veterano jornalista Seymour Hersh. Sua conclusões:

• Israel e EUA viram na guerra contra o Hezbolá o prelúdio para o conflito no Irã, tentando desarmar um aliado de Teerã e intimidar aquele regime.
• O governo Olmert se precipitou e foi à guerra com pouco planejamento e informação inadequada, ignorando o alto grau de preparo, armamento e treinamento do Hezbolá.

• Israel acreditou que poderia vencer a guerra apenas com o bombardeio aéreo, numa interpretação errônea de como essa estratégia foi utilizada com sucesso pelos EUA no Kosovo.
• A guerra provocou divisões no próprio governo Bush, com o secretário de Defesa Donald Rumsfeld e a secretária de Estado Condoleezza Rice mostrando-se reticentes com o conflito.

Agora é ver como será o cessar-fogo. A ONU nunca conseguiu garantir a paz no Líbano e o exército nacional, de maioria xiita, é bastante simpático ao Hezbolá. Ou seja, acredito que o grupo manterá liberdade de ação, embora imagine que aproveitará o período para se re-organizar e receber mais armas.

A foto: um anúncio premiado para a ONU, que mostra uma granada de porcelana com a inscrição “Peace is fragile.” É mesmo.

quinta-feira, agosto 17, 2006

Vidas Paralelas: McNamara e Colin Powell


 

Garimpei nos sebos as memórias do general Colin Powell (“Minha Jornada Americana”) e o acerto de contas com o passado do ex-secretário de Defesa dos EUA, Robert McNamara (“In Retrospect – the tragedy and lessons of Vietnam”). Os dois homens aparecem juntos na foto acima, que reuniu na Casa Branca antigos membros da alta administração do país. A comparação entre a vida de ambos ilustra aspectos decisivos da história americana contemporânea.

Os dois têm origens comuns, de famílias pobres mas sólidas e estáveis, com pais que os estimularam a estudar. Reproduziram o modelo em casamentos duradouros e, aparentemente, felizes.

McNamara tem ascendência irlandesa e cresceu na Califórnia. Foi para a universidade estadual em Berkeley porque ali poderia estudar quase de graça. Formou-se em economia e, aluno brilhante, cursou a pós-graduação em administração de empresas em Harvard. De lá foi recrutado para a Força Áerea na Segunda Guerra Mundial, que precisava desesperadamente de gestores para os milhões de militares que entravam na organização.

Powell é filho de imigrantes jamaicanos e cresceu no Bronx. Disciplinado mas não particularmente brilhante, foi cursar a City College of New York – instituição pública conhecida como “Harvard dos pobres” pela excelência do ensino e faixa de renda do corpo discente. Formou-se sem distrinção em geologia, mas cursou o CPOR e tomou gosto pela vida militar. Resolveu seguir a carreira de oficial do Exército, teve excelentes avaliações e recebeu os primeiros postos no exterior, como tenente na Alemanha e capitão e major no Vietnã.

Quando a Segunda Guerra Mundial terminou, oficiais que administraram a Força Aérea venderam seus serviços para empresas que queriam se modernizar. McNamara foi para a Ford e em 15 anos tornou-se presidente da firma, o primeiro fora da família do fundador. Sete semanas após assumir o cargo, o recém-eleito presidente Kennedy o convidou para secretário de Defesa, para fazer o caminho inverso e levar as novas técnicas de administração ao Estado.

As Forças Armadas dos EUA eram segregadas racialmente até 1948, apenas 10 anos antes da entrada de Powell na instituição. Os oficiais negros ainda eram raridade mas ele afirma – creio que com razão – que o sistema meritocrático do Exército o tornava a melhor possibilidade de carreira para os afro-americanos. Contudo, a maior parte das bases militares fica no sul, que naquela época pré-Ato dos Direitos Civis ainda era uma região segregada. O jovem Powell recebia as melhores notas nas academias da infantaria, mas ao sair do quartel não podia usar o banheiro na lanchonete.

McNamara foi um dos jovens gênios acadêmicos recrutados por Kennedy, os “the best and brightest”. Mas os mil dias de governo de JFK foram conturbados por crises internacionais: Baía dos Porcos, a construção do Muro de Berlim, os mísseis cubanos. Em 1962 MnNamara enviou 16 mil soldados americanos ao Vietnã, como “conselheiros militares”.

Entre eles, o capitão Powell, que serviu no país duas vezes. Em ambas observou o despreparo do Exército, a falta de clareza quanto aos objetivos e botou o dedo na ferida: mecanismos de recrutamento injustos, que penalizavam os pobres e diminuíram o moral do Exército. No auge da guerra, mudava sua cama de lugar todas as noites, pois tinha medo de ser assassinado pelos Vietcongs ou por seus próprios soldados.

Todo o livro de McNamara é uma tentativa de entender como ele seus colegas tecnocratas conseguiram cometer tantos erros no Vietnã: desinformação, cegueira ideológica – viam tudo em termos capitalismo x comunismo e não conseguiram entender que era primordialmente um conflito de libertação colonial, nacionalista – dificuldades no relacionamento do presidente com o Congresso e até a escassez de funcionários especializados em Ásia, pois a maioria havia sido vítima das perseguições do Mccarthismo, como bode expiatório da vitória comunista na China.

Powell sobreviveu ao Vietnã e foi catapultado para os círculos do poder em Washington, servindo em cargos de confiança em governos democratas (Carter, Clinton) e republicanos (Nixon, Reagan, Bush Senior e Junior). Critica a corrupção em Nixon e o despreparo de Reagan, com ataques a alguns de seus chefes sob Bush, como o então secretário da Defesa (atual vice-presidente) Dick Cheney a quem chegou a chamar numa discussão, de brincadeira, de “direitista maluco”.

McNamara é admirador e defensor de Kennedy, mas tem reservas quanto ao sucessor a quem também serviu, Lyndon Johnson, a quem ataca como isolado e teimoso, pouco aberto ao diálogo, ocultando informações vitais à sociedade e que acabou por decidir pela desastrosa expansão que levou a meio milhão de soldados americanos no Vietnã.

Após a derrota naquela guerra, Powell foi figura chave nas reformas do Exército que tranformaram os militares americanos numa força de voluntários. Como chefe do Estado-Maior das Forças Armadas, comandou a reestruturação que se seguiu ao colapso da URSS e foi um dos líderes de maior prestígio na Guerra do Golfo.

Em fevereiro de 1968, ainda em meio ao choque da Ofensiva do Tet lançada pelo Vietcong, McNamara deixou a Secretaria de Defesa e tornou-se presidente do Banco Mundial, cargo que ocupou por mais de uma década. Tem dedicado boa parte do seu tempo a eventos de memória e autocrítica aos erros que cometeu nos anos 60.

Powell entrou para a reserva em 1993. Foi sondado para se candidatar a cargos políticos, inclusive especulou-se sobre sua possível campanha à presidência. Foi secretário de Estado no primeiro mandato de Bush jr, no qual desempenhou o pouco glorioso papel de arregimentar apoio à invasão do Iraque. Continua a ser uma das figuras públicas mais populares dos EUA.

segunda-feira, agosto 14, 2006

Mea Cuba


 

Há cinco anos convenci meu irmão a ir a Cuba com a justificativa de que seria talvez nossa única oportunidade para conhecer um país socialista. E tinha que ser rápido, antes que Fidel morresse. Eis trechos do email que escrevi aos amigos quando voltei da ilha (eram tempos pré-blog, pessoal):

Saindo dos limites da zona turística e passeando pelos bairros centrais de Havana, vimos áreas de grande pobreza, com prédios caindo aos pedaços, à semelhança dos cortiços cariocas. Não é a miséria abjeta do Brasil - não há meninos de rua ou pessoas dormindo sob as marquises - mas é uma situação de bastante escassez. Homens, mulheres e crianças pedem aos turistas dinheiro ou itens cotidianos como roupas, sabonete ou pasta de dente.

Também era comum sermos abordados por cubanos que nos ofereciam algum tipo de negócio não muito limpo envolvendo rum, charutos ou câmbio paralelo. Essas pessoas não eram agressivas, falavam suave e puxavam conversa na melhor tradição dos malandros de toda parte.

O assédio aos turistas é maior no fim de semana, quando os cubanos aproveitam a folga na escola ou no emprego para tentar ganhar um dinheiro extra prestando serviços aos turistas. De segunda a sexta as pessoas estão ocupadas cuidando da vida e é bem mais tranqüilo para passear.

Os cubanos também procuram os turistas em busca de notícias, como me disse um rapaz: "Temos poucas fontes de informação, por isso gostamos de conversar com os estrangeiros, saber da vida em seus países. É nossa maneira de fazer um turismo imaginário
."

Houve um momento em que senti o gostinho da Revolução, como deve ter sido aos idealistas dos anos 60. Ironicamente, foi no Museu da Revolução, belíssimo acervo sobre a história das lutas sociais cubanas (e não só do regime estabelecido em 1959) que funciona no antigo palácio presidencial. A exposição é excelente, só comparável ao que vi de melhor na Europa. O que me emocionou foi ver um garotinho, negro, passeando com o pai e apontando as fotos: “Olhe, papai, são Che e Camilo!”. Fiquei pensando quando, no Brasil, um menino pobre teria uma oportunidade cultural daquelas, e o senso de orgulho e identidade com a história nacional.

Continua meu email:

Fora dos muros do museu, a realidade é mais complexa. Saímos do memorial revolucionário e percorremos o Malecón (a avenida beira-mar de Havana) rumo ao Vedado, para tomar um sorvete na Copélia – que está para a capital cubana como a Confeitaria Colombo para o Rio de Janeiro. Enquanto os cubanos esperavam seus sorvetes numa longa fila, dando voltas no quarteirão, os estrangeiros tínhamos entrada rápida e especial, simplesmente por pagar em dólar.“

A reflexão da esquerda brasileira não tem me agradado. Claro que há exceções, mas em geral é um saudosismo danado em torno dos tempos áureos de Fidel.

Gostei mais desta ótima entrevista do historiador cubano Rafael Rojas, que fala das relações da Revolução com os artistas e acadêmicos do país. Ele analisa as realizações no cinema, na literatura e fala das tensões e perseguições. Seu resumo do legado cultural da Revolução:

Creo que un sentido muy agudo que se creó pero que está ahora en decadencia o en crisis: la defensa de valores como la soberanía, la justicia y la igualdad. Son valores que la revolución colocó en el centro de su imaginario, de su plataforma simbólica, segregando a la periferia otros importantes valores, como la libertad. La revolución también modernizó de algún modo el orden cultural que traíamos de la república; es decir, conectó mucho la cultura cubana con la izquierda occidental en los años sesenta y setenta, y le inyectó cosmopolitismos y contemporaneidad a esa cultura.

domingo, agosto 13, 2006

Bolívia: Nossa Marca é a Crise


 

Ontem fui assistir ao documentário "Bolívia: história de uma crise" (Crisis is our Brand, no título original), de Rachel Boynton. O filme conta os bastidores da campanha presidencial de 2002 do magnata da mineração Gonzalo Sanchéz de Lozada, que venceu o líder cocaleiro Evo Morales por apenas dois pontos.

Sanchéz de Lozada já havia sido presidente da Bolívia entre 1993-1997 e aplicado um
controverso programa de privatizações. Como passara a maior parte da vida nos EUA, falava espanhol com um atroz sotaque americano. Campanha difícil. Contratou então a empresa de consultoria política CGS, que se tornou célebre ao ajudar a eleger Bill Clinton presidente dos EUA.

O nome mais conhecido da firma é James Carville, um tipo carismático, com palavras de efeito e gestos fortes. Mas quem se destaca no documentário são seus assistentes, ótimos analistas políticos, parecem sujeitois legais, bons de se conversar e pedir dicas de livros.

Para um cientista político viciado na profissão, como é meu caso, o melhor do documentário é poder ver a aplicação das técnicas de marketing político que aprendi na pós-graduação, quando fiz um curso sobre o tema. Está tudo lá: o uso de grupos focais para testar a propaganda, a necessidade de um "molde" (frame) para dar a mensagem do candidato, a influência decisiva dos pequenos comerciais de TV (spots). A ilustração dos manuais sobre o tema. A técnica funciona: Sanchéz de Lozada havia começado 16 pontos atrás do líder, o ex-prefeito de Cochabamba Manfredo Reyes, e termina em primeiro lugar.

Como a vida não funciona como cartilhas de ciência política, o filme mostra os limites da propaganda, como a arrogância de Sanchéz de Lozada, que por vezes dificulta o trabalho dos consultores, ou a simples dificuldade dos americanos em compreender os aspectos mais dramáticos da realidade boliviana, como o fato de que mesmo um modesto aumento de impostos pode comprometer o orçamento de uma família pobre. Sanchéz de Lozada acabou renunciando pouco mais de um ano após assumir a presidência pela segunda vez, nos protestos que tiveram como estopim sua decisão de exportar gás boliviano para os EUA, via portos chilenos.

É curioso também que os consultores não tenham percebido o fenômeno Evo Morales, a quem se referem como forte somente em sua região de atuação, a zona agrícola da coca, o Chapare. No fim ele quase venceu a disputa, em parte porque uma declaração desastrada do embaixador dos EUA, que o comparou a Bin Laden, tornou-o símbolo do nacionalismo boliviano.

Nos créditos, estão listados os países em que a CGS fez consultorias e lá consta o Brasil. Foi o mote para que uma espectadora reagisse indignada: "Que merda!". De repente, as 20 pessoas no cinema, das quais a metade estava no meu grupo de cientistas sociais e jornalistas, começaram a discutir ao mesmo tempo, num animadíssimo debate sobre América Latina. Apareceu até a tia do candidato à presidência que Morales derrotou em 2005! Tivemos que ser gentilmente enxotados da sala pelo perplexo funcionário do cinema, mas o papo continou no corredor e os espectadores de meia idade ficaram impressionados com o entusiasmo daqueles jovens de vinte e tantos anos que contestavam com paixão e indicavam pilhas de sites e livros sobre o tema.

Já é mais do que hora de sacudir a poeira da vida acadêmica, não é?

quinta-feira, agosto 10, 2006

Pistolas, Bandeiras e Caixões



Estava na biblioteca do Iuperj, lendo no Valor sobre o fracasso da Rodada Doha da OMC, quando uma amiga entrou com a The Economist cuja capa tratava da guerra no Oriente Médio: “A política internacional está falida, Maurício”, “Virou uma espécie de pistolagem, um instrumento do terror”.

Pistolas, bandeiras e caixões.

Agora as autoridades britânicas anunciam ter desbaratado plano terrorista de assassinato em massa para atacar dez aviões entre o Reino Unido e os EUA, levando o governo Bush a decretar alerta vermelho.

Em quase um mês de conflito no Oriente Médio mais de 1.100 pessoas morreram, a maioria civis libaneses. Milhões tiveram que fugir ou estão refugiados e a estrutura econômica do Líbano está destruída, talvez por anos. É mais do que o Hezbolá matou e destruiu em duas décadas de atividade, na estimativa do Council on Foreign Relations!

O Hezbolá é um dos mais sanguinários grupos terroristas do mundo, mas não é páreo em termo de poder de fogo para um Estado bem organizado como Israel. Dito de outro modo: é evidente que o terrorismo é uma ameaça, mas o risco é exagerado e manipulado pelos governos para tentar legitimar suas políticas no Iraque, no Líbano ou em qualquer canto escuro do planeta.

Israel convocou mais reservistas e mobiliza um número de tropas estimado entre 30 mil e 50 mil para a ofensiva. A tv israelense divulgou que membros da Guarda Revolucionária do Irã foram presos no Líbano, mas ainda não houve confirmação oficial.

O Conselho de Segurança da ONU não consegue chegar a um acordo quanto ao cessar-fogo e à força internacional de paz.

Para minha amiga, o símbolo do quadro político atual é o PCC. Tendo a concordar.

segunda-feira, agosto 07, 2006

Quem Sabe o Super-Homem Venha nos Restituir a Glória




O primeiro filme é mágico, todos concordamos.

"Superman - o retorno" tem dividido opiniões. Estou entre aqueles que adoraram o filme, embora o considere inferior ao já clássico dos anos 70, que mistura na dose certa aventura, humor, fantasia e uma belíssima história de amor. Quem esquece a seqüência do vôo noturno por Metrópolis, ou a mudança no curso da História, por causa da mulher?

As pessoas não assistem à toa à epopéia de marmanjos que usam cuecas coloridas por cima das calças, os super-heróis permancem no imaginário porque tocam pontos sensíveis nos nossos medos e anseios. Batman é uma resposta à neurose da violência urbana, os X-Men são um libelo contra a discriminação.

Superman é um mito cristão: um deus que desce à terra para viver em meio aos homens, sofrer com eles e redimi-los através de seu sacrifício. O novo filme é cheio de alusões que parecem a Sagrada Família ou mesmo a Santíssima Trindade, com a voz e imagem de Marlon Brando fazendo as vezes de Espírito Santo e Deus Pai. Aliás, o velho Brando, mesmo morto, dá um banho em muito zumbi que anda por aí assombrando as telas.

"Superman - o retorno" é na verdade dois filmes. O que mais me interessa é a história do amor entre o herói e Lois Lane. Uma paixão difícil e incompleta, mas que humaniza o deus: as melhores cenas do filme são Superman usando seus poderes para servir a seus ciúmes, como qualquer pobre mortal. As últimas adaptações para a TV das aventuras do herói, os seriados Lois & Clark e Smallville, têm ido exatamente pelo caminho de valorizar o cotidiano e a intimidade.

O segundo filme não me interessou muito, na verdade até atrapalhou: trata-se da trama de dominação mundial de Lex Luthor. Kevin Spacey interpreta muito bem o arquivilão, mas faz um tipo bem mais sombrio e assustador do que o bonachão vivido por Gene Hackman no primeiro filme.

Achei que os atores principais, Brandon Routh e Kate Bosworth, desempenharam bem seus papéis e não é vergonha que estejam aquém do carisma do casal protagonista do primeiro filme. A moça é muito bonita, embora jovem demais para interpretar uma jornalista tarimbada como Lois, mãe de um filho já grandinho e que devia andar pelos trinta e muitos.

Tudo em "Superman - o retorno" aponta para continuações, de modo que fica a expectativa de que os problemas deste filme sejam resolvidos no próximo. E mais bom humor no roteiro, por favor!

domingo, agosto 06, 2006

Amizade é Civilização


Devo a minha querida amiga Patrícia, minha ministra da Juventude, a dica de ver o filme francês “Amigo é para essas Coisas” (Zim and Co), de Pierre Jolivet. Apesar do título de sessão da tarde, é uma comédia esperta, ágil e muito interessante sobre os problemas da França atual, mostrados através da amizade de três adolescentes da periferia parisiense.

Victor descende de poloneses, Ched de marroquinos e Arthur, de alguma nacionalidade da África negra. O ministro do Interior da França e candidato da direita às eleições presidenciais, Nicholas Sarkozy, poderia se referir a eles como racaille, escória. Como os dois últimos têm pele escura, são parados o tempo todo pela polícia e tratados de modo diferente pelos professores e outras autoridades. Victor é um branco pobre, mas é branco – a questão se mostrará essencial numa das melhores e mais divertidas cenas do filme. Aos poucos se junta ao grupo Safia, a prima de Ched, que vira namorada de Victor.

“Amigo é para essas coisas” começa com Victor se metendo numa enorme encrenca por causa de um acidente de trânsito. Ele agora precisa arranjar um emprego com carteira assinada (o CDI francês) ou corre o risco de ir para a cadeia. Na tentativa de arrumar trabalho, Victor envolverá os amigos numa série de incidentes cômicos, trágicos e esdrúxulos que misturam os ingredientes das comédias italianas dos anos 60 (digamos, as da Mario Monicelli) com as preocupações sociais do cinema independente dos EUA (a França multiétnica e cheia de ódios raciais lembra os filmes de Spike Lee).

Os três amigos estão entre os personagens mais azarados, trapalhões e adoráveis do cinema contemporâneo, é impossível não se sentir solidário e torcer por eles. O filme aborda com leveza e ternura todas as grandes questões políticas da França: a marginalização dos jovens das banlieu, que tocaram fogo no país em 2005, o desemprego juvenil, a importância crucial do contrato permanente de trabalho, o racismo cotidiano das autoridades, a dificuldade de redefinir as identidades – pessoas e coletivas – de um país de diversas culturas e cores de pele.

A promessa de universalização da cidadania expressa na Constituição e nos ideais franceses é letra morta diante da realidade de preconceitos e agressões. O Estado surge no filme apenas em sua faceta repressiva, da polícia e do sistema judicial-carcerário. Barbárie. Os verdadeiros valores da civilização – liberdade, igualdade e fraternidade – aparecem na amizade entre os jovens.

Pensei no grande ensaísta político do século XVI, Étienne de la Boétie, e seu Discurso sobre a Servidão Voluntária, escrito após testemunhar um massacre de camponeses. Boétie dizia que amizade e tirania são incompatíveis e que laços mais sólidos entre os cidadãos garantiriam a liberdade. Acredito nisso. Longa vida aos amigos – de seus pactos poderá nascer uma sociedade nova.

sexta-feira, agosto 04, 2006

Agualusa


“Certos nomes deviam ser obedecidos, isto é, deviam implicar um destino”, afirma o escritor angolano José Eduardo Agualusa no início de seu romance “Um Estranho em Goa”. A frase se aplica ao próprio autor, cronista e criador de personagens que circulam por uma “nação crioula” ligada pela cultura comum da colonização: Portugal, Angola, Brasil. Água-lusa. O velho império marítimo forjado pelos lusitanos.

Sou fã de Agualusa há 6 anos, desde que li “A Estação das Chuvas”, obra-prima sobre a guerra de libertação colonial angolana. De lá para cá devorei também “Nação Crioula – a correspondência secreta de Fradique Mendes”, que imagina o personagem de Eça de Queirós rodopiando entre África, América e Europa e o ótimo “O Vendedor de Passados”. Nos últimos dias foi a vez de duas pequenas jóias: “Um Estranho em Goa” e o volume de contos “Manual Prático de Levitação”.

O primeiro é um romance com tintas de reportagem sobre o cotidiano em Goa, antiga colônia portuguesa incorporada à Índia em 1961, à força, pelas tropas de Nehru. Narrado em primeira pessoa, é uma jornada à Ásia em busca de um ex-líder guerrilheiro angolano que seria na verdade um agente duplo português, e estaria refugiado em Goa. O enredo é na verdade um pretexto para fascinantes digressões sobre o diabo, os demônios e a busca de identidades num mundo em constante transformação. Sobre os portugueses serem “europeus”, por exemplo:

“Nunca foram. Não o eram antes e não o são hoje. Quando conseguirem sinceramente que Portugal se transforme numa nação européia, o país deixará de existir. Repare: os portugueses construíram sua identidade por oposição à Europa, ao Reino de Castela e como estavam encurralados lançaram-se ao mar e vieram ter aqui, fundaram o Brasil, colonizaram África. Ou seja: escolheram não ser europeus.”

Ou dos moradores de Goa que querem ser mais “autênticos” do que a ex-metrópole:

“Os últimos descendentes da velha aristocracia católica ostentam nomes igualmente improváveis, tão portugueses que nem em Portugal existem mais, e fazem-no com o orgulho melancólico de quem tudo teve, e tudo viu ruir e desaparecer.”

O “Manual Prático de Levitação” inclui contos ambientados em Angola, no Brasil e em “outros lugares de errância”, sobretudo na Europa. São histórias curtas, algumas delas geniais, como “Se nada mais der certo, leia Clarice”, uma parábola sobre os sonhos redimindo a humanidade da qual gostei tanto que recomendei a amigas, como quem indica um bálsamo contra os males deste mundo.

Agualusa diz que o Brasil deveria ir à África, para ter mais orgulho de si mesmo. Se não der para cruzar o Atlântico, ao menos descubra novas belezas na língua portuguesa pela prosa do angolano.

terça-feira, agosto 01, 2006

Recordações de Amar em Cuba


 

Fidel Castro se afastou (temporariamente?) do poder, por razões de saúde, abrindo especulações de que será substituído por seu irmão Raul e por novos dirigentes como Ricardo Alarcón. Tudo isso me fez pensar no filme a que assisti no fim de semana, “Cidade Perdida”, dirigido, produzido e estrelado pelo ator cubano-americano Andy Garcia.

Garcia interpreta Federico Fellove, o dono de uma elegante casa de shows em Havana, às vésperas da Revolução. Seus interesses são música, mulheres e espetáculos, mas a política entra à força em sua vida, quando dois de seus irmãos se juntam aos rebeldes que combatem o ditador Fulgêncio Batista. Para desgosto do pai dos três, um jurista catedrático de direito constitucional, que sonha em derrubar a tirania com eruditas citações de Sêneca.

Agora vou comentar o filme contando muitos detalhes sobre a trama e o final, portanto se você não quiser saber do resto, pare por aqui.

Um dos irmãos Fellove foge para Sierra Maestra e vai lutar na coluna guerrilheira comandada por Che Guevara. O outro ingressa no grupo Diretório Revolucionário e morre no fracassado ataque ao Palácio Presidencial. O DR não gostava de Castro por acreditar que ele não reestabeleceria a democracia:

“Vocês desconfiam que ele seja comunista?”
“Achamos que ele é fidelista”

A vitória da Revolução provoca o esfacelamento da família Fellove, principalmente pelo conflito com o irmão guerrilheiro. Para complicar as coisas, o personagem de Andy Garcia se apaixona perdidamente pela viúva do outro irmão, Aurora, interpretada pela belíssima atriz espanhola Inés Sastre.

O excelente roteiro é do escritor Guillermo Cabrera Infante, falecido recentemente. Recria com paixão o ambiente da elite pré-revolucionária em Cuba, o esplendor tropical, a vida elegante dos restaurantes, bares e casas de show. Há um personagem interpretado por Bill Murray, um humorista amigo de Federico, que é uma espécie de alter ego de Cabrera, com observações sarcásticas e tiradas espirituosas.

A visão da Revolução é aquela dos cubanos de Miami: todos os revolucionários são retratados como fanáticos, autoritários ou idiotas. Che Guevara é mostrado como um psicopata dominado pelos soviéticos (na verdade ele detestava a URSS e defendia uma aproximação mais intensa com o Terceiro Mundo), com direito a usar bomba de asma enquanto ordena fuzilamentos. O auge do melodrama é um dos Fellove indo confiscar pessoalmente a fazenda de tabaco do tio, o que faz o velho morrer de infarte no local. O sobrinho, angustiado, acaba cometendo suicídio.

Federico se vê impossibilitado de continuar com seu negócio e decide emigrar para os EUA. Ele é o que os cubanos chamam de gusano, o grupo que odeia a Revolução e recusa-se a participar dos acontecimentos. Isso se torna um problema sério quando Aurora passa a apoiar o novo governo e se torna íntima da cúpula revolucionária.

Em entrevistas, Andy Garcia falou do filme como a tragédia do exílio. Seu Federico Fellove é um homem que não está em casa nos EUA, mas que perdeu o país, a cidade e a mulher que poderiam ter dado sentido a sua vida.
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