sexta-feira, setembro 29, 2006

“Pois a mudança é a essência da vida, e sua esperança”

Escândalo!

Em mais uma prova de malversação de fundos públicos, o governo federal decidiu me conceder uma bolsa de estudos para a Argentina. Em quatro ou cinco semanas parto para Buenos Aires, para passar um semestre na Universidade Torcuato di Tella, realizando entrevistas e pesquisas para minha tese e fazendo um curso sobre política internacional na América do Sul.

É uma tradição do Iuperj que os alunos de doutorado passem um ou dois semestres no exterior, em geral em universidades dos EUA ou da Europa. A idéia de realizar trabalho de campo num país sul-americano ainda é bastante nova, até onde sei apenas uma colega fez isso antes de mim. Houve amigos que inclusive me procuraram aos sussurros e me perguntaram se estava tudo bem comigo, se eu não havia brigado com a direção do instituto.

Que posso fazer? O fato é que me interesso mesmo é por países pobres, que vivem em instabilidade e crises políticas. Jamais conseguiria escrever uma tese sobre a Suíça: eu cairia de sono antes de completar o primeiro capítulo. Por outro lado, do jeito que andam as coisas nos EUA e na França, em breve poderei considerar a possibilidade de um pós-doutorado para estudar as vítimas do Katrina ou a insurreição das banlieus.

Vai ser bom passar um tempo num país de língua espanhola, conhecendo um pouco melhor a cultura tão próxima e tão distante dos hermanos sul-americanos. Bom também me afastar por um período da confusão brasileira e pensar um pouquinho sobre os caminhos que se abrem na vida e o que vou ser quando crescer, isto é, quando defender a tese e virar doutor.

Planos, sonhos, desvarios. Inquietações. Sempre.

A citação que dá título ao post é de mestre Gore Vidal.

quarta-feira, setembro 27, 2006

Gore Vidal: narrativas do Império



- Eu li o manual de Júlio César na escola e aprendi tudo sobre o poder. Você começa quando o sol nasce e então, com marchas poderosas, supreende o inimigo e mata todo mundo. Depois escreve um livro sobre o que fez.
- Bem, os jornais hoje são o livro que se escreve.

Gore Vidal, “Império”

Há tempos queria a ler as “Narrativas do Império”, série de sete romances em que o escritor americano Gore Vidal conta a história de seu país através de uma família de elite, descendentes bastardos de Aaron Burr – o fascinante vice-presidente dos EUA que segundo seus detratores, queria construir um reino para si mesmo no atual sudoeste daquele país. Ainda não li os três primeiros romances da saga (Burr, Linconl, 1876). Comecei pela parte que mais me interessa: a transformação dos Estados Unidos em uma potência internacional.

O quarto romance, “Império”, abre em 1898 com a vitória dos EUA na guerra hispano-americana. A heroína do livro é Caroline Sanford, que disputa uma herança milionária com seu meio-irmão Blaise. O rapaz se interessa por jornalismo e vai trabalhar para o magnata da imprensa sensacionalista William Randolph Hearst (o inspirador do “Cidadão Kane” de Orson Welles). Por rivalidade com o irmão, Caroline assume o controle de um jornal semi-falido em Washington e aplicando os métodos de Hearst o transforma numa poderosa ferramenta política.

O clima é a exaltação nacionalista pelas primeiras vitórias no exterior, que prosseguem com a eleição de Teddy Roosevelt para a presidência e a construção do Canal do Panamá. O contraponto é representado pelas conversas do Clube de Copas, um grupo de intelectuais que inclui o historiador Henry Adams e o escritor Henry James e que expressam a ética e as preocupações da velha República e ficam céticos com as ambições imperiais dos EUA.

“Hollywood” mostra os mesmos personagens cerca de uma década mais tarde. Os EUA entram na Primeira Guerra Mundial e se estabelecem definitivamente como uma potência mundial. Caroline, próxima ao presidente Wilson, envolve-se nos esforços para tornar a nascente indústria do cinema um instrumento de propaganda dos Aliados e acaba virando investidora (e atriz ocasional) dos estúdios. Ao mesmo tempo, a Revolução Russa desperta o início da histeria anti-comunista nos Estados Unidos, com a filha de Caroline se tornando uma das líderes do movimento e ameaçando o amante da mãe, um cineasta com simpatias esquerdistas: “mas o que [Caroline] sabia dos verdadeiros americanos, a começar por sua filha e seu genro? Haveria muitos outros como eles por lá, com sonhos sinistros de absoluto conformismo com algum ideal primitivo? Realmente, a antiga nação de camponeses encontrara a velha Europa civilizada, e a Europa lhe oferecera guerra, revolução e bolchevismo. Não era de se admirar que os camponeses verdadeiros e em potencial estivessem decepcionados.”
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Saltei “Washington DC”, que não consegui achar, e pulei para “A Era Dourada”, o melhor de todos, que começa com os esforços do ex-namorado de Caroline, Tim Farrell, para rodar um documentário discutindo se os EUA devem participar da Segunda Guerra Mundial, que se inicia na Europa. Na segunda parte, o jornalista Peter, sobrinho de Caroline, se torna um observador privilegiado e crítico do império mundial construído pelos Estados Unidos e da renovação cultural do país (um dos melhores trechos é a estréia da peça “Um Bonde Chamado Desejo”, de Tennessee Williams), enquanto o clima político se torna cada vez mais tenso pelo McCartismo e pela Guerra Fria.

No fim, o romance dá um salto para o ano 2000, onde Gore Vidal vira personagem de sua própria obra e debate na TV os rumos do século americano com seu “velho amigo” Peter, inquietando-se com o pânico ao terrorismo e refletindo sobre a inevitável decadência dos impérios.

Os livros são excelentes, mas não para todos os gostos. É preciso se interessar bastante por política e conhecer pelo menos um pouco sobre a história dos EUA, para acompanhar as descrições de Vidal das intrigas dos bastidores e das negociações que influenciaram os eventos mais importantes de seu país.

Gore é um aristocrata. Irmão de criação de Jackeline Kennedy, neto do senador Thomas Gore, primo do ex-vice-presidente Al Gore, amigo de Eleanor Roosevelt... Seu círculo de amizades é a nata do Partido Democrata. Contudo, ele se manteve fiel ao credo do avô, um político isolacionaista que se opôs ao projeto expansionista americano. Evidentemente, Gore foi derrotado. Mas se a História é escrita pelos vencedores, coube ao perdedor a glória de ser o cronista crítico e sarcástico da saga de seu país.

terça-feira, setembro 26, 2006

Documentando o Iraque



O Festival de Cinema do Rio começou e nestes primeiros dias minha ênfase foi nos documentários. O gênero é um casamento entre cinema e jornalismo e como tal só podia mesmo adorá-lo. A programação está concentrada nos grandes temas da agenda internacional e assisti a dois sobre o Iraque: “Meu País em Ruínas” e “Na Sombra das Palmeiras do Iraque”.

O primeiro é o melhor. Conta a história de um médico e líder comunitário sunita que se candidata a vereador em Bagdá, nas eleições de 2005. A partir daí temos um panorama da vida do país que inclui imagens da Zona Verde, o complexo militar de onde os EUA administram o Iraque, a ação das empresas de segurança privada no Curdistão, a detenção ilegal de pessoas (incluindo crianças) na famigerada prisão de Abu Grahib e o clima de medo e tensão permanente entre os militares americanos, que levam a tantas mortes de inocentes.

Embora o tema não seja o mais ameno do mundo, a família do protagonista é divertidíssima e encara as provações do cotidiano iraquiano com um humor anárquico digno das velhas comédias italianas. O cenário político não é nada engraçado: os sunitas são minoria no país mas desfrutavam de privilégios no regime de Saddam Hussein. Sua relação com os americanos é péssima, depois dos massacres na cidade de Fallujah e do boicote da maioria dos sunitas às eleições de 2005. O protagonista não consegue ser eleito e termina o documentário dizendo ter vontade de deixar o país.

O segundo documentário começa um mês antes da invasão americana e acompanha as vidas de pessoas comuns: um professor, seu filho intérprete, um instrutor de luta livre, um vendedor de jornais. O diretor retornou ao país depois da guerra e mostra o que mudou no cotidiano: aumento da pobreza, do desemprego e da inflação, medo da violência (da resistência e da criminalidade comum) e o sentimento de humilhação vindo da ocupação estrangeira. O cineasta teve boa parte do material de filmagem confiscado e o documentário se ressente disso. Às vezes parece tosco e incompleto.

Ambos os filmes são testemunhos importantes e com certeza ajudarão em minhas aulas. É sempre bom VER os lugares e os eventos dos quais falo a meus alunos, fora a riqueza dos dramas humanos exibidos. Mas é ilusório pensar que esses documentários mostram a realidade do Iraque. Os dois se concentram em personagens sunitas, de classe média/média alta, que falam inglês com fluência e não são representativos da maioria da população iraquiana. Não por acaso, moram no mesmo subúrbio afluente de Bagdá.

O Iraque é um emaranhado de credos, mas o que ocorre de politicamente mais importante é a mobilização (e com freqüência, radicalização) dos xiitas. Mais do que isso, esse grupo religioso está se articulando internacionalmente com seus colegas de fé no Irã e no Líbano, num movimento de amplitude sem precedentes. Eventualmente, a formação de um eixo xiita no Oriente Médio pode ser a conseqüência mais imediata da política externa americana na região, com efeitos imprevisíveis para a estabilidade da área.

domingo, setembro 24, 2006

O Império Derrotado



Grande livro na praça: “O Império Derrotado: Revolução e Democracia em Portugal”, do historiador britânico Kenneth Maxwell, autor de excelentes estudos sobre a Inconfidência Mineira, o marquês de Pombal e outros temas da história luso-brasileira. A nova obra narra o declínio do regime autoritário em Portugal, a Revolução dos Cravos e o desmantelamento do império colonial na África.

Este último ponto foi o que me atraiu para o livro. Por conta do meu trabalho de cooperação com os movimentos sociais da África Austral conheci pessoas que se envolveram nas lutas de libertação colonial e sabia o quanto a independência de Angola e Moçambique fora importante para a queda do apartheid na África do Sul e para o fim do regime branco na Rodésia, atual Zimbabwe.

Maxwell analisa com maestria os interesses econômicos envolvidos na região – Portugal com freqüência serviu de testa-de-ferro para companhias de outros países europeus – e de como os jovens oficiais que serviram nas guerras africanas acabaram adotando métodos e ideologias dos grupos rebeldes que foram combater, formando o Movimento das Forças Armadas (MFA) que foi essencial para a derrubada da ditadura portuguesa.

A maior parte dos capítulos do livro trata das disputas de 1974-1976 entre o MFA, comunistas e socialistas pelo controle político de Portugal e pelos rumos da Revolução dos Cravos. Após um período inicial de radicalização, com ocupação de fábricas e de terras e nacionalização de bancos, o país se divide entre um norte conservador e um sul rebelde, chegando próximo à guerra civil.

Meu interesse pelo período veio sobretudo das aulas que tive no mestrado com o sociólogo português Manuel Villaverde Cabral, mestre que alia erudição, simpatia e bom humor e brindou seus alunos com saborosas narrativas e análises do salazarismo, da Revolução e da construção da democracia. Pensei muito nele ao ler este livro.

Como bom historiador político, Maxwell está sempre atento aos líderes políticos, cujo comportamento é fundamental em momentos de crise e num país de instituições democráticas fragilíssimas, como era Portugal na época. Assim, temos ótimos perfis dos militares do MFA, do líder comunista Álvaro Cunhal e sobretudo do socialista Mário Soares, que no retrato do autor foi o herói do processo, dando à transição portuguesa um caráter moderado, sintonizado com o resto da esquerda da Europa Ocidental.

Outra característica marcante dos livros de Maxwell é a habilidade com que examina os vínculos entre política doméstica e o contexto internacional. Vemos como Portugal se situava nas relações com os EUA e sua participação na OTAN, a transformação da África Austral num campo de batalha da Guerra Fria, com envolvimento dos Estados Unidos, URSS, Cuba e China e a importância da Comunidade Européia para a consolidação democrática portuguesa, com os conflitos entre os comunistas locais e seus parceiros na Itália e França (que se assustaram com o radicalismo luso) e o apoio decisivo –inclusive financeiro - dos socialistas franceses e alemães a Mário Soares.

quinta-feira, setembro 21, 2006

Jogo de Cartas Marcadas



Perto do meu trabalho no centro do Rio de Janeiro, há um camelô que vende o “Baralho do Mensalão”. Por apenas R$5 o freguês adquire o jogo completo, onde cada carta representa um dos envolvidos, com direito a pequenas biografias. Os curingas são o “povo brasileiro” e o “próximo presidente”. Nenhum dos dois aparenta que irá mudar muito com o escândalo, diga-se de passagem.

Comprei o baralho (na foto, após um trabalhinho no programa de edição de imagens). Já havia visto algo semelhante satirizando os políticos próximos a Bush. Agora moda chegou por aqui. Não há indicação nas cartas do fabricante, apenas uma mensagem alegando se tratar apenas de brincadeira, sem objetivo político.

No mesmo espírito, resolvi entrar na farra. Nesta semana em que até Freud deu as caras na geléia geral brasileira, fiquei imaginando como seria um jogo de tabuleiro inspirado no governo Lula:

• Seu churrasqueiro foi pego num escândalo de corrupção. Vá discursar sobre a fome na Assembléia Geral da ONU e fique uma rodada sem jogar.

• Você nomeou metade do STF. Ganhe uma carta Saída Livre da Prisão.

• Um ex-presidente corrupto escreve uma carta para se queixar da corrupção e da apatia da oposição. Avance duas casas.

• Você distribuiu dinheiro para os pobres. Eles gostaram. Ganhe o Nordeste.

• Você ampliou sua base de apoio no Congresso fazendo um acordo com os partidos conservadores. Avance duas casas, mas entregue três estatais e um ministério para a bancada aliada.

• Você bebeu umas cachaças a mais e tentou expulsar um jornalista estrangeiro do país. Fique uma rodada sem jogar enquanto pede desculpas.

• Um dos seu correligionários é preso com dólares na cueca. Como punição, leve o Sarney no AeroLula e escute-o declamar “Marimbondos de Fogo” numa viagem Brasília-Tóquio.

• Você conseguiu colocar um homem de confiança na presidência da Câmara dos Deputados. Receba imunidade por três rodadas, mas deixe sua alma com a banca.

• Da Bolívia/Venezuela para o Brasil, três contra um. Ooops... você perdeu um centro estratégico!

• Deputados foram pegos com a mão na ambulância. Fique na sua, finja que não é com você. Perca o Ministério da Saúde.

• A Polícia Federal prendeu seu marqueteiro numa rinha de galo. Pague uma prenda: baile a dança da pizza com uma deputada do seu partido.

• Você diz na TV que não sabia de corrupção em seu governo. Os eleitores acreditam. Ganhe uma coleção de DVDs com os discursos de Roberto Jefferson, para ver no avião presidencial.

• A oposição nomeou um chuchu para enfrentar você. Fim do Jogo. Você venceu.

terça-feira, setembro 19, 2006

Jovens Inquietações na América do Sul



“Será que os jovens sul-americanos já estão mobilizados politicamente e falhamos em perceber isso, por que suas formas de organização são muito diferentes daquelas com que estamos acostumados?”. Essa foi a pergunta central da apresentação que fiz ontem, durante um seminário de dois dias para elaborar uma pesquisa sobre a juventude na América do Sul.

Razões para minha inquietação: há dois anos organizei um seminário no Chile, no Fórum Social daquele país, e todos me diziam que os jovens de lá não se interessavam por política. No entanto, o que foi diferente: vontade de participar, mas frustrada por não encontrar expressão nos canais tradicionais. A juventude esteve em peso no Fórum e dei muitas entrevistas em Santiago, falando sobre a experiência brasileira. Imagino que vários daqueles rapazes e moças estão envolvidos na Revolta dos Pingüins, os enormes protestos dos secundaristas chilenos.

Citei o caso em minha palestra, acrescentando outros exemplos históricos de mobilização juvenil na América do Sul, como a Reforma Universitária que se iniciou na Argentina em 1918 e se espalhou por todo o continente, bem como o movimento indígena katarista na Bolívia, cujos jovens líderes inovaram usando radionovelas em quéchua e partidas de futebol como modo de organização e propaganda.

Compartilhei com o público do seminário – pesquisadores e dirigentes de ONGs – minhas inquietações. Será que movimentos culturais como o hip-hop também não carregam um enorme potencial de mobilização? E a força das novas tecnologias de informação? Como podemos utilizá-la? Será que o atual boom do cinema latino-americano não expressa igualmente uma grande inquietação social, que também encontrará uma maneira de se posicionar politicamente?

Os debates foram muito bons e creio que embarcamos num projeto longo, de pelo menos dois anos, para pesquisar o tema.

sábado, setembro 16, 2006

Como Traí Dostoiévski




Encontrei recentemente um amigo de infância que não via há muitos meses. A literatura sempre foi nosso principal assunto de Conspiração, portanto tratamos de nos atualizar no que estávamos lendo. Ele ficou um tanto chocado com minha lista: Vargas Llosa, Cortázar, Carlos Fuentes, Agualusa: “Estão todos vivos!” Nem tanto. O mestre argentino deixou este mundo há 20 anos, embora continue presente em nossos corações, ou pelo menos em nossas estantes.

Meu amigo é um apaixonado visceral pela literatura russa do século XIX, em especial por Dostoievski, que conhece como poucos. Seu espanto com minha opção pelos contemporâneos implicava o sentimento de que eu estava traindo os clássicos e escolhendo autores que eram mais políticos do que cultores das belas letras. Procurei responder:

“Você lembra do que Stendhal escreveu n´”A Cartuxa de Parma,” que falar de política num romance era como dar um tiro num concerto? E no entanto, ninguém descreveu melhor do que ele as angústias dos jovens após a queda de Napoleão, querendo subir na sociedade e esbarrando nos preconceitos aristocráticos. Hoje as desventuras de Julien Sorel soam como drama literário, mas na época eram nitroglicerina pura em termos de política partidária.”

Desenvolvi o ponto: o que os contemporâneos encaravam como político nos clássicos, nós tratamos como questões “existenciais” ou “filosóficas”. Dentro de certos limites, é claro. “Crime e Castigo” é uma tragédia sobre ambição e ética, não um documento sobre as más condições de vida dos estudantes em São Petersburgo (embora eu acredite que se o Czar tivesse um bom programa de bolsas de estudo, o problema mais sério de Raskolnikov seria passar na prova final). Do mesmo modo, os estupendos relatos de Vargas Llosa sobre o terrorismo e a ditadura militar no Peru, ou as metáforas de Cortázar a respeito da mediocridade da classe média na Argentina também extrapolam o limite do “aqui e agora” de suas sociedades e são um testemunho sobre a bizarra trajetória da humanidade por este planetinha azul.

Thomas Seltzer, um velho crítico literário, afirmou que o segredo da literatura russa era a combinação de ideais humanitários e fidelidade à vida. Adoro a fórmula. Fidelidade à vida significa estar de olhos abertos ao mundo, à poeira que chega das ruas, às alegrias e aos dramas do cotidiano. Ideais humanitários são a aposta de que a vida poderia ser algo melhor e que trazemos potenciais desconhecidos e não-realizados.

Tais talentos não são exclusivos de gênios barbudos escrevendo no alfabeto cirílico em algum sótão moscovita. Penso mesmo que hoje a América Latina concentra o que há de mais rico, diversificado e interessante em termos de literatura. Ideais humanitários andam em falta, o bom tom intelectual é o ceticismo cinzento deste início de século. Mas a Mestra Vida, a quem devemos vassalagem, se esparrama pelas ruas do Rio de Janeiro, Buenos Aires, Bogotá, Lima e Cidade do México, sempre em movimento e renovação.

quarta-feira, setembro 13, 2006

Sem Medo da OEA




Da sopa de letras da política internacional, a OEA – Organização dos Estados Americanos – é uma das menos estudadas por acadêmicos brasileiros. Daí a importância do livro “Sem Medo da Diplomacia”, depoimento do embaixador Baena Soares ao CPDOC da Fundação Getúlio Vargas. O diplomata foi secretário-geral da OEA entre 1984 e 1994, período conturbado que envolveu as guerras civis na América Central, a invasão do Panamá pelos EUA, o golpe de Fujimori no Peru e o de René Cedars no Haiti.

O livro é uma longa entrevista das pesquisadoras do CPDOC – incluindo uma ex-aluna minha – com Baena Soares, parte de uma série dedicada às autoridades diplomáticas brasileiras. O embaixador, já aposentado, vive no Rio de Janeiro e é presença constante nos debates acadêmicos sobre relações internacionais, em que sempre tem uma observação interessante a acrescentar.

A OEA com freqüência é desprezada como sendo pouco mais do que um fantoche dos EUA, ou então condenada à irrelevância quanto ousa atuar contra Washington. Não é bem assim. Baena Soares teve posições firmes contra os Estados Unidos e conseguiu tornar a Organização ator importante nos processos de paz centro-americanos, particularmente na Nicarágua e na Guatemala. E isso em meio ao governo Reagan, quando os americanos buscavam soluções militares para os conflitos na região, apoiando os Contras nicaragüenses ou ditaduras em El Salvador, Honduras e Guatemala.

Aos meus alunos no Clio: vale dar uma lida bem atenta nas análises do embaixador sobre a ação do Grupo de Contadora e do Grupo de Apoio, e das desastrosas decisões que a Argentina tomou na América Central, que acabaram repercutindo na crença de que os EUA apoiariam as posições de Buenos Aires na guerra das Malvinas.

No meu trabalho com cooperação internacional, me encontro com alguma freqüência com pessoas que viveram essa época, principalmente guatemaltecos e salvadorenhos e sempre gosto de ouvir suas histórias. Por vezes trágicas, mas que constituem um exemplo impressionante de negociação política e reconciliação, com inimigos sentando à mesa e buscando saídas comuns. Nós, brasileiros, deveríamos conhecer melhor essas experiências.

Baena Soares também fala bastante sobre o papel da OEA em consolidar a democracia na América Latina, mas neste ponto a organização cometeu muitos erros, em especial com Fujimori, que estabeleceu um precedente perigoso, que quase foi seguido na Guatemala e de certo modo influencia o que ocorre hoje na Venezuela e até na Bolívia: um presidente forte que se vale de sua popularidade para minar as instituições de “controle e equilíbrio” do Legislativo e do Judiciário.

O embaixador também examina de maneira muito interessante os processos diplomáticos em organizações multilaterais, tanto na ONU quanto na OEA e comenta episódios da política externa brasileira dos anos 50 em diante. Sua análise privilegia o longo prazo, mesmo sem ganhos imediatos: “É preciso não ter medo de usar a diplomacia. Diplomacia não é jogo de futebol... é, em primeiro lugar, a arte de identificar matizes e jogar com elas.” Pode-se aplicar a mesma definição à política.

segunda-feira, setembro 11, 2006

Setembros




É 11 de setembro de 2001 e acabo de chegar na redação. Passo por uma amiga e dou “bom dia” ainda sonolento, início de manhã. Vou para meu computador e abro resenhas que preciso revisar. Dali a pouco ela avisa, caiu um avião em Nova York. Na semana anterior tinha havido um problema qualquer com um monomotor na cidade, pensei em algo semelhante. Ligo a TV na CNN e a imagem mostra uma coluna de fumaça saindo de uma área verde. Será o Central Park? A locutora fala alguma coisa sobre Washington e o Pentágono sob ataque. Fecho os arquivos das resenhas. Sei que não voltarei a abri-los tão cedo.

É 11 de setembro de 2004 e estou exausto num vôo entre São Paulo e Rio de Janeiro, fim de uma longa viagem que começara 12 horas antes em Johannesburgo, na África do Sul. O piloto se dirige aos passageiros e diz que aquela data é importante e merece ser celebrada. Eu e meus colegas nos entreolhamos preocupados.

É setembro de 2003 e estou terminando de escrever minha dissertação de mestrado em Ciência Política, tendo como tema a diplomacia americana após os atentados terroristas contra Nova York e Washington. Concluo que os ataques colocaram em primeiro plano uma agenda política que já existia de modo secundário desde o início da década de 90. Ela só precisava de uma grande crise internacional para vir à tona e conquistar a opinião pública.

É setembro de 2005 e penso na cor na qual pintarei a sala do meu novo apartamento. Não quero branco ou bege. Amarelo, talvez?

É 11 setembro de 2001 e a redação está a mil. Examino os arquivos fotográficos da Reuters e da France Presse e seleciono imagens para o site de notícias em que trabalho. Alguém tenta se comunicar com a sede da empresa, em Tribecca, a alguns quarteirões do World Trade Center. Sabemos que ela foi evacuada, mas não temos os detalhes.

É setembro de 2002 e estudo diplomacia americana numa disciplina do mestrado. Discutimos a crítica que Hans Morgenthau faz à doutrina da Contenção, o eixo da política externa dos EUA durante a Guerra Fria. Esse troço é ideológico e confunde o nacionalismo russo com a expansão do comunismo, diz Morgenthau. Observo que é uma confusão muito cômoda, que permite mascarar gastos militares e decisões agressivas como sendo um simples e legítimo gesto de autodefesa.

É setembro de 2005. Amarelo. Definitivamente amarelo.

É 11 de setembro de 2001 e minha chefe dá a ordem, “ninguém sai para almoçar!”. Pedimos sanduíches na lanchonete mais próxima. Adrenalina a mil. Alguém me pergunta se eu acho que foram mesmo os árabes. Respondo, confuso, que parece sofisticado demais para um grupo terrorista, pelo nível de planejamento exigido. Éramos rapazes ingênuos naqueles tempos...

É 11 de setembro de 2004 e o piloto continua seu discurso dizendo que a data deve ser louvada porque marca o aniversário... da adoção do código do consumidor brasileiro. Não é engraçado. Nem de longe.

É setembro de 2001 e chego ao Iuperj para prestar a prova de seleção à pós-graduação. No pátio central, alunos discutem o Hezbolá e a Al-Qaeda. Semanas depois almoço com meu irmão num restaurante em Varadero, Cuba. O garçom pergunta se somos árabes. “Brasileiros”, respondo. Ele não acredita: “Mas cristãos? Ou mouros?”. Na verdade, sou agnóstico, mas digo em meio à risadas que “soy cristiano”, em homenagem à religião na qual fui batizado. Às vezes acho que perdi um bom desconto naquela refeição.

É 11 de setembro de 2006. Dei aula pela manhã sobre economia política internacional. Revi artigos sobre direitos humanos, conversei com o assessor de imprensa sobre possíveis textos a respeito da articulação Índia, Brasil e África do Sul, preparei dois relatórios, tentei pagar contas (o banco estava lotado), discuti projetos de cooperação com universidades brasileiras e francesas, chequei preço de livros, pedi um sorvete de chocolate, fiquei de emprestar um Vargas Llosa para uma aluna.

A vida segue.

domingo, setembro 10, 2006

Banco Mundial e Combate à Pobreza




Na sexta-feira dei palestra sobre políticas de combate à pobreza numa “Simulação da ONU” promovido pela Universidade Estácio de Sá, evento que virou febre entre estudantes de relações internacionais. Cada um interpreta o representante de um país e as equipes se dividem em comitês que reproduzem o sistema das Nações Unidas. É um achado como ferramenta pedagógica: costuma ser uma maneira divertida de ensinar e os alunos levam a sério, preparando bons guias de estudo e se vestindo a caráter.

Me coube falar no comitê dedicado ao Banco Mundial. Os delegados tinham a missão de discutir as estratégias de redução da pobreza defendidas por essa instituição e minha tarefa foi expor a visão de uma organização não-governamental. A ONG em que sou pesquisador tem status consultivo junto ao Conselho Econômico e Social da ONU e atua com freqüência em parceria com o sistema das Nações Unidas, de modo que a simulação teve um toque bastante familiar.

Comecei discutindo as diversas maneiras de medir a pobreza, chamando a atenção para os enfoques que lidam não somente com a questão da renda, mas envolvem acesso a direitos, serviços públicos e abordam o impacto da discriminação social e racial sobre a falta de oportunidades - por exemplo, para conseguir emprego. Contei o caso de uma mulher nos EUA que usou seu primeiro cheque do Welfare não para comprar comida, mas para adquirir uma dentadura, alegando que sem dentes nunca seria aprovada numa entrevista de trabalho. Está certíssima.

Narrei impressões de viagens pela América Latina e África para mostrar que o crescimento do PIB, por si só, não significa a melhora das condições de vida. A experiência latino-americana recente contrasta níveis médios ou altos de aumento do Produto Interno Bruto ao mesmo tempo em que pioraram as desigualdades e o desemprego. No caso africano, destaquei a importância de investimentos em infraestrutura e em saúde pública (AIDS, tuberculose, malária), condições sine qua non para levar adiante mudanças sociais de vulto.

Daí fiz a ponte para criticar as Metas do Milênio da ONU, afirmando que são um retrocesso com relação às decisões das conferências sociais da década de 90. Frisei que refletem um cenário de maior fragilidade para a ajuda internacional e que o contexto não mudou após os atentados de 11 de setembro.

Encerrei a palestra falando sobre o papel das ONGs na fiscalização das políticas públicas e proposição de alternativas, mas ressaltei que nada substitui o Estado, que continua a ser o ator com real capacidade de colocar em prática ações de combate à pobreza. Seguiu-se um bom debate com os participantes e perguntas sobre economia política, controle à corrupção, modos de funcionamento de organizações não-governamentais, o papel de imprensa.... Todos foram muito gentis, as coordenadoras inclusive me perguntaram se eu poderia falar em outros campi da universidade.

A palestra foi no campus da Barra da Tijuca, ao lado do Barrashopping. Ainda dei um pulo lá, para ver as novidades na Fnac. Tudo muito limpo e elegante, gente bonita. Peguei a Avenida das Américas rumo ao centro e havia pobreza subsaariana em cada sinal de trânsito. Às vezes simplesmente detesto este país.

Imagem: pedaço do painel de Xavier Cortada, “Sonhando em acabar com a pobreza” na sede do Banco Mundial, em Washington.

quinta-feira, setembro 07, 2006

Favela, Cidade, Nação

Passei o feriado com duas grandes amigas que havia prometido apresentar por razões profissionais – a cineasta quer rodar um documentário sobre favelas, a especialização da cientista política. Foi um dia regado a conversas excepcionais que se estenderam noite adentro.

Um dos temas que surgiram foi nossa relação pessoal e profissional com as favelas. No meu caso, uma história em dois tempos. Começou quando eu era repórter do Globo e cobria principalmente a periferia do Rio de Janeiro, atrás de notícias de cidade e uma ou outra coisa de polícia. De modo geral costumava ser bem recebido, mas ocasionalmente a situação esquentava. Nunca me esqueci da diretora de uma escola numa favela da zona norte que certa vez me deu uma bronca merecidíssima: “Vocês só vem aqui para falar das coisas ruins [na ocasião, denúncias de que os traficantes tinham roubado o registro do colégio e iriam atrás dos alunos filhos de policiais], mas nunca estão presentes para noticiar as boas. Semana passada, por exemplo, tivemos um belo festival de música. Onde estavam vocês?”

Em momentos assim, todo jornalista se sente um pouco como urubu rondando a carniça, explorando uma realidade sofrida para ganhos pessoais (ou vá lá, porque o chefe mandou e a gente tem a carreira para se preocupar), sem conseguir dar nada em troca. O mesmo problema afeta outros profissionais de classe média que também se dedicam às favelas, buscando nela fontes de inspiração para escrever livros, teses ou realizar filmes. Qualquer pessoa com um mínimo de decência e de sensibilidade social se incomoda com essa relação e imagina maneiras de mudá-la.

Minha chance veio pouco depois, quando me juntei a um grupo de amigos num pré-vestibular comunitário, que atende principalmente moradores de favelas na zona oeste do Rio. Fiquei lá por três anos, lecionando redação. Das melhores coisas que fiz nesta vida. Lá aprendi a ser professor, conheci grandes amigos e me receberam com um carinho e ternura que ainda hoje me emocionam. Vários dos meus alunos entraram em universidades, uma delas agora trabalha comigo, outro em frente e sempre aparece para um papo. Laços de afeto tão profundo são raros, ainda mais num país tão fragmentado num apartheid social e racial (a moça e o rapaz que citei são negros) como o nosso.

Algo que me marcou muito dessa experiência foi a percepção da capacidade quase miraculosa de aprendizado e crescimento pessoal das pessoas com quem convivi. Me irrita imensamente quando ouço alguém dizer que o povo brasileiro é burro, ignorante, isso ou aquilo. Bobagem. Vi jovens muito pobres, em condições difíceis, terem um desempenho extraordinário. Tudo o que precisam é de alguém que os apóie, acredite neles e os estimule a desenvolver seu potencial. Ajuda financeira não faria mal: perdi ótimos alunos que precisaram largar o curso para ganhar salário mínimo e colocar dinheiro em casa.

A certa altura na conversa falamos do filme “Abril Despedaçado”, no qual minha amiga cineasta trabalhou. Comentei que minha cena favorita é a da encruzilhada pela qual o personagem de Rodrigo Santoro passa várias vezes. No fim, ele escolhe o caminho diferente do habitual e toma a estrada que vai dar no mar, deixando para trás a rotina sufocante de miséria, violência e vinganças familiares que dominara sua juventude. Minha amiga riu e comentou que a produção do filme procurou por muito tempo uma encruzilhada para usar na cena e não encontraram. Até que ela simplesmente construiu uma, com um trator.

Moral da história: tome o caminho alternativo na encruzilhada. Se ele não existir, fabrique um. Creio que vale para os países, tanto quanto para as pessoas. Esta é minha reflexão neste dia em que celebramos nossa pátria desigual.

terça-feira, setembro 05, 2006

Fratelli




O que fazer com a herança revolucionária quando não há Revolução à vista?

Durante a ditadura militar uruguaia, um grupo guerrilheiro havia roubado US$20 milhões do caixa 2 de empresas multinacionais instaladas no país. Dinheiro sujo, destinado à corrupção. Pouco depois do assalto, a rede foi desbaratada e todos fugiram, exilaram-se ou foram presos. Julgavam que a fortuna havia sido perdida. A morte do líder do grupo – conhecido pelo codinome Fratelli (irmãos, em italiano) promove o reencontro de todos em Montevidéu e a descoberta de que o dinheiro está a salvo numa conta secreta da Suíça. Cada um tem apenas um pedaço da senha, de modo que precisam colaborar. A questão: que destino dar à fortuna? Eis a trama de “Fratelli”, excelente romance de Eduardo Mariani. (clique neste link do Globo para ouvir o autor lendo o início do livro).

Depois de tantos anos, cada amigo seguiu um rumo e alguns se afastaram muito dos ideais da juventude. Moreno virou pequeno industrial na Itália (“sua liberdade o desconcertava. Ele a havia desejado muito, mas, tendo-a, se perguntava se não era um pouco parecida com solidão e indiferença do mundo”), Triana tornou-se médica na França. Marambio ficou no Uruguai e seguiu carreira como acadêmico e consultor empresarial (“Aventava-se seu nome como ministro ´técnico´ de um provável governo da esquerda.”). Brianza transformou-se num popular ator de TV (“Para ele, a revolução havia sido uma aventura, e tinha se visto nela no papel do herói, que não se furtava a encarnar ainda hoje.”). Outros foram vivendo como profissionais liberais ou pequenos comerciantes, sem nenhuma utopia que os unisse.

Mas acima de tudo e de todos, há Gaby. Bonita, sedutora, sem muitos escrúpulos, fugiu para Cuba e ascendeu a um cargo de importância no aparato de segurança do regime de Fidel. Ela se considera a única representante legítima da Revolução e pleiteia todo o dinheiro. Olha seus ex-colegas com um misto de ternura e desprezo: “Naquela Época, tinha sentido respeito e até amor por eles. Mas o que eram agora? Um pequeno rebanho de burgueses pacatos e conformistas. Só seu passado os diferenciava do mais vulgar dos comerciantes”.

Obviamente, muitos dos membros do grupo contestam os direitos de Gaby – ou de Cuba, dá no mesmo – de ser a continuidade autêntica com os ideais do passado. Atualíssimo nestes dias pós-Fidel.

O romance de Mariani é excelente ficção, com um olhar carinhoso sobre os desencontros e desilusões da geração da luta armada. E também ajuda a iluminar o debate sobre os rumos da esquerda neste início de século XXI, que não é propriamente a época mais feliz da história da humanidade.

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Este blog aderiu à campanha "Xô, Sarney", apoiando Cristina Almeida ao senado e em defesa da jornalista Alcinéa Cavalcante.

domingo, setembro 03, 2006

Jantar entre Amigos




A HBO não cansa de me surpreender pela qualidade de sua programação. Depois de minisséries épicas como “Band of Brothers” e “Roma”, os caras ainda arrumam tempo para produzir um ótimo telefilme como “Jantar entre Amigos”, que adapta a peça vencedora do Pulitzer de Donald Margulies, estrela da atual geração de dramaturgos dos EUA,

O enredo é de enganadora simplicidade: o divórcio dos melhores amigos faz com que um casal aparentemente exemplar examine sua própria relação. Impressiona o quanto de riqueza humana Margulies extrai dessa situação.

O casal que se divorcia, Tom e Beth (no filme, Greg Kinnear e Toni Colette), nunca foram modelo de felicidade. Um casamento marcado por infidelidade, amargura e a frustração da mulher em nunca ter se tornado uma grande pintora. O contraste é dado por Gabe e Karen (Dennis Quaid e Andie MacDowell), jornalistas especializados em gastronomia, bem-sucedidos e sofisticados.

O filme começa com a notícia do divórcio e termina alguns meses depois, com Tom e Beth satisfeitos em novos relacionamentos (com direito a um flashback mostrando o início de ambos os casamentos). Mas eles são pouco mais que pretexto para o drama de Gabe e Karen. Por que eles ficam tão irritados com a separação dos amigos, que afinal parecem estar lidando bem com a questão? E a inveja indisfarçável que sentem do ar de felicidade e renovação? Será que em algum lugar, eles não sonham em fazer o mesmo? E o quanto a amizade tão profunda entre os quatro não guarda de ressentimento do casal infeliz tentando imitar o ideal de perfeição de Gabe e Karen?

O texto de Margulies é primoroso e retrata situações nos quais todos se reconhecem – muito veio direto do relacionamento dele com a esposa. Leia a entrevista linkada acima e você verá as reações dos espectadores da peça, o silencio absoluto que reina quando ela é encenada.

Teatro de mais alta qualidade. Mesmo em telefilme.

sábado, setembro 02, 2006

Conversas com Cortázar



Cortázar acreditava em vampiros, achava que às vezes se duplicava e morria de medo de insetos em sua comida. Embora sejam características que eu não gostaria de ter, digamos, em meu dentista, não vejo problema em que façam parte da personalidade de um dos meus escritores favoritos. E ele tem muito a oferecer, como prova uma leitura do delicioso “Conversas com Cortázar”, do jornalista uruguaio Ernesto González Bermejo.

González reuniu em pouco mais de 100 páginas uma série de papos informais que teve com o escritor, de quem era amigo e que define como “um homem alto e tímido, de uma fraternidade contida” que tentava em seus livros “esticar a pele do cotidiano” e encarava a literatura como “exercício lúdico, antena da felicidade. Humanizadora.”

Cortázar fala bastante sobre suas obras mais famosas, principalmente os romances “O Jogo da Amarelinha” e o “O Livro de Manuel” e os contos que talvez sejam sua maior realização, em especial “O Perseguidor”, das páginas mais bonitas que li nesta vida. O escritor conta que sua paixão começou nos versos e daí passou às narrativas curtas, que podem ser inspiradas por uma palavra, uma imagem, uma cena do cotidiano: “Quando vou escrever um conto, sinto hoje, como há quarenta anos, o mesmo tremor de alegria, como uma espécie de amor.”

“O Jogo da Amarelinha” é bastante conhecido pela beleza da história de amor dos protagonistas, mas também pela criatividade formal - seus capítulos podem vir em diversas ordens, inclusive as inventadas pelo leitor. Cortázar afirma: “O romance não tem leis, a não ser a de impedir que a lei da gravidade entre em ação e o livro caia das mãos do leitor.”

As conversas também tem vários momentos interessantes sobre o fantástico entrando no cotidiano, marca registrada do autor, sobre tempo, política, música, identidade cultural argentina e a força da literatura da América Latina. Na casa de Cortázar há muitas moradas. Minha lista pessoal de favoritos é a seguinte:

1- O Perseguidor: declínio e queda de um grande músico de jazz, inspirado em Charile Parker.
2- A Auto-Estrada do Sul: um mega engarrafamento servindo para ilustrar o modo como todas as coisas importantes da vida são transitórias
3- Senhorita Cora: um adolescente internado num hospital se apaixona pela enfermeira, em meia dúzia de personagens está todo amor que houver nesta vida (e algum trocado só para dar garantia).
4- Casa Tomada: continua sendo um dos melhores testemunhos da rejeição da classe média argentina ao peronismo.

Alexandra: nem vem. Velho cego, que não saía da biblioteca, e tem nome de azeite, não dá nem para a comparação!

Fernanda, seguem os links para os textos que escrevi sobre “Todos os Fogos o Fogo” e “Os Prêmios”. Tem que descer um pouco a página até achar os posts, ok?
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