domingo, janeiro 29, 2006

Bolivarianas, movimento final


Uma amiga comprou o boneco de Chavez. Ao apertar sua espada, ele comeca a fazer um discurso, que dura 15 minutos e nao pode ser interrompido. O presidente da vida real dificilmente fala menos do que 3 horas, de modo que o comprador do brinquedo sai no lucro. Copyleft da foto: Rede de Informações do Terceiro Setor (www.rits.org.br)

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Jose Dirceu esta por aqui. Encontrei com ele duas vezes. Uma na marcha de abertura, quando ficou ao meu lado durante alguns minutos. Outra, quando visitou o espaco Brasil. Felizmente, nao precisei cumprimenta-lo em nenhuma das ocasioes. As pessoas fizeram fila para tirar fotos a seu lado.

Um gaiato comentou que Dirceu deveria ter sido fotografado segurando uma faixa bizarra que apareceu na marcha, dando vivas ao marxismo, leninismo e maoismo.

Outro observou que as atitudes do ex-ministro eram tipicas do stalinismo, da ideia de que "a historia me absolvera". "Imagine entao o Supremo Tribunal", acrescentei.

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Um grupo de jovens chavistas veio ao estande do Brasil esta manha, se despedir da gente. Tinham lagrimas nos olhos ao dizer adeus, e nos agradeceram efusivamente por nossa visita a Venezuela. Depois cantaram musicas em homenagem ao comandante. As letras garantiam que obedeceriam a qualquer ordem vinda de Chavez. Depois, eles nos pediram um abraco.

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Momento Ken Loach. Em todos os filmes do cineasta ingles ha uma cena em que o europeu que se envolve em alguma revolucao num pais latino eh dispensado de pagar o onibus ou o trem. "No need to pay!", espanta-se o heroi. Sinal de que esta em tempos interessantes. Chavez deve gostar de Loach, porque o metro esta gratuito para os participantes do FSM. No hay que pagar. Aproveitei para passear a vontade por Caracas.

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Ontem conversei com uma lider feminista iraquiana, que foi uma das estrelas do evento. Ela se reuniu com representantes de ONGs e movimentos sociais brasileiros, para discutir estrategias de colocar sua organizacao na midia e mudar a postura da esquerda tradicional, que tem privilegiado o discurso pro-insurgentes. Claro que o alvo eh a politica externa dos EUA, mas o problema eh que os rebeldes sao fundamentalistas que decapitam mulheres pro-democracia.

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O radicalismo anti-EUA eh forte por aqui. Todos so chamam o pais de "Imperio" e nao falta quem defenda teorias apocalipticas de que os marines estao chegando e vao ocupar a Amazonia, o Paraguai e o Nordeste. De minha parte, acho que a atual diplomacia americana ja eh suficientemente estupida e injusta se analisada de maneira moderada. A conversa com a lider iraquiana foi muito importante nesse sentido, deu face humana a tragedia que se desenrola no Oriente Medio.

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Momento Machado de Assis. Suporta-se com paciencia a revolucao do proximo. Mas bem que podiam dar um jeito nos sinais de transito.

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Embarco daqui a pouco de volta ao Brasil. Louco para vestir calcas que nao estejam enlameadas. Tenho um pouco de dor de cabeca por causa do pouco sono, mas acho que vou apagar no aviao.

sábado, janeiro 28, 2006

No Hay Bolsos

Fragmentos do meu trabalho no Espacio Brasil


"Hola, quiero un bolso con la bandera de Brasil"
"Olha, essas bolsas foram feitas pelo governo brasileiro e aqui eh um espaco da sociedade civil e dos movimentos sociais"
"Mas eu sou oficial da marinha mercante/deputado/bombeiro"
"O senhor/a pode fazer a gentileza de guardar sua carteira?"

*

"Quantos habitantes tëm o Brasil?"
"Tinha cerca de 180 milhoes quando sai de la. Proximo da fila, por favor"

*

"Voces estao mentindo sobre as bolsas. O primo do meu vizinho tem um amigo no governo e ele me disse que ha mais bolsas por aqui e voces estao escondendo todas elas."
"No hay bolsos."

*

"Como eu faco para conhecer portugueses que vivam em Caracas?"
"Mmmmm...."

*

"Meu amigo quebrou a perna e precisara ficar um mes por aqui, por causa da operacao. Voce pode me ajudar a transferi-lo ao Brasil, para ir ao hospital por la?"
"Consulado!!!!"

*

"No hay bolsos. Ei, garoto, voce poderia parar de chorar? "
"Alguem arranja uma bolsa pro menino?"
"No hay bolsos"

*

"Esse material esta a venda?"
"Nao, por incrivel que pareca eh tudo de graca. O Brasil eh um pais generoso."
"Viva Brasil! Alias, gostaria de agradecer ao Lula por tudo o que ele esta fazendo pela Venezuela."
"O Senhor quer que eu de o recado?"

*

"Nao me interessa que nao hay bolsos. Eu ajudei a descarregar o container de voces e acho que o governo me deve esta."
"No lugar do senhor, eu nunca acreditaria em governos."
"Pensando bem, eh melhor mesmo."

*

No quadro de recados

"Quiero un bolso. Favor entrar em contato em...

*

"Quer dizer que voce tambem fala italiano?"
"Pois eh, estudei por la. Noi oriundi siamo por tutto il mondo."
"Eh, somos uma mafia. Se precisar de algo na Venezuela, aqui esta meu telefone."

*

"Voce tem certeza de que Ciudad de Dios nao teve uma continuacao?"
"Tenho. O Ciudad de Dios 2 que os camelos vendem em Caracas eh uma versao pirata de um filme sobre uma radio comunitaria numa favela de Belo Horizonte, se chama Uma Onda no Ar. Mas te recomendo uma serie de TV chamada Ciudad de los Hombres, dos mesmos produtores de Cidade de Deus."

*
"Mira, mi amor. Vou colocar este chapeu para voce nao esquecer de mim. Volto aqui amanha atras de um bolso."
"Pode deixar, senhora, nunca vou me esquecer dessa."

*
(Venezuelanos vendo videos do Nos do Morro e do Afrorreggae)

"Aca es lo mismo"

*

"Pero estas seguro de que no hay bolsos? Ei, por que essa cara?"

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Pessoas e Idéias

Este é o quinto evento ligado ao FSM do qual participo nos últimos dois anos. De modo que resolvi que desta vez näo estarei de modo täo intenso nas atividades como debates e conferëncias. Tenho aproveitado mais para conversar com as pessoas e caminhar pela cidade. Estou gostando muito da experiëncia - este post é sobre alguns dos amigos que tenho feito por aqui. Sobre pessoas e idéias.

Elizabeth estuda sociologia na Universidade de Nova York. Ela caminhava com uma camiseta onde se lia "Drop Bush, not bombs" e caí na risada. É o que basta para começar uma amizade no FSM. Ela é muito envolvida no movimento pacifista dos EUA, principalmente na mobilizaçäo contra o recrutamento militar nas escolas e universidades. O discurso é bem articulado, ela deu até entrevista na Telesur falando sobre a campanha.

Trevor e Nick säo outros americanos que conheci por aqui, quando fotografávamos um belo painel sobre a história da Venezuela, num colégio ao lado do estande do Brasil. Perguntei-lhes se eles sabiam do que tratavam as imagens, e diante da negativa comecei uma pequena aula sobre os fatos principais mostrados ali - a açäo do frade Bartolomeu de Las Casas, pioneiro dos direitos humanos na América Latina, os ciclos de guerras civis, ditaduras, revoltas populares. Conversamos muito sobre a situaçäo no Brasil.

Silvia é uma velha amiga do movimento piquetero na Argentina. Nos encontramos mais uma vez em Caracas e ela me contou das expectativas da sociedade civil de lá para 2006: O governo Kirchner vai presidir o Mercosul e as organizaçöes sociais locais querem realizar uma ediçäo especial do FSM, para discutir integraçäo latino-americana e pressionar as autoridades por mais participaçäo nesse campo.

Nosso ritmo por aqui está uma loucura, em torno de 12 horas de trabalho ao dia, mais as festas à noite. Tivemos um ótimo jantar italiano com um grupo da pesquisa sobre juventude, ontem foi a vez de comemorar o aniversário de uma amiga num bar da cidade. Hoje deve rolar outra festa, na tenda dos americanos.

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Bolivarianas

O comércio informal em Caracas oferece de tudo: símbolos do Chávez, comida, DVDs, roupas. Um serviço que impressionou os brasileiros é o aluguel de telefones, fixos e celulares. Eles ficam presos a uma mesa, com correntes, e o cliente paga uma taxa por cada chamada. É bastante procurado.

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O sinal vermelho é apenas simbólico. Os carros os ultrapassam o tempo todo. Um amigo definiu a melhor estratégia para atravessar a rua: run, Forrest, run. Palavröes têm serventia ocasional.

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Os táxis näo têm taxímetro. É preciso negociar o preço a cada corrida. Mas o preço até que é razoável, a maioria das corridas sai entre R$10 e R$20.

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A frota de carros tem muitos automóveis velhos, com mais de 30 anos. Alguns säo verdadeiras relíquias, de antes do choque do petróleo dos anos 70. A elite anda naquelas caminhonetes importadas, tipo Pajero. A gasolina deve ser mais barata do que água, com tantas banheiras circulando.

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O metrö é barato, razoavelmente confortável e cobre quase toda a cidade. Mas o primeiro hotel em que fiquei era bem longe e por isso tive que pegar uns önibus caindo de velhos que cobrem várias áreas de Caracas. Sáo chamados de busetas. Como o s em espanhol soa como ss, vocës podem imaginar a quantidade de trocadilhos infames que os brasileiros inventaram. Ou o tom malicioso que adquirem comentários banais como "quanto mais velha a buseta, mais barata ela é".

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As mulheres venezuelanas mercem a fama de beleza, fruto da alta mestiçagem entre negros, brancos e índios. Säo realmente muito bonitas. Além disso, tem um jeito atirado, de segurar no seu braço e beijar seu rosto enquanto falam. Como poderia dizer um marqueteiro oficial, o melhor da Venezuela é a venezuelana.

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O ritmo de trabalho e vida por aqui faz a Bahia parecer um lugar de gente estressada. Os colombianos, que têm uma rixa com os venezuelanos, dizem que é o ritmo dos costenhos, dos que vivem à beira do Caribe. Mas as pessoas säo muito simpáticas, o que compensa tudo.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Aperte a Espada


Os camelôs de Caracas vendem um boneco do Chávez, parecido com o antigo Falcon. O brinquedo vem com uniforme militar de páraquedista e uma chamada na embalagem que diz "aperte minha espada".

É bem representativo do personalismo com que Chávez governa o país. Todas as camisas, faixas, panfletos e demais manifestaçöes polìticas locais trazem o nome e/ou a foto do presidente, que aliás é chamado principalmente de "comandante". Há poucas referências ao Movimento V República, o partido de Chávez. Ele me parece pouco mais do que uma plataforma eleitoral pela qual competem os defensores do presidente. O programa se baseia em lemas como "socialismo do século XXI", "revoluçäo democrática", "enfrentar o imperialismo" e "pátria grande", entendida como integraçäo latino-americana.

O boneco uniformizado também chama a atençäo para outro aspecto muito forte da política venezuelana, que é a militarizaçäo do governo Chávez. Claro, suas origens estäo no Exército de onde comandou o golpe fracassado em 1992, que no entanto o tornou símbolo do descontentamento com o sistema tradicional. Atualmente, as Forças Armadas säo uma das principais bases de apoios do governo. Vários generais da ativa servem como ministros ou presidentes e diretores de estatais.

Para agradar a essa clientela, Chávez está comprando muitas armas - fuzis russos, navios espanhóis, aviöes brasileiros. Também está criando uma milícia de cidadäos, creio que para ter respaldo popular na eventualidade de uma nova tentativa de golpe contra o governo, como a de 2002.

Penso que as conseqüências dessa militarizaçäo para a Venezuela seräo ruins. Duvido que os militares queiram voltar à rotina tediosa dos quartéis depois de provar o doce gosto do poder durante os anos de Chávez. Lidar com as Forças Armadas sedentas de prestígio, armas modernas ou salários altos poderá ser um problema para os próximos governos.

O Fórum Social Mundial começou ontem com uma bela marcha de abertura. Hoje iniciaram as atividades como debates e seminários. Passei metade do dia no estande do Brasil, atendendo aos visitantes. Agora tenho mais problemas de organizaçäo para solucionar, a burocracia por aqui causa várias dificuldades.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Venezuela: a batalha pela história



Hoje é o aniversário da queda da ditadura militar de Perez Jimenez, que terminou em 1958 e foi a última que afligiu a Venezuela. Naquele ano os principais partidos e sindicatos assinaram um acordo, conhecido como Punto Fijo, que garantiu a estabilidade no país até os anos 80. A oposiçäo a Chávez está usando a data para vender a idéia de que sua luta contra o governo é inspirada pelos mesmos sentimentos de liberdade da campanha contra Perez Jimenez.

Essa estratégia tem um lado explícito e outro mais sutil. O lado direto vem de manifestaçöes de ruas e artigos de jornal. Ontem foi realizada uma grande marcha contra Chávez. A manifestaçäo reuniu milhares de pessoas em Caracas e protestou contra várias coisas: a prisäo de lìderes oposicionistas, a conduçäo das eleiçöes e as iniciativas de aproximaçäo com outros países da América Latina, em especial Cuba. Chávez é acusado de investir dinheiro demais nesses países, em detrimento da Venezuela. A autoestrada Caracas-La Guaira, interditada (ver post anterior) é o tema mais quente, porque ela é vital para o país por ligar a capital ao aeroporto internacional e ao litoral. As próprias telecomunicaçöes podem ser afetadas, em funçäo de danos a cabos telefônicos.

Outras críticas säo mais sutis. Os jornais e as TVs destacam hoje vários aspectos da participaçäo da Igreja Católica na luta contra a ditadura Perez Jimenez, e também contra o ex-presidente argentino Juan Domingo Perón - que à epoca já havia sido deposto e estava exilado na Venezuela. Essas digressöes históricas estäo ligadas diretamente ao que ocorre atualmente no país, com líderes eclesiásticos protestando contra Chávez e os jornais atacando também o presidente argentino Néstor Kirchner, acusando-o de ameaçar a liberdade de imprensa. Também chovem críticas a Fidel Castro e comunistas em geral. Parece haver mais boa vontade com relaçäo a Evo Morales.

A batalha pela história näo se limita a Perez Jimenez. Bolívar está no centro de tudo na Venezuela: nos nomes das praças, ruas, fundaçöes. Na própria moeda e no novo nome oficial do país - República Bolivariana da Venezuela. A oposiçäo näo questiona a grandeza histórica do Libertador, mas contesta as interpretaçöes e usos que Chávez faz desse líder.

Apesar de toda a movimentaçäo política que vejo por aqui, dois fatos me chamaram a atençäo para um certo desinteresse popular. Perguntei a um taxista qual sua expectativa quanto ao Fórum Social Mundial, que começa amanhä, e ele sequer sabia do evento, apesar de ser comentado diariamente na TV e na imprensa. No hotel, um funcionário chegou a desligar a TV do hall em pleno discurso de posse de Evo Morales. Estou curioso para ver se atitudes como essas se repetiräo pelos próximos dias.

Chegando a Caracas



Parti do Rio de Janeiro junto a um grupo de cerca de 40 pessoas, entre funcionários de ONGs, militantes de movimentos sociais e funcionários do governo federal. Foi uma viagem longa até a Venezuela, porque fizemos escalas em Brasilia e Manaus. O clima a bordo foi excelente, com muitas piadas e brincadeiras entre o grupo. Enorme expectativa com relaçäo a ver as transformaçöes na América Latina. Chávez e Morales eram os assuntos principais, os mais entusiasmados falando até na possibilidade de construir um "socialismo para o século XXI". Espero que tenha melhor sorte do que o do século passado.

A chegada ao aeroporto foi tumultuada. Existe na Venezuela uma certa confusäo com relaçäo a qualquer atividade burocrática. Levamos duas horas até resolver a papelada da alfândega e em seguida fomos para Caracas, uma aventura à parte. A autoestrada que liga o aeroporto até a cidade está interditada em funçäo do quase desmoronamento de um viaduto. A alternativa é usar uma antiga estrada que serpenteia pelas montanhas. Um trajeto de 25 Km leva mais de duas horas, num caminho escuro e perigoso. O motorista da van comentou que há muitos assaltos por lá e por isso seguíamos em comboio com outros dois veículos - logo se tornou um enorme engarrafamento, com dezenas de carros.

A estrada atravessa várias favelas, que estäo por toda parte em Caracas, cidade encrustrada em meio a montanhas. O tamanho dessas comunidades impressiona até aos cariocas. O motorista nos contou a história de algumas delas: "Essa nasceu de um conjunto habitacional construído por Perez Jimenez [ditador que governou o país nos anos 50], aquela foi construída em cima de um lixäo, as pessoas estäo morrendo de dengue por lá."

Chegamos à cidade tarde da noite, as ruas desertas e com um aspecto sinistro, marcado por sujeira e pouca iluminaçäo. Por um problema com a agëncia de turismo, ainda tive que girar bastante até encontrar meu hotel. Só fui dormir de madrugada.

A maioria dos meus colegas só chega hoje, de modo que ao acordar fui passear pelas redondezas do hotel e checar onde estäo lugares importantes como restaurantes, bancos, farmácias, centros com copiadoras e internet, bancas de jornais etc . Coisas que precisaremos para o trabalho durante o Fórum. Estou até amanhä no barrio El Marques, uma zona de alta classe média bem situada de serviços e comércio. Amanhä me mudo para outro hotel, mais próximo ao centro.

sábado, janeiro 21, 2006

Sim, temos Carmen Miranda!



Gostaria de esclarecer alguns pontos:

1- Não sou travesti.
2- Gosto de bananas com aveia, no café da manhã, ou em vitaminas, ou no sorvete. Jamais na cabeça.
3- Não tenho qualquer nostalgia pelo samba dos anos 30 e 40, embora goste muito de Noel Rosa.

Isto posto, vamos aos comentários sobre a biografia de Carmen Miranda, escrita por Ruy Castro. O livro é excelente - uma pesquisa fenomenal não apenas sobre a cantora, mas sobre toda uma época, dos anos 30 aos 50, quando a indústria do disco, do rádio e do cinema passava por grandes transformações e se profissionalizava.

Ruy Castro mostra como a ascensão de Carmen se deu ao mesmo tempo em que o rádio se tornava uma potência no Brasil, projetando artistas como ela para todo o país. Os cassinos produziam grandes shows. Sua inovação como cantora foi ter dado ao samba uma interpretação mais maliciosa, sintonizada com o que havia de mais moderno na época. Além de seus dotes como carisma, beleza e uma simpatia tão contagiante que o leitor acaba ficando um tanto amigo dela.

A imagem esteriotipada que tenho dela veio de seu período nos EUA, quando adotou o figurino da baiana e se deixou infatilizar por Hollywood, para quem uma cantora latino-americana teria necessariamente que falar um inglês atroz e esbanjar na sensualidade. Embora Castro a defenda, dizendo que o mesmo acontecia com artistas como Frank Sinatra, é inevitável perceber que a temporada americana de Carmen foi bem menos fértil do ponto de vista artístico do que seus anos no Brasil.

Do ponto de vista pessoal, a alegre moça que deixou o Brasil vai se tornando uma mulher marcada pela solidão e pela amargura, tentando lidar com um ritmo de trabalho desumano às custas de estimulantes químicos que a tornam dependente e a levam à depressão.

Lendo a história de Carmen tantas décadas depois, fica a forte impressão de um momento de grande criatividade na cultura brasileira, que acabou tendo repercussão internacional - numa versão diluída e esteriotipada - via Hollywood. E vale pelas ótimas narrativas das aventuras de Carmen, Ary Barroso, Assis Valente e outros bambas tão importantes na música do nosso país.

quinta-feira, janeiro 19, 2006

Fazendo as Malas: Venezuela


Embarco na manhã de domingo para a Venezuela. Passarei uma semana em Caracas, trabalhando em eventos do Fórum Social Mundial, que neste ano será policêntrico, ocorrendo também no Mali e no Paquistão. As atividades nas quais estou envolvido prometem ser muito interessantes, abarcando movimentos sociais e acadêmicos de vários países da América Latina e da Europa.

É claro que para um cientista político especializado em América Latina ver em primeira mão os conflitos sociais do governo Chávez vai ser uma ótima oportunidade para aprender. A Venezuela passa por crises violentas desde os anos 80, quando o modelo de desenvolvimento construído em cima dos choques do petróleo desmoronou. Houve uma rebelião popular em Caracas, em 1989, duramente reprimida pelas autoridades. Os partidos tradicionais perderam a legitimidade e a confiança da população e o então tenente-coronel Chávez tentou um golpe militar (1992). Foi derrotado, mas tornou-se um líder nacional e ganhou as eleições presidenciais de 1998.

Em seus dois mandatos como presidente ele se antagonizou com praticamente toda a elite e a classe média da Venezuela, numa série de disputas pelo controle das principais instituições do Estado - Congresso, Suprema Corte e a poderosa estatal petrolífera, a PDVSA. Conflitos que chegaram às ruas e à violência, incluindo um fracassado golpe contra Chávez em 2002.

O que o mantém no poder? O preço do petróleo quintuplicou desde sua posse. A maioria desses recursos foi para políticas sociais (saúde, educação, controle de preços) ou para o apoio à integração sul-americana (parcerias com Brasil, Argentina, Cuba, Bolívia). A Venezuela virou um país-chave na política do continente, com dinheiro para financiar grupos políticos aliados, em países como Nicarágua, Colômbia e Peru. Sediar o Fórum Social Mundial é mais uma cartada de Chávez para afirmar sua liderança.

Espero encontrar um país dividido, tenso. Mas a expectativa é alta com relação ao Fórum e à riqueza dos debates que encontrarei por lá.

Interlúdio literário: o escritor mexicano Carlos Fuentes faz "O Elogio do Romance", a partir de Dom Quixote e suas contribuições para o diálogo entre culturas. Beleza pura.

domingo, janeiro 15, 2006

Nabuco e Machado de Assis


 Posted by Picasa

Nestes dias estive mergulhado nos Diários de Joaquim Nabuco - preciosidade que permaneceu no arquivo familiar por 100 anos e foi publicada pela primeira vez há poucos meses. A cereja do bolo foi um volume com sua correspondência com Machado de Assis. Pelos olhos dos dois, acompanhamos um bom pedaço da história do Brasil no fim do século XIX e início do século XX.

Nabuco foi amigo de Machado de Assis desde a adolescência, quando o escritou elogiou alguns poemas de circunstância do jovem intelectual. A amizade continuou por toda a vida, embora só tenha se aprofundado na velhice de ambos. As cartas são trocas de idéias e afetos por dois cavalheiros. O assunto principal é a Academia Brasileira de Letras, da qual ambos foram fundadores. Machado, normalmente reservado, se revela o mais expansivo na correspondência. É especialmente bonito e triste sua busca por consolo junto aos amigos, após a morte de sua amada esposa Carolina. A ironia e o ceticismo do autor de "Dom Casmurro" dão lugar a uma ternura comovente, que em geral não associamos a Machado.

Os diários de Nabuco começam na década de 1870, quando é um jovem em sua primeira viagem à Europa. Filho de um dos políticos mais importantes do Império, logo está na carreira diplomática, servindo nos EUA. Não parece ter gostado muito do país, embora reconhecesse que precisava conhecê-lo melhor.

Na década de 1880 Nabuco abandonou a diplomacia para se dedicar à política, tornando-se um dos líderes da campanha pela abolição dos escravos. Infelizmente, os Diários são lacônicos nesse período turbulento, quando seu autor estava ocupado demais com a causa mais nobre da época.

Nabuco era monarquista e caiu no ostracismo com a proclamação da República. Mas foram ótimos anos para sua obra literária, quase toda escrita nesse período. Tempos de mudanças em sua vida pessoal: casamento, filhos e uma quase ruína financeira por especulações mal-sucedidas na bolsa. Nos Diários, destaca-se sua crítica ferrenha ao novo regime, em particular a Floriano Peixoto. Sua descrição da vida no Rio de Janeiro durante a Revolta da Armada é de arrepiar.

Mas a República acaba por fazer as pazes com Nabuco, quando os presidentes civis o convidam a voltar à diplomacia, chefiando uma missão de disputa de fronteiras com a Guiana Inglesa (que Nabuco perdeu, mas porque o rei da Itália, que arbitrou a questão, nos passou a perna) e sendo o primeiro embaixador do Brasil nos EUA.

Para um professor de política externa brasileira, esse é o trecho mais interessante do Diário - traz revelações que aumentam nosso conhecimento de como o Brasil buscou uma "aliança não-escrita" com os Estados Unidos. Nabuco mostra sua preocupação em se aproximar de Washington para criar uma força que contrabalanceasse o imperialismo europeu, então em seu auge - a Venezuela chegou a ser bombardeada por se recusar a pagar sua dívida externa. Infelizmente, a opinião de Nabuco sobre a América do Sul era terrível, com todos os preconceitos que os monarquistas do século XIX tinham das repúblicas vizinhas.

Embora Nabuco tenha sido muito importante para a ação diplomática conduzida pelo barão do Rio Branco, me surpreendeu saber que os dois não se davam muito bem. Nabuco se queixa de que o barão põe o poder acima de tudo e que sua amizade foi destruída quando ele se tornou ministro das relações exteriores. Outra surpresa é ver que apesar do célebre cosmopolitismo do autor dos Diários (que chegou a ser considerado esnobe por alguns contemporâneos) reclama da futilidade da vida social diplomática e até da comida congelada que os americanos adoram. E, sobretudo, tem saudades do Brasil: "As idéias devem ter asas, mas o coração não as pode ter."

Grande Nabuco.

sábado, janeiro 14, 2006

Redenção


Stanley e Arnold se conheceram no fim dos anos 70. Ambos eram adeptos do fisiculturismo e Arnold se impressionou pelos músculos do colega. “Olhe aqueles braços, parecem pernas!”, ele disse a um amigo.

Infelizmente, Stanley Tookie Williams encontrou aplicações não muito saudáveis para sua força física, como fundar e liderar os Crips, gangue que foi a mais poderosa de South Central, o célebre gueto de Los Angeles que já foi cenário de duas grandes insurreições populares. E de muito sofrimento e violência sem sentido.

Os Crips teriam nascido com o propósito de autodefesa, de patrulhar as ruas do gueto. Mas logo se tornaram uma quadrilha em guerra com outras, em particular um longo e sangrento confronto com os Bloods, que se espalhou por várias cidades dos EUA. Stanley foi preso acusado de roubo e de quatro homicídios. Havia problemas no inquérito e ele alegou inocência, mas os tribunais o condenaram à morte.

Passou 25 anos na prisão. A primeira década foi marcada por comportamento agressivo, envolvimento em brigas e tentativas de fuga, que culminaram com um isolamento de 6 anos na solitária. Até que algo mudou. Nos anos 90, Stanley iniciou um processo de autotransformação e se tornou um escritor famoso mundialmente, escrevendo suas memórias e livros para crianças, condenando o envolvimento em gangues. Fez tentativas de intermediar guerras entre quadrilhas, em especial entre os Crips e os Bloods. Foi indicado ao prêmio Nobel da paz e ao de literatura.

Sua vida virou filme em “Redenção”, na qual Stanley é interpretado pelo excelente ator Jamie Foxx. Quem primeiro me falou do filme foi o
Helvécio e ontem assisti à história na TV a cabo. Infelizmente, a exibição
do filme se deve ao fim trágico desse drama da vida real.

Após décadas de batalhas jurídicas, o caso de Stanley chegou à mesa do governador da Califórnia – ninguém menos que seu velho colega de fisiculturismo, Arnold Schwarznegger. O Exterminador negou clemência e temo que a “maioria silenciosa” dos americanos tenha apoiado sua decisão.

Stanley foi executado no último dia 13 de dezembro. Por coincidência, o aniversário de Jamie Foxx, que o interpretou de forma brilhante em “Redenção”.

terça-feira, janeiro 10, 2006

Conto de Duas Cidades


A primeira coisa que fizeram com meu colega foi espancá-lo com um pedaço de pau cravejado de espinhos. Depois lhe deram um tiro no pé, para que não pudesse fugir. Arrastaram-no até o alto do morro, onde amputaram suas pernas com um serrote. Pedia perdão aos gritos, prometendo sair do Brasil caso fosse solto. Assim morreu Tim Lopes. Ponto de virada para o jornalismo no Rio de Janeiro. Mostrou-nos que também somos vulneráveis na guerra da Cidade Partida. Óbivo ululante, mas a ficha demorou a cair.

O assassinato de Tim é o ponto de partida para “Narcoditadura”, de Percival de Souza, veteraníssimo repórter da crônica policial. Seu livro-reportagem analisa o poder do crime organizado, dissecando casos como a formação do PCC em São Paulo, a ação das máfias no Espírito Santo e as disputas por poder na PF durante o governo FHC. E acompanha a reação da sociedade civil organizada à morte de Tim. Associação Brasileira de Imprensa, intelectuais, líderes cívicos. Tim como símbolo da cidadania.

Corte para a outra cidade. Onde Tim Lopes não é herói, mas X-9.

Paulete dirige um centro comunitário na favela da Rocinha e dá aulas para um grupo de moças que sonham ser modelos. Conhece todo mundo, e é respeitado apesar de ser homossexual assumido. Está ajudando o sociólogo Luciano numa pesquisa, que resultará em livro sobre a Rocinha. Sua vida muda quando um artigo publicado por Luciano revela mais do que devia sobre os meandros da favela e desperta a ira simultânea de traficantes, ONGs e líderes comunitários. A chapa esquenta e sobra para Paulete acusada de "ter colocado um Tim Lopes no morro".

Paulete é o narrador de um dos melhores romances brasileiros recentes, “Sorria, você está na Rocinha”, do jornalista Júlio Ludemir. Através dos comentários de Paulete e Luciano, surge um retrato fascinante das ligações perigosas entre favela e asfalto, entre o tráfico e o poder público, tudo isso mediado por líderes de ONGs e associações comunitárias que se valem de suas relações pessoais privilegiadas com a imprensa, governos e organizações filtantrópicas para virarem uma elite dentro da
favela e explorá-la em seu próprio benefício, copiando os hábitos e o consumo da classe média da zona sul. Indústria da miséria que faz a Rocinha ser o terceiro ponto turístico mais visitado do Rio.

Há pouca ficção no romance de Ludemir. Pessoas familiarizadas com a crônica policial e com o mundo ONG carioca percebem razoavelmente fácil quem é quem no livro. Os nomes importam menos do que os mecanismos descritos no texto. Aliás, o próprio Ludemir caiu fora do Rio de Janeiro após a publicação do livro. Em seu lugar, faria o mesmo.

“Narcoditadura” afirma que o tráfico se estabeleceu como um um regime autoritário nas favelas, nas prisões e estendeu seus tentáculos às instituições do Estado, ameaçando a democracia. “Sorria, você está na Rocinha” examina a maior favela da América Latina e afirma que o jogo lá é mais complexo. O tráfico alimentou a economia local a tal ponto que ela hoje não depende mais dele, embora não possa ignorá-lo. E surgiu uma elite com força para negociar com o asfalto e se estabelecer como um elo entre o poder público e os moradores.

domingo, janeiro 08, 2006

Um Cadáver na Política Externa


A morte, aparentemente por suicídio, do general Urano Bacellar é um cadáver na política externa do presidente Lula. O militar comandava a missão de paz da ONU no Haiti, uma empreitada desastrada comandada pelo Brasil porque o Itamaraty resolveu que era uma maneira de se credenciar para tornar-se membro permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas.

A morte do general vem na mesma semana em que o Japão anunciou sua retirada do G-4, a articulação diplomática pela vaga no Conselho que também inclui Brasil, Alemanha e Índia. Se é que ainda resta alguma expectativa de reforma depois do fiasco da cúpula da ONU em setembro.

A missão no Haiti caminha mal. Começou torta, dando suporte ao regime autoritário que depôs o presidente eleito (ainda que corrupto) Jean-Bertrand Aristide. As eleições já foram adiadas quatro vezes. O Exército patrulha as ruas de Porto Príncipe, a capital do país, fazendo o trabalho de polícia que sempre se recusou a desempenhar no Brasil.

A ONU está no Haiti porque crises naquele país jogam milhares de refugiados nas praias da Florida. O governo Bush está ocupado demais matando iraquianos para realizar uma ocupação no Haiti (como a que Clintou executou em 1994, com a abstenção do Brasil na ONU). Felizmente encontrou o Itamaraty disposto a bancar o pistoleiro de aluguel para os EUA, em nome da miragem do Conselho de Segurança. Como sempre, a elite política maquina em seus belos gabinetes de Brasília e a tropa de linha paga o preço dos erros.

Outros comandantes de missões de paz da ONU passaram por sérios problemas psicológicos, em virtude das terríveis dificuldades de sua atividade. Me vem à mente o general Rómeo Dallaire, que liderou os capacetes azuis em Ruanda. Mas a se confirmar o suicídio do general Bacellar, creio que será o primeiro caso dessa gravidade num oficial de patente tão alta a serviço das Nações Unidas. O fator humano. Não ajuda nos sonhos de grandeza da política externa brasileira.

quinta-feira, janeiro 05, 2006

Anos Rebeldes

Meu fim de 2005 teve um inusitado sabor de anos 60. Meu irmão esteve no Rio e trouxe o DVD da minissérie “Anos Rebeldes”, de Gilberto Braga. Tínhamos adorado o programa quando ele foi exibido em 1992, e nos surpreendemos em descobrir que gostamos mais ainda desta segunda vez. Para quem não se lembra, o enredo acompanhava um grupo de amigos desde o golpe de 1964, até o período da repressão política mais violenta, no início da década de 70. O centro da trama era o triângulo amoroso entre o idealista João Alfredo (Cássio Gabus Mendes), um estudante de sociologia que se junta à luta armada, sua namorada Maria Lúcia (Malu Mader), que prefere tentar ser feliz longe da política, e o melhor amigo de ambos, Edgar (Marcelo Serrado) um executivo em ascensão.

Ao redor do trio gravita um grupo de amigos e parentes que forma um painel da classe média e da elite brasileira da época, como o hippie Galeno (Pedro Cardoso), o banqueiro Fábio (José Wilker) e sua filha Heloísa (Claudia Abreu). Da primeira vez que vi a série, João Alfredo me pareceu o protagonista. Hoje, minha impressão é que Heloísa é quem conduz a trama, é a personagem que passa pelas maiores transformações. Começa como uma moça rebelde diante da família rica e convencional e termina como uma espécie de Leila Diniz de metralhadora na mão, uma guerrilheira que uniu a utopia libertária – arte, sexualidade, costumes – à política. O próprio João Alfredo reconhece isso ao dizer que ela é a verdadeira revolucionária.

A sociedade em geral pune aqueles que querem transformá-la muito rapidamente e a morte de Heloísa é uma das cenas mais fortes e bonitas da série. Impressiona também como o evento serve de catalisador para guinadas nas vidas de todos os outros personagens que circulavam a seu redor. Dali a série salta para um epílogo em 1979, com a volta dos anistiados e os primeiros passos no caminho da redemocratização do Brasil.

Eu era um estudante do ensino médio em 1992 e muita água rolou por baixo da ponte desde então. Rever a série foi me deslumbrar com várias citações à vida política e cultural dos anos 60, que me haviam passado desapercebidas da primeira vez. Afinal, muitos de meus profesores e colegas de trabalho viveram a época de modo muito intenso, com envolvimento na luta armada e em outras formas de resistência. A série também é um pouco da história deles e me emocionei em vários momentos.

Disse a minha família que é preciso contar o que veio depois, a história da geração que chega ao palco com a redemocratização dos ano 80 e agora vive o governo Lula. “Seriam os ´Anos Babacas´”, desabafou meu pai. Acho que não. Construir uma sociedade democrática neste país meio atrapalhado é uma tarefa difícil, heróica mesma, em qualquer circunstância.
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