Conto de Duas Cidades
A primeira coisa que fizeram com meu colega foi espancá-lo com um pedaço de pau cravejado de espinhos. Depois lhe deram um tiro no pé, para que não pudesse fugir. Arrastaram-no até o alto do morro, onde amputaram suas pernas com um serrote. Pedia perdão aos gritos, prometendo sair do Brasil caso fosse solto. Assim morreu Tim Lopes. Ponto de virada para o jornalismo no Rio de Janeiro. Mostrou-nos que também somos vulneráveis na guerra da Cidade Partida. Óbivo ululante, mas a ficha demorou a cair.
O assassinato de Tim é o ponto de partida para “Narcoditadura”, de Percival de Souza, veteraníssimo repórter da crônica policial. Seu livro-reportagem analisa o poder do crime organizado, dissecando casos como a formação do PCC em São Paulo, a ação das máfias no Espírito Santo e as disputas por poder na PF durante o governo FHC. E acompanha a reação da sociedade civil organizada à morte de Tim. Associação Brasileira de Imprensa, intelectuais, líderes cívicos. Tim como símbolo da cidadania.
Corte para a outra cidade. Onde Tim Lopes não é herói, mas X-9.
Paulete dirige um centro comunitário na favela da Rocinha e dá aulas para um grupo de moças que sonham ser modelos. Conhece todo mundo, e é respeitado apesar de ser homossexual assumido. Está ajudando o sociólogo Luciano numa pesquisa, que resultará em livro sobre a Rocinha. Sua vida muda quando um artigo publicado por Luciano revela mais do que devia sobre os meandros da favela e desperta a ira simultânea de traficantes, ONGs e líderes comunitários. A chapa esquenta e sobra para Paulete acusada de "ter colocado um Tim Lopes no morro".
Paulete é o narrador de um dos melhores romances brasileiros recentes, “Sorria, você está na Rocinha”, do jornalista Júlio Ludemir. Através dos comentários de Paulete e Luciano, surge um retrato fascinante das ligações perigosas entre favela e asfalto, entre o tráfico e o poder público, tudo isso mediado por líderes de ONGs e associações comunitárias que se valem de suas relações pessoais privilegiadas com a imprensa, governos e organizações filtantrópicas para virarem uma elite dentro da
favela e explorá-la em seu próprio benefício, copiando os hábitos e o consumo da classe média da zona sul. Indústria da miséria que faz a Rocinha ser o terceiro ponto turístico mais visitado do Rio.
Há pouca ficção no romance de Ludemir. Pessoas familiarizadas com a crônica policial e com o mundo ONG carioca percebem razoavelmente fácil quem é quem no livro. Os nomes importam menos do que os mecanismos descritos no texto. Aliás, o próprio Ludemir caiu fora do Rio de Janeiro após a publicação do livro. Em seu lugar, faria o mesmo.
“Narcoditadura” afirma que o tráfico se estabeleceu como um um regime autoritário nas favelas, nas prisões e estendeu seus tentáculos às instituições do Estado, ameaçando a democracia. “Sorria, você está na Rocinha” examina a maior favela da América Latina e afirma que o jogo lá é mais complexo. O tráfico alimentou a economia local a tal ponto que ela hoje não depende mais dele, embora não possa ignorá-lo. E surgiu uma elite com força para negociar com o asfalto e se estabelecer como um elo entre o poder público e os moradores.
7 Comentarios:
Acho que vou fazer umas encomendas por aí. Fiquei curiosa pra ler os dois. :)
Eu também fiquei curiosa. Li Cidade Partida e Cidade Cerzida mas não achei que nenhum dos dois correspondia a algum ponto de vista razoável (de acordo com meu próprio ponto de vista)... É triste porque o dinheiro que roda no tráfico (que nunca foi pouco) está, mais que nunca, fora de medida. O poder dos narcotraficantes, por conseqüência, também cresce de forma incomensurável. Por esse poder, estes homem deixam de ser "apenas" traficantes de drogas para tornarem-se bandidos extremamente bárbaros e cruéis... No fim, rola uma deprê, um desânimo e a utopia de que consigamos mudar estes cenários.
Até!
Minhas caras,
de dez anos para cá foram lançados muitos bons livros sobre a violência no Rio. Além dos que a Claudia mencionou, vale citar também "Abusado", do Caco Barcellos (ascensão e queda do traficante Marcinho VP) e, claro, "Cidade de Deus", do Paulo Lins.
Gostei bastante dos dois que comentei no post. Aliás, impressiona como o Iuperj vem se dedicando ao tema. Só no semestre passado foram dois cursos sobre violência.
Bjs
Li o do Percival. Ainda sou mais "Abusado", do Caco Barcellos.
Também gostei muito do livro do Caco Barcellos. Aliás, a obra vai ser adaptada para o cinema.
Abs
Li "Abusado" quase todo num final de semana.Na época me impressionou e surpreendeu o poder do tráfico haja visto morar um pouco distante do Rio.Santos, por suas similaridade geográfica, também sofre com esse "câncer".
Após acabar minha atual leitura vou procurar esses dois livros.
De qualquer forma este é um problema de difícil solução enquanto não se pensar no longo prazo como educação e saúde de melhor qualidade e acessível a todas as camadas da população.E não nos esqueçamos que quem alimenta o tráfico são os compradores que, na sua maioria, não estão nos morros e sim aqui embaixo.
Abraços
Oi, Sergio.
O Percival fala bastante da questão do consumo, assumindo a posição de que as pessoas que compram drogas também fazem parte da narcoditadura, porque a sustentam financeiramente.
Nas festinhas aqui na zona do sul do Rio, já perdi a conta de quantas vezes o papo habitual sobre como a cidade é violenta foi interrompido para alguém circular droga.
Assim é difícil mudar qualquer coisa.
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