domingo, fevereiro 26, 2006

O Caçador de Pipas



Ocasionalmente uma crise internacional num país periférico se transforma em matéria-prima para uma obra de arte poderosa, e então os olhos do mundo se concentram naquele assunto. As pessoas não são indiferentes ao sofrimento alheio, mas às vezes é preciso que a sensbilidade de um artista mostre que nomes difíceis de pronunciar e lugares distantes no mapa tratam de seres humanos com aspirações bem semelhantes a nós. "Hotel Ruanda" fez isso pelo genocídio dos tutsis. "O Caçador de Pipas", romance de estréia de Khaled Hosseini, tornou-se um best seller mundial ao tratar da história de dois amigos, tendo como pano de fundo a história recente do Afeganistão.

Amir é um garoto filho de um rico comerciante de Cabul. Seu grande companheiro de brincadeiras é Hassan, filho do velho criado de seu pai. Os dois são unidos por uma amizade profunda, mas bastante conscientes das divisões sociais e étnicas que os separam: Amir é um pashtun, o grupo dominante, enquanto Hassan é um Hazara, uma minoria de traços mongólicos perseguida e ocasionalmente chacinada ao longo da história afegã.

A amizade entre os dois meninos atinge seu auge durante um campeonato de pipas, mas nessa competição Amir comete um ato de covardia e traição imperdoáveis a seu amigo, um gesto que terá conseqüências graves para a vida de ambos e encherá Amir de culpa por décadas.

Pouco após esse momento decisivo, o Afeganistão é invadido pela URSS e Amir e sua familia se exilam nos EUA, perdendo seu status de magnatas e vivendo do comércio de quinquilharias. Mas a vida segue: Amir se casa com uma jovem afegã e inicia uma carreira promissora como escritor. Vinte anos depois, é supreendido por um telefonema do antigo sócio de seu pai, convocando-o a retornar ao Afeganistão, então sob domínio dos Talibãs, e reparar o mal que havia feito a Hassan.

A amizade entre os dois meninos e os trechos sobre os afegãos exilados nos EUA são narrados com habilidade e talento: as brincadeiras das crianças, as influências culturais misturadas (como os faroestes de John Wayne dublados em farsi), a relação difícil entre Amir e seu pai, a paixão pela noiva, tudo é excelente. A parte final do romance, a jornada de retorno ao Afeganistão devastado pelos Talibãs, é bem fundamentada do ponto de vista dos fatos históricos, mas parece mais uma reportagem sobre as atrocidades dos fundamentalistas do que uma obra de ficção.

Finais felizes não são comuns na Ásia Central. Há muito sofrimento no romance e o autor se pergunta se a sua história terminaria bem. Ele diz não saber: "Afinal de contas, a vida não é um filme indiano. Zendagi migzara, como os afegãos tanto gostam de dizer. A vida continua, sem se preocupar com começos, finais, kamyab, nah-kam, crise ou catarse; apenas seguindo em frente, como uma caravana de kochis, lerda e empoeirada."

O autor, Khaled Hosseini é um médico afegão filho de diplomata que vive nos EUA há 25 anos, desde que sua família fugiu dos soviéticos. O que o levou, aos 40 anos, a escrever seu primeiro romance? Creio que as conseqüências do 11 de setembro (retratadas no livro) despertaram suas memórias de infância e de adolescência. É uma obra poderosa, que está sendo adaptada ao cinema. Espero que Hosseini escreva outras, seu romance mostra talento incomum e acredito que ele tem mais a contribuir. A editora brasileira disponibiliza on-line o primeiro capítulo, grátis. Recomendo a leitura.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Crime Delicado


Beto Brant, diretor de “Os Matadores”, “Ação entre Amigos” e “O Invasor” é um dos raros cineastas de quem vi todos os filmes. OK, “Crime Delicado” é apenas o quarto da lista. A fidelidade se justifica por sua obra original e criativa. Sempre há em seus longas algo interessante que merece ser conferido. Este é seu trabalho mais ousado. Não é para todos os gostos. Faço minhas as palavras da jornalista Ana Paula Sousa: “Não é um filme fácil. Quem embarca na história sai da sala com um nó na cabeça. Isso, antes que alguém pergunte, é, sim, um elogio.”

Vamos ao enredo: Antônio (Marco Ricca) é um crítico de teatro mordaz, à la Barbara Heliodora. Ele se apaixona por Inês, uma mulher que só tem uma perna (Lilian Taublib, deficiente física na vida real) e que mantém uma estranha relação com José, um pintor mexicano para quem posa. Numa noite, Antônio visita Inês bêbado, os dois discutem e brigam e terminam na cama. No dia seguinte, ela o acusa de estupro. A situação é ambígua o suficiente para que cada espectador pense o que quiser.

O filme inclui trechos de peças sobre a paixão e o ciúme, a respeito das quais Antônio depois escreve suas críticas teatrais. Ele se queixa do caos e da falta de sentido das montagens e parece querer que todas as histórias de amor sejam organizadas e claras. No fundo, admite ser um homem que vive em terceira pessoa, como um espectador de si mesmo.

Inês subverte essa relação e o defronta com outro modelo de arte na sua intensa relação com José, que pinta quadros onde sexo e deficiência física caminham lado a lado. Antônio diz que é pornografia e que o artista é um fetichista que a manipula. Somente no fim do filme conheceremos melhor José, que dá um belo depoimento sobre o que pensa a respeito da vida, da morte e da troca de experiências entre pintor e modelo. José é interpretado por Felipe Ehrenberg, artista plástico e adido cultural do México em São Paulo.

Vi “Crime Delicado” numa pequena sala no Centro Cultural Laura Alvim. Saí da sessão sem saber ao certo se entendi ou gostei do filme, mas caminhando por Ipanema no início da noite, foi ficando mais forte um sentimento de bem-estar e de inquietação, com cenas pipocando na cabeça. Não é qualquer filme que me faz sentir isso. Beto Brant, aguardo seu quinto longa-metragem.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Bono e a Filantropia


Assisti pela TV ao show do U2 em São Paulo. Gostei muito. Belas interpretações para canções como "One", "Where the Streets Have no Name", "Sunday Bloody Sunday", entre outras. Houve até leitura da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Bono é bastante engajado na filantropia internacional. A Time o apontou como uma das pessoas do ano de 2006, ao lado de Bill e Melinda Gates, que presidem uma gigantesca fundação de caridade. Em que medida a filantropia ajuda a resolver problemas sociais?
Vou me concentrar na África, tema que até já rendeu post por aqui.

Existe um grande fluxo de caridade privada para o continente africano, em geral por agências ligadas a associações religiosas. E há também a Ajuda Oficial ao Desenvolvimento (AOD), doações feitas por governos de países ricos. Numa série de conferências internacionais desde os anos 70, foi acordado que a AOD seria de 0,7% do PIB dessas economias, mas só os nórdicos cumprem a meta.

Recentemente o economista Jeffrey Sachs (na foto, com Bono) escreveu "O Fim da Pobreza", prefaciado pelo vocalista do U2, no qual defende que se os acordos relativos à AOD forem cumpridos, será possível erradicar a miséria no mundo nos próximos 25 anos. As teses de Sachs envolvem seu trabalho na ONU, como um dos responsáveis pelas Metas do Milênio. Li o livro durante minha viagem à Venezuela e acho que tem méritos, em especial ressaltar a relação entre saúde pública, degradação ambiental e desenvolvimento. Para Sachs, a AOD é vital para investir em infraestrutura, como estradas e eletricidade, e romper o círculo vicioso de doença e destruição dos solos que tem levado a quedas brutais da produtividade agrícola na África.

Ele afirma que o fim dos subsídios agrícolas nos EUA e na Europa não teria grande impacto entre os países africanos mais pobres, e beneficiaria sobretudo nações em desenvolvimento que são grandes exportadoras de alimentos, como Brasil e Argentina.

Outro ponto ressaltado por Bono e por Sachs, são as campanhas por abolição (ou diminuição) da dívida externa dos países africanos. O pagamento de juros consome a maior parte da receita dos governos do continente, em função de compromissos assumidos por ditaduras. O movimento tem ganhado força, sobretudo na Europa. O ministro da Fazenda do Reino Unido, Gordon Brown, tornou-se um dos principais defensores dessa idéia. Está capitalizando apoios para substituir Tony Blair como primeiro-ministro.

Tanto a AOD quanto a caridade privada freqüentemente seguem a agenda política definida pelos doadores. "Quem come do meu pirão, prova do meu cinturão", diz o provérbio. Isso dá margem a conflitos, na medida em que as prioridades do mundo desenvolvido nem sempre são encaradas como tal na África. Mas o problema principal é a formação de uma cultura da dependência, envolvendo elites corruptas e as agências de financiamento. O escritor moçambicano Mia Couto é um mestre na sátira desse relacionamento.

Não existem soluções fáceis para nenhum dos grandes problemas que afligem à África. Ainda assim, acredito que a ajuda internacional - pela forma privada ou pela AOD - tem um papel a desempenhar. As atividades de um artista de projeção internacional como Bono são relevantes. Cada vez mais me convenço que a grande divisão política do mundo é entre os indiferentes e aqueles que se importam. Talvez por isso o ativismo de celebridades como o vocalista do U2 irritem tanta gente: ele força as pessoas a se defrontarem com a própria indiferença, o que nunca é agradável.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

Ponto Final


Os filmes de Woody Allen são principalmente comédias estreladas por intelectuais neuróticos da classe média de Nova York, ao som de jazz. "Ponto Final" é um drama protagonizado pela elite britânica e suas referências estão na tragédia, na ópera e em Dostoiévski. De comun à obra de Allen, só a impecável direção de atores e a influência da trilha sonora na condução do enredo.

O personagem principal é Chris (Jonathan Rhys-Meyers), um jovem talentoso de origem pobre. Ele trocou uma carreira de tenista profissional para lecionar o esporte num clube de ricos. Lá se torna amigo de um rapaz que o apresenta a sua família, introduzindo Chris a um mundo de conforto e privilégios. A ascensão do rapaz é meteórica: casa-se com a irmã do amigo, ganha um emprego como executivo na empresa de um sócio do sogro. Tudo em sua vida vai muito bem. Mas como nas tragédias e nas óperas, a paixão derruba qualquer pretensão humana em racionalizar e administrar a existência.

Um torpedo hormonal chamado Nola (Scarlett Johansson) , a noiva de seu cunhado, tira Chris do sério e ameaça destruir a posição de riqueza que ele conquistou. Dividido entre amor e estabilidade, Chris parte para uma decisão radical, numa situação semelhante a de "Crime e Castigo", de Dostoiévski, romance que ele lê no início do filme.

Para o velho Dostoiévski, se não existisse imortalidade da alma, tudo seria permitido. Mas seus angustiados personagens se recusam a viver num mundo sem Deus e são atormentados pela culpa. No filme de Woody Allen, as principais referências existenciais são o consumo - roupas, carros, filmes, arte, viagens. Há pouco espaço para uma ética que vá além da família que se protege. Tudo é permitido. Até por isso, o acaso ganha força e no fundo decide a trama.

O roteiro é muito bom, embora tenha alguns furos e o retrato da classe alta britânica tenha me parecido muito esteriotipado. Mas garanto que você não pensará em nada disso quando vir Scarlett Johansson. Que ela é deslumbrante, todo mundo sabia. "Mas uma mulher tem que ter qualquer coisa além da beleza, qualquer coisa que chora, qualquer coisa que sente saudades", trovava mestre Vinicius de Moraes. Esse algo além é a matéria da qual são feitas as estrelas de cinema, e Allen conseguiu encontrá-lo em sua nova musa. Scarlett filmará outros dois filmes com o diretor. Quem sabe ele fique menos neurótico.

sábado, fevereiro 18, 2006

O Brasil vai à China


Assisti a uma palestra do diplomata Luiz Augusto de Castro Neves, embaixador do Brasil na China. Foi uma excelente exposição sobre as transformações na economia daquele grande país. O debate foi no Centro Brasileiro de Relações Internacionais e a platéia era formada principalmente por diplomatas e empresários, de modo que boa parte das discussões girou em torno de oportunidades de negócios e disputas comerciais.

A China já é uma das principais parceiras econômicas do Brasil, creio que só está atrás dos EUA e da Argentina como destino de exportações. O que eu não sabia é que o Brasil também se tornou um dos dez maiores importadores de produtos chineses. O padrão do comércio é desigual: os brasileiros vendem sobretudo soja e minério de ferro, e importam produtos manufaturados: têxteis, brinquedos, eletrônicos etc. Há interesse da China em investir em infraestrutura por aqui, em rodovias e portos.

Eu desconhecia a quantidade de empresas brasileiras que estão construindo fábricas na China, atraídas pelo baixo custo da mão-de-obra, pela pequena carga tributária (50% da existente no Brasil) e por uma série de incentivos, como facilidade de importar bens de capital. São indústrias de diversos ramos, como aviação (Embraer), ferramentas (Tramontina), ônibus (Marcopolo), eletromésticos (Arno). Ou seja, estão no mesmo processo de transnacionalização da produção que suas rivais na Europa, EUA e Japão.

O caso mais bizarro narrado pelo embaixador foi o de um empresário gaúcho, residente em Mônaco, que construiu uma fábrica de têxteis próxima à cidade de Cantão, levando mais de mil funcionários do Rio Grande do Sul para lá. Resultado: proliferação de churrascarias e até a instalação de um Centro de Tradições Gaúchas. O diplomata comentou que há muitas churrascarias em Pequim, com maître brasileiro e os garçons, chineses, de bombacha. Morram de inveja, McDonald´s e Outbacks da vida.

No debate, ficou clara a tensão existente entre os empresários. O ex-chanceler de FHC, Luiz Felipe Lampreia, que agora é consultor para a Firjan, comentou que recebe diariamente uma romaria de industriais de diversos ramos, queixosos da competição desleal dos produtos chineses. Com baixos salários e proibição de ação sindical, não é de estranhar que a China seja campeã de processos anti-dumping na Organização Mundial do Comércio. Recentemente o Brasil assinou um acordo comercial em que os
chineses concordam em impôr restrições às exportações para cá, em troca do governo brasileiro restringir a aplicação de salvaguardas e outras medidas de proteção comercial.

O embaixador pontuou a palestra com anedotas divertidas sobre o cotidiano na China. Uma delas foi sobre o "curto prazo" chinês. Visitando Hong Kong acompanhado de um diplomata chinês, ambos pararam na alfândega para a revista dos documentos. O funcionário comentou: "Não se preocupe, em breve tudo isso chegará ao fim e as pessoas circularão pelo mundo livres, sem controles.". O embaixador perguntou: "Em breve, quando?". E o chinês, impertubável: "Ah, em pouco tempo, uns 500 anos."

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Syriana



Se você quiser aprender sobre relações internacionais nos dias de hoje, precisa ir mais ao cinema. "Syriana", de Steven Sordenberg, é uma ótima abordagem sobre os conflitos no Oriente Médio, com a mesma equipe de "Traffic", incluindo o excelente roteirista Stephen Gaghan. A partir do livro de memórias de um desiludido agente da CIA, Gaghan teceu uma teia das relações entre governos, empresas e terroristas no Grande Jogo da disputa pelo petróleo.

A trama é formada por várias histórias que vão se cruzando, tendo como fio condutor a tentativa de um príncipe árabe de reformar seu país, usando os abundantes recursos do petróleo e do gás para financiar projetos de desenvolvimento. Mas ele contraria interesses americanos ao beneficiar companhias chinesas e então o governo dos EUA e um conglomerado petrolífero iniciam um plano para afastá-lo do poder, em benefício de seu irmão mais manipulável.

Nessa teia entram um agente da CIA que se tornou incômodo para a organização, duas empresas americanas num processo corrupto de fusão, um consultor que se torna conselheiro do príncipe reformista e as ações de um grupo terrorista que recruta jovens nas favelas árabes. Os personagens são muito bons, com fraquezas e ambições bastante verossímeis, e o filme tem um olhar muito atento aos principais temas da política internacional contemporânea. O título "Syriana" é um termo utilizado por alguns centros de pesquisa dos EUA para o projeto de "redesenho estratégico" do Oriente Médio, defendido desde a década de 90 pelos homens que hoje formam o
círculo íntimo de Bush.

Embora o ponto alto seja o roteiro, vale destacar algumas boas atuações, em especial a de George Clooney, como o agente da CIA. Clooney também produziu "Syriana" e o excelente "Boa Noite a Boa Sorte", sobre a batalha do jornalista Edward Murrrow contra o abuso de poder do senador Joseph McCarthy durante a cruzada anticomunista dos anos 50.

Claro que essas atividades o tornaram impopular entre a direita americana. Foi taxado de "traidor" para baixo. O próprio Clooney responde que aprendeu a brigar: "Meu país certo ou errado significa que mulheres não votam, negros sentam-se no fundo dos ônibus e que ainda estamos no Vietnã. Meu país certo ou errado significa que não temos o New Deal."

Conspirador emérito.

domingo, fevereiro 12, 2006

Chávez, a palavra e o sangue


A palavra. Sempre que volto de viagens de trabalho pela América Espanhola, escrevo um artigo para o Observatório Político Sul-Americano. A vontade ancestral de contar histórias após o retorno de terras estrangeiras. E também o desejo de refletir sobre o que vi.

O texto sobre a Venezuela será escrito em parceria com um amigo que tratou do país em sua dissertação de mestrado. Provavelmente analisaremos o discurso de Chávez e suas ações no campo das comunicações, como a criação da Telesur. Por conta disso, passei os últimos dias examinando conferências e entrevistas do presidente venezuelano, bem como depoimentos de seus colaboradores mais próximos e recortes dos principais jornais daquele país.

Chávez é um mestre da retórica, um orador que impressiona pela cultura e capacidade de comunicação. Estudando seus discursos, descobri algumas muletas, citações ou episódios que usa com freqüência para que o ajudem a manter o fio condutor ao longo de falas de duas ou três horas.

O sangue. Começa a ficar clara para mim a tradição de lutas políticas às quais ele se filia. Apesar da retórica sobre o “socialismo do século XXI”, sua família é dos caudilhos nacionalistas, mais propensos à insurreição armada do que a organização de um partido ou movimento social. Velasco Alvarado, no Peru, a quem o cadete Chávez conheceu nos anos 70. Omar Torrijos no Panamá. E os próceres guerrilheiros da Venezuela do século XIX, como Bolíviar, Zamorra (um líder camponês, como Pancho Villa) e Maisanta, bisavô do presidente, tão obcecado por sua figura que um amuleto que lhe pertenceu.

Aprendo também pelo “Movimento Bolivariano” liderado por Chávez e que reúne vários generais e coronéis de seu círculo íntimo. Oficiais de origens pobres, que encontraram nas Forças Armadas a possibilidade de ascensão social e acesso à educação superior. Beneficiados pelo Plano Andrés Bello, que introduziu nas academias militares as humanidades e as ciências sociais, em especial a história – fundamental na recuperação de Bolívar como guia ideológico. A revolta dos jovens oficiais contra a cúpula militar corrupta, ligada à oligarquia política. Uma década de conspirações e as duas tentativas de golpe em 1992.

Impossível não pensar no tenentismo brasileiro, aliás citado com admiração por Chávez. Mas estamos no século XXI e não mais na década de 1920. Os tenentes idealistas da época se transformaram nos generais que deram o golpe de 1964. Na Venezuela, o demônio do militarismo também fugiu da garrafa. Receio que logo assumirá novas cores e bandeiras, saindo do controle de seus criadores.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

O Jardineiro Fiel



Como todas as histórias que merecem ser contadas, "O Jardineiro Fiel" é um caso de amor. Isso ficou mais claro para mim ao ler o romance de John Le Carré, pois a versão para o cinema destaca o suspense da trama. Justin, um diplomata inglês servindo no Quênia, tem a esposa Tessa brutalmente assassinada. Ao investigar o crime, descobre uma conspiração de um conglomerado de indústrias farmacêuticas que usa africanos como cobaias para testar remédios contra tuberculose, tudo acobertado pelo governo de Sua Majestade. Incidentalmente, Justin também aprende muito sobre a mulher que teve pouco tempo para amar e que no fundo mal conhecia.

Me impressionou a quantidade de pessoas que vieram conversar comigo após ver o filme. Alunos, amigos e parentes que se sensibilizaram pelo tema e queriam saber se eu achava a trama verossímil, à luz da minha experiência de trabalho com a África. Sim. Nas palavras de Le Carré: "À medida que minha viagem pela selva farmacêutica progredia, me dei conta de que, em comparação com a realidade, minha história era tão inocente quanto um cartão postal de férias."

No livro, Tessa é uma aristocrata rebelde, que começa um trabalho humanitário no Quênia envolvendo a defesa de direitos das mulheres e o combate à AIDS. Logo se indigna com a corrupção e o descaso das elites diplomáticas e das agências de ajuda (este segundo ponto não é tão claro no filme). Alguns dos melhores trechos do livro dizem respeito ao modo como essa pequena corte se isola do resto da sociedade e as intrigas do mundinho, a rivalidade, o jogo de carreiras. Lembranças dos anos que Le Carré serviu como diplomata inglês na Alemanha, em plena Guerra Fria.

Justin é um bom homem, que se preocupa com os africanos e escreve relatórios que ninguém lê sobre como melhorar a eficiência da ajuda humanitária. À medida que o trabalho de Tessa começa a incomodar as indústrias farmacêuticas, eles fazem um acordo tácito de não tocar no assunto e ela passa a esconder suas atividades do marido. "Não entendo como vocês conseguiam viver assim", comenta uma policial. "Não conseguimos - ela morreu", observa Justin. Mexendo nos documentos da esposa assassinada, ele aos poucos se dá conta da mulher extraordinária que perdeu.

Por coincidência, na semana passada almocei com o diretor de uma fundação de ajuda européia e ele se queixava das dificuldades que vem passando no Quênia: "Investimos na oposição e quando ela chegou ao poder, começou a se comportar da mesma maneira corrupta." Não consegui conter um sorriso, dada a semelhança da situação... Outro mérito do livro de Le Carré: é ótima ficção, mas sustentada em pesquisa sólida. Aprende-se muito sobre os lobbys farmacêuticos e sobre as epidemias que devastam a África. Tessa foi inspirada na ativista francesa de direitos humanos Yvette Pierpaoli, a quem o autor dedica o romance, porque ela "viveu e morreu sem dar a mínima."

Suspeito que Le Carré também. Não satisfeito em escrever "O Espião Que Saiu do Frio", clássico do romance de espionagem, ele encontrou um belo caminho literário no pós-Guerra Fria, nestes dias de economia global descontrolada, ideologias em colapso e o crescimento de fundamentalismos. Seu livro mais recente, "Amigos Absolutos", tem um enredo suculento. A conferir.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Cruzada em Cartuns


Em outubro de 2005, um jornal dinamarquês publicou cartuns ligando Maomé à violência e ao terrorismo. Nada aconteceu. Meses depois, muçulmanos que moram na Dinamarca divulgaram as charges em países islâmicos. Encontraram governos ansiosos para demonstrar seu suposto compromisso com a religião. O resultado foi uma explosão de protestos em várias cidades da Europa, África e Oriente Médio e a depredação de embaixadas na Síria, no Líbano, bem como choques entre cristãos e muçulmanos no Líbano.

Está em curso um debate acalorado sobre liberdade de expressão. Os cartuns dinamarqueses são ofensivos? Sim. Para o Islã, é proibido representar Deus ou os profetas, em qualquer circunstância. E as caricaturas são um humor grosseiro, que equipara os símbolos religiosos ao terrorismo. Os ativistas islâmicos reagiram na mesma moeda, publicando cartuns anti-semitas que questionam até a verdade histórica do Holocausto.

Pode-se argumentar que quase todo humor é ofensivo a alguém. Portanto o jornal dinamarquês tem todo o direito de publicar seus cartuns, mesmo que eles não agradem aos muçulmanos. Concordo que sim. Só que o mesmo jornal recusou-se a publicar caricaturas satirizando Jesus Cristo. Por que usar um padrão para o cristianismo e outro para o Islã? Reforça a crença dos muçulmanos na Europa de que são considerados cidadãos de segunda categoria.

Se eu fosse editor do jornal dinamarquês, não teria publicado os cartuns. Cervantes escreveu que preferia perder um braço a inspirar um mau pensamento em alguém. Quem trabalha com comunicação de massas precisa levar em conta o impacto de suas palavras. O ambiente internacional em que vivemos está carregado de tensões, preconceitos, falta de informação e ódios raciais e religiosos à flor da pele. Todo jornalista deveria pensar duas ou três vezes antes de contribuir para a difusão de um esteriótipo e para o fortalecimento do extremismo político.

Recebi por estes dias um telefonema de uma amiga que está nos EUA, com bolsa do governo americano, estudando segurança nacional. Ela me contou horrorizada sobre a radicalização das universidades locais, com todos os professores defendendo guerras (o alvo favorito é a China, para asco dos estudantes chineses do grupo, que falam das intenções pacíficas do seu país) e vendendo doutrinas baratas de imposição de valores culturais e econômicos.

A paz começa nas mentes humanas, diz o documento fundador da Unesco. As guerras também. Esse espírito de cruzada em cartuns é como uma profecia auto-realizável. Atribui-se aos muçulmanos as características mais violentas, quando reagem com agressividade é só exclamar com todo o conforto das certezas absolutas: “Eu não disse?”.

sábado, fevereiro 04, 2006

Munique


Um país sofre um brutal atentado terrorista e resolve se vingar dos criminosos. O processo consegue apenas substituir a liderança dos terroristas por novos ativistas ainda mais radicais e violentos, além de colocar aqueles que buscam justiça em posições morais dolorosas. Não é à toa que "Munique", de Steven Spielberg, provocou tanto furor nos EUA. Embora aborde diretamente a reação de Israel ao assassinato de atletas do país nas Olimpíadas de 1972, pela organização Setembro Negro, está claro que a mensagem do cineasta se dirige ao mundo pós-11 de Setembro. Se você duvida, confira a cena final do filme.

"Munique" é melhor obra de Spielberg em muitos anos, mas tem pouco em comum com as produções anteriores do cineasta. O protagonista é Avner Kaufman (Eric Bana), o agente secreto isralense encarregado dos assassinatos. Sua equipe é competente (bem, quase todos), honesta, determinada. Mas aos poucos, a natureza da missão os leva a fraquejar, expor seus defeitos, errar perigosamente. Um universo de ambigüidade moral e seres humanos confusos, distante do maniqueísmo. Crédito ao dramaturo Tony Kusnher (Angels in America), um dos roteiristas.

Contudo, "Munique" tem em comum com outros filmes de Spielberg a busca que o protagonista empreende pelo lar - como lugar concreto ou metáfora de paz e estabilidade familiar. Mas no mundo abalado pelo terror e pela guerra, "o lar é o lugar de onde se parte", como no belo verso de T.S. Eliot. E para o qual não há retorno possível.

Vale destacar também as boas cenas de suspense e ação, particularmente o ataque de comandos israelenses a um abrigo da OLP em Beirute (o ex-premiê de Israel Ehud Barak, então militar, foi um dos participantes) e o atentado em Atenas. Spielberg continua com mão cheia como contador de histórias.

"Paradise Now", indicado ao Oscar de filme estrangeiro, também fala sobre o terrorismo. A dupla de protagonistas parece saída de uma comédia neorealista italiana: dois amigos de infância, mecânicos meio atrapalhados. Mas a Cisjordânia não é Nápoles e a coisa logo fica séria quando eles se apresentam como voluntários para um atentado suicida em Tel Aviv.

Uma falha na operação os impede de cruzar a fronteira, e então ambos começam a ter dúvidas se tomaram a decisão certa. Bons diálogos e uma ótima descrição das horrendas condições da vida na Cisjordânia (alô, tradutores, West Bank é Cisjordânia, não "Margem Ocidental"). Pensando bem, Caracas não é tão ruim. Ajuda a entender porque os palestinos deram vitória ao Hamas nas eleições parlamentares da semana passada.
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