O Jardineiro Fiel
Como todas as histórias que merecem ser contadas, "O Jardineiro Fiel" é um caso de amor. Isso ficou mais claro para mim ao ler o romance de John Le Carré, pois a versão para o cinema destaca o suspense da trama. Justin, um diplomata inglês servindo no Quênia, tem a esposa Tessa brutalmente assassinada. Ao investigar o crime, descobre uma conspiração de um conglomerado de indústrias farmacêuticas que usa africanos como cobaias para testar remédios contra tuberculose, tudo acobertado pelo governo de Sua Majestade. Incidentalmente, Justin também aprende muito sobre a mulher que teve pouco tempo para amar e que no fundo mal conhecia.
Me impressionou a quantidade de pessoas que vieram conversar comigo após ver o filme. Alunos, amigos e parentes que se sensibilizaram pelo tema e queriam saber se eu achava a trama verossímil, à luz da minha experiência de trabalho com a África. Sim. Nas palavras de Le Carré: "À medida que minha viagem pela selva farmacêutica progredia, me dei conta de que, em comparação com a realidade, minha história era tão inocente quanto um cartão postal de férias."
No livro, Tessa é uma aristocrata rebelde, que começa um trabalho humanitário no Quênia envolvendo a defesa de direitos das mulheres e o combate à AIDS. Logo se indigna com a corrupção e o descaso das elites diplomáticas e das agências de ajuda (este segundo ponto não é tão claro no filme). Alguns dos melhores trechos do livro dizem respeito ao modo como essa pequena corte se isola do resto da sociedade e as intrigas do mundinho, a rivalidade, o jogo de carreiras. Lembranças dos anos que Le Carré serviu como diplomata inglês na Alemanha, em plena Guerra Fria.
Justin é um bom homem, que se preocupa com os africanos e escreve relatórios que ninguém lê sobre como melhorar a eficiência da ajuda humanitária. À medida que o trabalho de Tessa começa a incomodar as indústrias farmacêuticas, eles fazem um acordo tácito de não tocar no assunto e ela passa a esconder suas atividades do marido. "Não entendo como vocês conseguiam viver assim", comenta uma policial. "Não conseguimos - ela morreu", observa Justin. Mexendo nos documentos da esposa assassinada, ele aos poucos se dá conta da mulher extraordinária que perdeu.
Por coincidência, na semana passada almocei com o diretor de uma fundação de ajuda européia e ele se queixava das dificuldades que vem passando no Quênia: "Investimos na oposição e quando ela chegou ao poder, começou a se comportar da mesma maneira corrupta." Não consegui conter um sorriso, dada a semelhança da situação... Outro mérito do livro de Le Carré: é ótima ficção, mas sustentada em pesquisa sólida. Aprende-se muito sobre os lobbys farmacêuticos e sobre as epidemias que devastam a África. Tessa foi inspirada na ativista francesa de direitos humanos Yvette Pierpaoli, a quem o autor dedica o romance, porque ela "viveu e morreu sem dar a mínima."
Suspeito que Le Carré também. Não satisfeito em escrever "O Espião Que Saiu do Frio", clássico do romance de espionagem, ele encontrou um belo caminho literário no pós-Guerra Fria, nestes dias de economia global descontrolada, ideologias em colapso e o crescimento de fundamentalismos. Seu livro mais recente, "Amigos Absolutos", tem um enredo suculento. A conferir.
2 Comentarios:
Estava meio sumido de vários blogs, por isso comento só agora.
Essa divergência de percepção sobre o filme -- uns o viram como uma história de amor, outros enfatizaram o lado de suspense político -- foi discutida nessa interessante entrevista do Fernando Meirelles ao site Cinemascópio.
Eu gostei muito do filme, e percebe-se que Justin só foi até onde foi por amor a Tessa. Ele não era o tipo de pessoa que iria se meter em assuntos tão espinhosos.
Marcus,
obrigado pela entrevista, é muito boa. De fato, a história do Le Carré é uma mistura de amor e suspense, mas bem mais romântica que suas obras anteriores. No livro, isso ficou mais claro para mim.
Abraços
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