As Fúrias
Mulheres choram mortos em Srebrenica (Andrew Testa, NY Times)
No fim da “Oréstia”, uma das mais belas triologias do teatro trágico grego, o jovem herói perseguido pelas Fúrias, deusas da vingança, chega em Atenas, onde pede para ser julgado pelos cidadãos. O tribunal da cidade o absolve do assassinato da mãe e do padrasto (que haviam matado seu pai na primeira peça, triologias com problemas de família complicados não começaram com Guerra nas Estrelas) e põe fim a um banho de sangue que durava décadas. A democracia como um freio à ira dos deuses e às tresloucadas paixões humanas.
Hoje se completam dez anos do massacre de Srebrenica. Na guerra civil da antiga Iugoslávia, a cidade foi um reduto bósnio numa área sérvia. A cidade resistiu durante meses até ser invadida por milícias sérvias. Calcula-se que cerca de 7 mil pessoas foram mortas na ocasião, o maior massacre em solo europeu desde a queda de Berlim em 1945.
Falo muito sobre Srebrenica para meus alunos porque ela resume vários dos problemas da política internacional dos anos 90. A cidade estava sob proteção da ONU. Mas os boinas azuis ficaram paralisados por passividade política, ordens estúpidas e confusão burocrática. Mais de mil bósnios foram capturados na porta do quartel das Nações Unidas em Potocari, nos arredores da cidade. Os homens e rapazes foram separados e fuzilados nos arredores. As mulheres foram estupradas sistematicamente, no quadro de guerra étnica que devastou os Bálcãs.
Pouco tempo depois do massacre, os EUA conseguiram mediar um acordo de paz que encerrou os conflitos na Bósnia. O papel da imprensa no relato dos horrores de Srebrenica foi fundamental, bem como a reação dos próprios diplomatas americanos – vários se demitiram em protesto contra a política de Washington, ação que não teve precedentes nem no Vietnã. O choque mobilizou a opinião pública e pressionou Clinton a agir. Gosto de citar o caso a meus alunos como um exemplo em que a mobilização dos cidadãos pode fazer a diferença e mudar o rumo dos Estados.
Após a guerra, foram criados tribunais para julgar crimes contra a humanidade nos conflitos dos Bálcãs e o próprio Slobodan Milosevic, que presidia a Iugoslávia à época, foi preso. Mas os generais que comandaram o massacre em Srebrenica continuam soltos. O New York Times aborda a marcha que relembra a queda da cidade e a tentativa de reconciliação, de seguir em frente. O Guardian apresenta uma ampla cobertura que conta como ocorreu o massacre, analisa o impacto para a Europa e pede a condenção dos culpados.
Talvez as instituições políticas criadas pelos homens (e aperfeiçoadas, espero, pelas mulheres!) possam conter as Fúrias. Se não, seremos só mais um bando de animais selvagens à solta, e particularmente cruéis. E que os deuses tenham piedade de nós.
2 Comentarios:
É algo que precisou acontecer para a Europa notar sua inação. Lamentável. O Hobsbawm faz uma analogia interessante entre os eventos na ex-Iugoslávia dos anos 1990 e a crise que irrompeu a primeira guerra mundial
Caro,
a analogia é mesmo excelente. Há um livro com reportagens do John Reed - o jornalista americano que cobriu a Primeira Guerra Mundial e as Revoluções Russa e Mexicana - em que ele comenta a situação nos Bálcãs por volta de 1917-8.
Ele mostra como os antigos socialistas se transformaram em nacionalistas loucos para expulsar os grupos étnicos rivais do território. Semelhança completa.
Abraços,
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