Questão de Interpretação
Kidman em "A Intérprete"
Na semana passada li um romance e vi um filme protagonizados por intérpretes, que simbolizam as dificuldades da ONU em lidar com as crises internacionais, em particular na África.
A personagem título de "A Intérprete" é uma funcionária da ONU vivida por Nicole Kidman. Ela ouve um dialogo num dialeto aficano que aponta para uma conspiração para matar o presidente do Matobo, que irá discursar na Assembléia Geral. O político havia sido o líder de um movimento de libertação, mas se transformou num tirano genocida - descrição que poderia se aplicar a Mobutu (Zaire) ou Mugabe (Zimbabwe), entre outros ditadores africanos. A França quer levá-lo ao Tribunal Penal Internacional e os EUA se opõem - eles não gostam do sujeito, mas como não reconhecem o tribunal não podem dar-lhe legitimidade.
A intriga política é bem construída e complementada pela atuação de Sean Penn, que interpreta o agente do seviço secreto encarregado de investigar a ameaça. À medida que conhece a personagem de Nicole, ele encontra um passado nebuloso de ativismo e suspeita do envolvimento dela em algum tipo de conspiração na África.
Embora o roteiro tenha furos, consegue prender a atenção e é uma defesa da ONU e da diplomacia, mesmo que os caminhos das palavras sejam mais longos e tortuosos do que os das armas. Há um belo diálogo entre um policial e a personagem de Nicole que resume o lema do filme:
"Por que você veio trabalhar na ONU?"
"Porque acredito em sua missão."
"Sim, mas com todo o respeito, você é apenas uma intérprete."
"Países foram à guerra porque interpretaram mal as ações uns dos outros."
O romance de Mia Couto, "O Último Voo do Flamingo" é protagonizado por um rapaz moçambicano que serve de intérprete para um militar italiano, que está com as tropas da ONU no país. Os dois investigam uma série de fatos bizarros: soldados das forças de paz explodem, e restam apenas seus órgãos sexuais. O soldado fala português: o que ele não entende é Moçambique, com sua lógica que desafia os padrões europeus e cartesianos (depois o leitor descobre que o italiano também não é tão cartesiano assim...).
O enredo usa e abusa do realismo mágico, gênero literário que raramente me agrada. Alguns personagens são clichês puros, como o administrador corrupto da vila onde se passa a ação. Mas a beleza da prosa de Couto, com freqüência comparado a Guimarães Rosa, vale a leitura. Ao fim, o que se tem é uma espécie de fábula amarga sobre a esperança - mesmo a perdida.
2 Comentarios:
Os furos do roteiro me incomodaram. O fato dela ser branca (e a Nicole Kidman) para agradar as sensibilidades americanas também. Mas o filme vale a pena ser visto. Já o livro, lerei após sua recomendação.
Como foi a aula na Candido? Os alunos o adoraram. "Inteligente, sem ser pedante"; "Muito didático"; "culto, com muita leitura"; "agradável no trato"... O que você achou ? (fora o espanhol maluco de dicção incompreensível)
Caro,
ADOREI a turma, inclusive o maluco da primeira fila (que me avisou a AIDS não é um vírus, mas uma invenção americana para justificar guerras).
Os alunos foram muito simpáticos e gentis - vários deles comentaram que querem ir para o Clio e me perguntaram sobre a organização dos módulos. Queriam também se existe algum professor de RI com mais de 30 anos.
Vou deixar o livro do Mia Couto no seu escaninho do Clio. Proponho um escambo pelo que você tiver de mais recente do Agualusa.
Abraços,
Maurício
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