terça-feira, julho 13, 2004

Justiça, ou a Violência Muda do Cinema Brasileiro

Muito do que a gente conversa sobre o cinema brasileiro (e sobre o país que ele representa) pode ser conferido no documentário “Justiça”. Primeiro, temos o foco nos problemas sociais do país, em particular a violência/exclusão, que serviram de tema para tantos filmes recentes (“Cidade de Deus”, “Carandiru”, “Ônibus 174”, “Notícias de uma Guerra Particular”, “Fala Tu” etc). Segundo, há o próprio gênero documentário, que está em auge. Terceiro, a mesma percepção de que estamos num beco sem saída, sem soluções à vista.

“Justiça” acompanha os meandros dos tribunais através da rotina de pessoas que circulam por uma vara criminal no Rio de Janeiro: dois juízes, uma defensora pública e dois rapazes do tipo bandido pé-de-chinelo, processados por crimes menores. O que se vê é o funcionamento de uma máquina fria, que às vezes segue adiante de acordo com uma lógica burocrática que não tem muito a ver com a realidade.

A personagem mais interessante do documentário é a defensora pública, que aparece como uma pessoa muito sensível, realmente preocupada com os infelizes que defende. Ela parece à beira de um esgotamento nervoso, num momento chega a desabafar se sentindo inútil, “enxugando gelo”.

Os juízes surpreendem pela frieza e mesmo por um certo desdém de classe com o qual lidam com os réus. Estes são um caso à parte. O rapaz mais velho é o tipo que já fez muita coisa errada na vida e espero que passe um bom tempo preso. O mais novo está tão obviamente desnutrido e doente que dá vontade de mandá-lo almoçar e freqüentar a escola.

Para mim, “Justiça” teve um sabor especial, porque se passa exatamente no tribunal no qual meu irmão trabalha como oficial de justiça, ele inclusive conhece algumas das pessoas que aparecem no filme. Depois de assistir ao documentário, acho que ele merece cada centavo do salário.

Em comparação com os filmes argentinos, o que chama a atenção é a falta de discussões políticas, sobre o rumo da sociedade, o que está presente o tempo todo nos roteiros ao sul da fronteira, ainda que de uma maneira um tanto depressiva. No Brasil, a violência é tão exuberante que ofusca todo o resto. E como já nos ensinou mestra Hanna Arendt, a violência é muda.

1 Comentarios:

Anonymous Anônimo said... Weblog Commenting and Trackback by HaloScan.com

Todo mundo deveria ver "Justiça". Vou esplicar o motivo de forma tortuosa.

O processo judicial cerca-se de garantias que estão na Constituição da República, cláusulas pétreas que não podem ser abolidas nem mesmo por Emendas. Todas dizem respeito aos direitos fundamentais, e uma delas é o devido processo legal, com seus corolários - a ampla defesa e o contraditório.

A Carta de Direitos, bela e técnica. E, muitas vezes, frágil. Tão frágil que basta uma nova Constituição, outra energia inicial que refunde o Estado brasileiro, sobre outras bases, para que, aí sim, seja riscada do mapa e relegada à História.Como a Constituição de 1946, uma jóia que durou muito pouco.

Mas não é preciso uma nova energia inicial para mostrar o quanto sua supremacia é relativa. Basta conhecer um processo judicial...

Aplicação literal da lei, audiências soníferas e ritualísticas, profissionais que apertam parafusos mecanicamente. Pessoas que, de tanto verem mazelas e tristezas, aprendem a não se chocarem com elas, simplesmente distanciam-se. Acredita-se que é mais fácil trabalhar assim.

Pode até ser. Mas distanciamento é preciso até determinado ponto, ou se esquece que a vida humana está em jogo em qualquer processo, em última análise.

"Justiça" mostra uma Defensora Pública como poucos conhecem. Aliás, poucos conhecem os Defensores Públicos, sabem para que servem ou mesmo que existem. Uma das grandes vantagens deste filme foi dar vida a este personagem que pouco aparece nos jornais, mas que acredita piamente na lei, no processo e na Justiça.

Porque só aceita ser Defensor Público, em qualquer área de atuação, quem acredita que o processo é mais do que um ritual de apertar parafusos. Que acredita em provocar o Judiciário e vê-lo escutar os problemas de quem lhe pede socorro. Que acredita na Constituição e em sua Carta de Direitos, que acredita no poder destas palavras: devido processo legal, ampla defesa, contraditório.

Porém, se muitas vezes a prática não é tão bela, as tentativas para que seja são de beleza ímpar. Como mostrou a brava Defensora.

Porque Justiça não é ignorar a lei, mas vê-la ser aplicada de forma correta e adequada, com legitimidade, depois de um amplo procedimento em que está garantida a participação de todos os interessados.

julho 13, 2004 11:40 PM  

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